A esquerda liberal e as instituições burguesas: sobre a autoridade política do STF

 Numa república em profunda crise não deixa de ser curioso ver e ouvir personagens e partidos que compõem a esquerda liberal reivindicando o bom funcionamento das instituições burguesas. Até agora, o clamor do espírito republicano confinado ao labirinto da República burguesa em crise, se resumia tão somente no bordão capaz de indicar algo errado e até mesmo lograr alguma simpatia diante da suposta anomalia: “é preciso acabar com a judicialização da política e também com a politização do judiciário!”. Na prática, com pálido verniz sociológico, políticos e dirigentes partidários reclamam da desordem atual exigindo a harmonia e independência entre os poderes como se fosse possível corrigir o mundo caótico em que estamos metidos com uma ou duas aulas do manual de Montesquieu. Entretanto, a crise possui raízes mais profundas e obviamente não pode ser corrigida com um breve curso republicano de boas maneiras, como pretendem os ideológicos liberais e também grande parte da imprensa burguesa.

 O grito da esquerda liberal em defesa da harmonia e independência dos poderes teve sua expressão mais eloquente no combate petista contra a Operação Lava Jato conduzida pelo juiz Sérgio Moro – um office-boy dos Estados Unidos – que, amparado na onda moralizante segundo a qual vivíamos uma profunda crise de “valores”, atropelou todos e cada um dos ritos sagrados do direito burguês em favor dos interesses imediatos da classe dominante; no entanto, esse episódio da luta política no país tinha antecedentes igualmente importantes que a consciência ingênua e o oportunismo político dos partidos da ordem esquecem com imensa facilidade.

 O roteiro dessa longa novela na qual a imprensa burguesa foi decisiva não pode, de fato, permanecer no esquecimento, pois aqueceu o noticiário e produziu malabarismos políticos nos partidos políticos e na atividade parlamentar dignos de registro histórico.

 A despeito da amnésia praticada pela esquerda liberal e sua incurável memória curta, é de justiça observar que os malabarismos e reviravoltas nos partidos e parlamentares foi acompanhado de igual comportamento nos juízes e nas decisões de tribunais. Em setembro de 2015, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes, num seminário com Paulo Skaff (ex-presidente da FIESP), anunciou, na forma de uma sentença, a natureza da crise do regime político então em curso: “na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos e está sendo revelado na Lava-Jato é um modelo de governança corrupta, algo que merece um nome claro de cleptocracia. Veja o que fizeram com a Petrobrás. Eles tinham se tornado donos da Petrobrás. Infelizmente para eles, e felizmente para o Brasil, deu errado”.

 Porém, já em dezembro de 2016 – com Dilma já fora do governo – o ministro Mendes gira seus canhões na direção oposta: ataca frontalmente as 10 medidas anticorrupção, elaboradas pela dupla Moro-Dallagnol, e apresentadas pelo Ministério Público Federal ao parlamento. Naquela época, a Associação dos Magistrados Brasileiros, baluarte da moral burguesa decadente, denunciou o ministro Mendes acusando-o de fazer política e, em consequência, indicou que o melhor caminho seria sua renúncia, sucedida da ocupação de um posto de comentarista político em algum jornal! Antes disso, no dia 10 setembro do mesmo ano, a imprensa anunciava um pedido de impedimento contra Gilmar Mendes, no Senado da República, com a assinatura de eminentes advogados alinhados com a esquerda liberal (Bandeira de Melo, Fábio Konder Comparato, etc.), acusando-o de “gratidão ao PSDB” e manifesta “ojeriza ao PT” que, tal como recomenda as leis objetivas da luta política, foi devidamente arquivado uma semana depois pelo presidente do Senado – ex-aliado, ex-inimigo e na atualidade aliado do PT, o senador Renan Calheiros.

 Entretanto, não tardou muito (outubro de 2019) para que o mesmo Gilmar Mendes – considerado um inimigo mortal do petismo e da esquerda liberal – se transformasse, gradualmente, num “defensor da democracia e do Estado de direito” quando acusou Moro de atropelar as sacrossantas escrituras do rito jurídico burguês: “hoje se sabe, de maneira muito clara, e o Intercept está aí para confirmar e nunca foi desmentido, que usava-se a prisão provisória como elemento de tortura. E quem defende tortura não pode ter assento na Corte Constitucional. O Brasil viveu uma era de trevas no que diz respeito ao processo penal”. Num passe de mágica, Gilmar Mendes se transformou numa espécie de herói jurídico em defesa do bom funcionamento da República diante dos excessos cometidos por juízes, tribunais, políticos, etc.

 Os fatos aqui recordados ilustram algo essencial que devemos retirar do senso comum: nada pode ser mais político que a lei! Portanto, supor que a crise da República burguesa é consequência “da politização da justiça e da judicialização da política” não passa de frase simpática para conversa de botequim. A lei, sabemos bem, é expressão jurídica de relações políticas, de relações sociais; portanto, é essencialmente política! No entanto, devemos observar as razões pelas quais juízes se tornam desinibidos e assumem mais livre e abertamente papéis políticos até bem pouco tempo reservados somente aos eminentes senadores, deputados, governadores e presidentes da República.

 Há, sem dúvida alguma, estreita relação entre a adesão da esquerda brasileira à ordem burguesa e o protagonismo dos tribunais. A precoce conversão da esquerda brasileira ao liberalismo – o nascimento da esquerda liberal – confinou o protesto político das classes populares às disputas eleitorais cada dia menos politizadas. Era comum na esquerda que sobreviveu a ditadura a crença segundo a qual os processos eleitorais representavam oportunidade para “politizar e organizar” o povo, especialmente os trabalhadores. No entanto, basta observar o quanto esse postulado válido em outras épocas foi gradual e inexoravelmente se transformando num movimento de alienação e conformismo de amplos setores populares na exata medida em que a busca desesperada pelo voto (orientado pelo cretinismo parlamentar) implicou no rebaixamento cada dia mais evidente do horizonte socialista até seu virtual desaparecimento. No lugar do combate nos marcos da ordem burguesa – mas contra a ordem burguesa! – emergiu a enfadonha competição entre todos os partidos para saber quem poderá melhor administrar a crise da República burguesa. Não foi por acaso que o PT anunciou, ainda na época do sistema petucano, que o petismo administrava melhor o Estado e a economia do que os tucanos, além, é claro, de apresentar uma resposta, tímida e paliativa, aos dramas sociais das maiorias num país regido pela superexploração da força de trabalho. Tampouco foi obra do azar a rápida transição da oposição e crítica ao Plano Real que “estabilizou a inflação” para o reconhecimento petista de que os tucanos deveriam ceder passo para os responsáveis pelo “crescimento com distribuição de renda”, nos termos da economia política burguesa inerente a um país dependente e subdesenvolvido.

 No silêncio do “êxito” petista, especialmente concentrado no segundo mandato de Lula, o processo de alienação das organizações populares se consolidava e o movimento de massas cedia espaço para as ilusões inerentes ao cretinismo parlamentar. Lula representou a exibição mais eloquente do presidencialismo sem dentes para morder ao aderir, de maneira desinibida, ao “presidencialismo de coalisão” inaugurado por um obscuro sociólogo de simpatia tucana. Nos dois mandatos de FHC, quando o PT estava ainda orientado por forte carga moralista e capitalizando o descontentamento inerente as reformas “neoliberais” implementadas pelos tucanos, as negociatas entre partidos políticos, a compra da emenda da reeleição, o toma-lá-dá-cá entre o parlamento e o governo, era considerado um agir exclusivo dos “partidos burgueses”. A vida demonstrou, mais cedo do que tarde, que a degradação permanente do regime constitucional e a consequente corrupção da atividade parlamentar não incluía apenas os “neoliberais”, mas, inexoravelmente, alcançaria também os puros, inocentes e bem intencionados petistas, cujo exemplo mais ilustrativo pode ser visto na trajetória e biografia de Antonio Palocci, ex-ministro de economia de Lula e chefe da casa civil de Dilma.

 No governo, a característica essencial da esquerda liberal encabeçada pelo petismo (Lula e Dilma) consistia precisamente em manter o povo longe das decisões estratégicas da economia e do Estado. O partido nascido do protesto operário contra a ditadura, com a notável contribuição da esquerda que combateu o regime militar de armas na mão, abandonou a mobilização e politização das “bases” para se transformar numa eficaz máquina eleitoral. Não devemos eludir o fundamental: o dilema de um partido socialista num país periférico e dependente na América Latina – com mais razão no Brasil – não consiste em estar “em contato com as bases e não as abandonar jamais”, como ainda pretende de maneira cínica a esquerda católica que apoiou Lula e o PT em tudo! Há algo mais valioso que o basismo alienante não pode ocultar: somente o horizonte socialista e o combate feroz contra a dominação burguesa poderiam abrir as portas para a redenção das massas sob o capitalismo dependente e rentístico, e conceder, em duros combates, alguma dose de “cidadania” à massa de oprimidos e explorados. O bordão que anuncia a “volta às bases” oculta algo essencial: o que dizer para mobilizá-las?

 Na ausência de um partido socialista ativo na defesa da Revolução Brasileira e do movimento de massas, os tribunais ficaram muito mais livres para decidir sobre a vida e a morte de milhões de brasileiros da mesma forma que podiam arbitrar os conflitos de natureza política com mais desenvoltura e autoridade. Ademais, não foram poucas as vezes que a esquerda liberal em seu combate “contra o neoliberalismo” de FHC credenciou os tribunais em nome da “defesa dos interesses dos trabalhadores”, recorrendo sem inibição aos togados. O recurso ordinário aos tribunais em qualquer instância e por qualquer causa se tornou a via privilegiada de “luta” da esquerda liberal contra os “excessos” da burguesia na sua guerra de classes contra os trabalhadores. De resto, a esquerda, outrora crítica da Constituição, logo assumiu – pasmem! – a posição de ardorosa defensora da Carta Constitucional diante da ofensiva burguesa que iniciou precisamente no mesmo dia em que, finalmente, a carta magna foi aprovada pelo parlamento, em 5 de outubro de 1988.

 Ora, a defesa das “conquistas sociais da constituição de 88” não poderiam ser asseguradas pelos juízes da Suprema Corte mesmo quando a maioria deles fosse indicada pelo PT. A profunda transformação do capitalismo dependente em sua fase rentística produziu a metamorfose classista da representação parlamentar, cada dia mais evidente, na medida que os parlamentares são organicamente vinculados as distintas frações do capital e sua autorreprodução eleitoral depende da decisão de banqueiros, latifundiários, grandes comerciantes e industriais decadentes. Em consequência, o adjetivo “centrão”, utilizado pela mídia burguesa e adotado sem reservas pela esquerda liberal – PT, PCB, PC do B e PSOL – é tentativa ilusória e perigosa para ocultar a afinidade entre os parlamentares e o grande capital como se, de fato, o Congresso Nacional não fosse um covil de ladrões, mas apenas uma cesta de maçãs comprometidas com algumas frutas podres. A progressão capitalista da representação parlamentar também alcançou os tribunais, como não poderia deixar de ocorrer. Nas últimas décadas, especialmente após a afirmação plena do capitalismo rentístico, os tribunais avançaram na mesma linha do parlamento e cada decisão da Corte não somente era incapaz de assegurar o recurso ingênuo aos tribunais em defesa dos direitos trabalhistas por parte da esquerda liberal mas, ao contrário, afirmava a legalidade da superexploração da força de trabalho e o assalto a riqueza pública com voracidade semelhante àquela dos parlamentares.

 Nesse contexto, os sucessivos recursos da esquerda liberal aos tribunais, na vã esperança de bloquear o “avanço do neoliberalismo” no terreno das causas defendidas pelo grande capital, simplesmente não prosperaram; basta lembrar as autorizações para as privatizações (da Casa da Moeda às empresas da Petrobrás) e a absoluta indiferença diante de mais de 30 ações diretas de inconstitucionalidade (Adin) sobre as reformas trabalhistas, que são, todas elas, olimpicamente ignoradas pelos excelentíssimos ministros do STF. A concepção liberal de economia e a servidão dos juízes do STF às classes dominantes é a norma desde sempre naquele tribunal e pouco importa se seus membros foram indicados por Lula, Dilma ou Bolsonaro, pois todos são “terrivelmente pró capitalistas”. É possível observar de maneira clara que historicamente, de fato, não há crime contra a República que não teve a validação daquele tribunal. Portanto, é necessário esclarecer as razões pelas quais a esquerda liberal segue alimentando ilusões no sistema de justiça burguês. Portanto, basta realizar o inventário das sucessivas derrotas dos trabalhadores para sentenciar que a “luta nos tribunais” não conseguiu impedir a superexploração da força de trabalho, sustento dos lucros extraordinários aos capitalistas da coesão burguesa, que decide a sorte de todos os governos desde 1994.

 Ao contrário das ilusões produzidas diariamente pela esquerda liberal, derivadas da crença na justiça nos marcos da ordem burguesa, todos os meses os tribunais – especialmente o STF – revela seu caráter de classe e invariavelmente decidem matéria banhada em cifras que, na prática, implica no assalto ao Estado e a transferência de bilhões de reais para o caixa dos capitalistas. Todos os meses, ano após ano, o STF decide em favor dos capitalistas em matéria tributária, financeira, cambial e trabalhista! Bilhões e bilhões de reais são destinados, por vias distintas, aos capitalistas, revelando, até mesmo para os neófitos, o caráter de classe das decisões de um tribunal composto majoritariamente por ministros indicados pelo PT. A propósito, pouco importa a origem de classe e menos ainda a nomeação presidencial, pois os ministros votam invariavelmente nas questões essenciais com maioria folgada. Ora, basta recordar a chamada “tese do século” na qual o STF decidiu em favor dos capitalistas dívidas tributárias que se transformaram em créditos tributários numa decisão que não recebeu desaprovação da esquerda liberal; ao contrário, a reação da esquerda liberal foi de completo silêncio sobre cifras que não poderiam ser ignoradas e que relevam a essência capitalista daquele tribunal. Não conheço sequer uma postagem num aplicativo digital de deputado ou líder de partido da esquerda liberal (instagram, face, twitter, “lives”, etc.) protestando contra esse mecanismo de assalto ao Estado pela via do STF.

 O Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) calculou que a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins poderia chegar a R$ 587 bilhões de reais. No entanto, a chamada “modulação dos efeitos” da decisão do STF, reivindicada por Paulo Guedes, que “mitigaria” o rombo fiscal do mega assalto ao Estado, ainda deixaria nos cofres dos capitalistas pelo menos R$ 358 bilhões! Não por acaso, a imprensa burguesa tratou a operação como sendo a “tese do século”, com efeitos tanto retroativos quanto no futuro: a bagatela rendeu às distintas frações do capital nada menos que R$ 93,4 bilhões (26,08% do montante), já compensados entre 2017 e 2020, enquanto outros R$ 56 bilhões deveriam ter sido pagos em 2021; o “restante” – míseros R$ 69,6 bilhões – devem ser quitados durante 2022. Nos anos de 2023 e 2024 a compensação de créditos deverá ser de R$ 47,8 bilhões e de R$ 44,1 bilhões, respectivamente. De 2025 em diante, estima-se que a compensação de créditos será de R$ 47,09 bilhões.

 O assalto ao Estado não se realiza, portanto, prioritariamente pelo roubo no orçamento da merenda escolar, num esquecido município, exibido com regularidade e em horário nobre na TV, destinado a arrancar gritos de indignação no eleitor mais indiferente. Da mesma forma e com o mesmo objetivo, o roubo bilionário orientado pelo interesse de classe não produz tanta indignação e atenção mediática quanto alguns milhões encontrados em malas num apartamento de ex-ministro dos governos da esquerda liberal ou um punhado de dólares na cueca de um insignificante deputado. A exibição exaustiva da pequena corrupção e a meticulosa investigação de um repórter preocupado com o desvio da merenda escolar oculta, precisamente, o mega assalto ao Estado autorizado pelos eminentes e respeitados juízes da Corte Suprema, justificado nas frestas da lei e da jurisprudência, destinado a proteger a propriedade capitalista. Portanto, a manufaturação da opinião pública em favor da moral burguesa não é operação trivial e menos ainda produto do improviso. Obedece, pois, a lógica implacável destinada a iluminar o roubo no varejo enquanto oculta o roubo no atacado: o gigantesco assalto ao Estado em favor da coesão burguesa.

 Acaso a esquerda liberal educa sua “base” para uma realidade que a imprensa burguesa oculta? Acaso os deputados e senadores, campeões de voto e hábeis na reprodução parlamentar, se ocupam de criar uma opinião pública contra a concepção que dirige a cabeça liberal de todos os ministros da Corte Suprema? Ora, basta observar a propaganda digital dos nobres parlamentares para comprovar que os assuntos estratégicos e os temas tratados pelo arbítrio da Corte Suprema simplesmente não ocupam a agenda da esquerda liberal. A “tese do século” é apenas uma das dezenas de causas que, com religiosa regularidade, são tratadas pelo egrégio tribunal sem que a esquerda liberal destine a devida atenção e denúncia. Assim, sequer é objeto de politização e, em consequência, termina por fortalecer a autoridade política da Corte Suprema. A representação parlamentar, portanto, não toca no nervo da dominação burguesa e termina por validar a força do judiciário como árbitro das questões políticas. De resto, é comum que uma decisão do STF contra um inimigo da esquerda liberal receba aplausos sem moderação, da mesma forma que produza lágrimas quando destinada contra alguma causa simpática a seus interesses eleitorais.

 Não há que perder de vista a trama em curso, pois tanto a reprovação quanto o elogio à Corte Suprema ocorrem no interior da crise da República burguesa, orientada pelos interesses imediatos e históricos da coesão burguesa sob a batuta de Paulo Guedes e do presidente protofascista. As decisões tem sido “progressistas” no terreno dos costumes e burguesas no terreno econômico-político. As causas identitárias são recebidas com benevolência e manifesta simpatia – sempre turbinadas pelos monopólios midiáticos – enquanto àquelas destinadas a organização do poder político e econômico são objeto de zelosas decisões em favor da burguesia. Nada de novo sob o sol, pois o divórcio, com enorme oposição da igreja católica foi, no Brasil, aprovado em plena ditadura, revelando que, mesmo uma ditadura de classe, pode tolerar e até mesmo estimular certa liberalização no terreno da moral burguesa.

 O ziguezague da esquerda liberal no labirinto da crise da República burguesa não constitui o roteiro completo da trama em curso. No lado oposto, a direita não vacila em acusar a Corte Suprema como um obstáculo objetivo ao programa ultraliberal, como único meio capaz de retirar o Brasil desse interminável vale de lágrimas. A orientação da direita encontra amparo nos trabalhadores que, de resto, possuem sobradas razões para não confiar na justiça burguesa, especialmente diante das decisões de todas as instâncias jurídicas realizadas após a renovação moral e doutrinária dos juízes baseadas, ambas, em manuais liberais do século passado. Portanto, as massas não somente desconfiam da justiça como, em muitos casos, temem a justiça. Milhões de brasileiros sabem, por experiência própria, que os tribunais assumiram um indisfarçável caráter de classe, tanto nas decisões amparadas no direito penal, quanto no civil. Embora milhões de trabalhadores ignorem as decisões suculentas no terreno tributário, as massas sabem que pagam a conta e, portanto, que pagam muito imposto. A burguesia insiste todos os dias que a “carga tributária” é elevada e, portanto, os preços poderiam ser menores e todos seríamos mais felizes caso o Estado tirasse esse e outros pesos de nossas costas. É por esse meio que a burguesia vocaliza o “interesse geral” das classes e captura para o programa ultraliberal a simpatia eleitoral e popular. Nesse contexto, a ultradireita estava mais preparada para enfrentar os tempos de crise do que a inocente esquerda liberal, razão pela qual tomou a iniciativa política desde que a crise mundial indicou a turbulência em 2008/2009.

 O protofascista Jair Bolsonaro atua nesse terreno munido com a precisão de uma bússola. Em consequência, não perde oportunidade para espetar as decisões da corte ou acusá-la abertamente de jogar contra os interesses populares e seu governo. A oscilação que pratica – ora atacando um ministro, ora pactuando com o tribunal – não perde o rumo: desacreditar por completo o sistema de justiça diante do povo e indicar, ainda que de maneira acidentada, que somente uma “ditadura” ou um regime especial, poderia impor a ordem nesse caos. A direita, de maneira clara, afirma não confiar na justiça e na lucidez de seus ministros, enquanto a esquerda liberal segue na defesa abstrata da democracia, silenciando diante de atrocidades decididas pelas cortes ou afirmando que os tribunais atuaram com justiça diante de uma causa qualquer de sua preferência ou da reprodução parlamentar. Na crise, não há possibilidade de vitória por parte da esquerda liberal e em qualquer caso, a concepção segundo a qual “algo deve ser feito” para parar os tribunais segue ganhando simpatia popular sob condução da direita fascista e seu presidente. A campanha eleitoral ainda não começou, mas não duvido em afirmar que será incapaz de reverter anos de propaganda e doutrinação em favor da reforma moral destinada a superar a “crise de valores” em que a República apodrece sob condução burguesa, como se os sucessivos escândalos de corrupção – tanto no atacado quanto no varejo – fossem frutos de desvios morais e jamais uma consequência necessária da relação ultra parasitária entre os capitalistas e o Estado, que marca historicamente o desenvolvimento capitalista, tanto no centro quanto na periferia.

 A prisão de um parlamentar desprezível – o deputado Daniel Silveira, PSL/RJ – é comemorada pela esquerda liberal como se fosse uma vitória da pressão popular nas redes digitais dos parlamentares e “dirigentes” partidários, da mesma forma que lamentam e denunciam a omissão da justiça em esclarecer, após tantos anos, o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ). Nessa oscilação, a esquerda liberal também adiciona algumas moléculas de desconfiança no sistema de justiça que, nas condições atuais, favorecem a ofensiva da direita rumo a alguma modalidade de Estado policial, ou mesmo reforma do sistema judicial no sentido de aprofundar os mecanismos legais para uma política ainda mais repressiva.

 Nada pode ser mais ilustrativo da situação atual do que as recentes decisões de Alexandre Moraes, pois na mesma investigação dirigida a incriminar o protofascista Bolsonaro por “fake news”, sob seu comando e aplausos entusiastas da oposição, o eminente juiz determina que as redes digitais do PCO, um partido completamente comprometido com a eleição de Lula na disputa presidencial desse ano, sejam canceladas. No dia em que escrevo esse artigo, a Polícia Federal prendeu o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, acusado de crimes tão sérios quanto recorrentes na vida política nacional; de imediato, observo a festa nas redes digitais (propaganda eleitoral) da esquerda liberal indicando que Bolsonaro – apesar de retirá-lo do cargo diante do escândalo de corrupção – seguiu emprestando sua fé na suposta correção moral do pastor evangélico enquanto ministro. No embalo da atuação política da PF e do STF, a esquerda liberal não conseguirá jamais a “despolitização do judiciário” e o quid pro quo seguirá servindo de munição para a agitação do protofascista contra os tribunais e a democracia restringida a que estamos historicamente submetidos em favor de uma modalidade qualquer de Estado policial.

 No lado oposto, a esquerda liberal segue aferrada ao bordão da “defesa da democracia” em abstrato sem ganhar a confiança e a mobilização das maiorias e, especialmente, os trabalhadores, para as tarefas históricas da Revolução Brasileira. Enquanto coleciona pequenas “vitórias” garantida pela ação política do judiciário, a esquerda liberal esquece que, no essencial, a crítica do sistema político segue sob condução da direita e da coesão burguesa que o apoia tanto no covil de ladrões, situado no Congresso Nacional, quanto na cumplicidade das distintas frações do capital com a política econômica conduzida pelo ultraliberal Paulo Guedes: garantia de super lucros à classe dominante na mesma medida em que estende a superexploração da força de trabalho, com ou sem carteira assinada, a milhões de trabalhadores.

 Ora, diante de um sistema político em plena decomposição, portanto em instabilidade permanente, em meio à turbulência mundial do sistema capitalista, que não oferece qualquer indicação de que os Estados Unidos – a cabeça do imperialismo – possa iniciar a recuperação da intensa crise cíclica inaugurada após junho de 2019, a esquerda liberal navega sem bússola no interior da República burguesa comandada pelo protofascista Bolsonaro. O desarme da esquerda liberal, sob comando do PT, e seu fracasso histórico após 14 anos no governo, não poderá ser superado pela reafirmação na chapa petucana Lula/Alckmin. Ao contrário, o impasse das eleições de 2018 que explicitou a ofensiva burguesa e sua guerra de classes contra os trabalhadores segue atual e ganhou vitalidade a despeito dos percentuais eleitorais indicados pelas pesquisas de opinião que embalam o otimismo eleitoral dominante nas filas da esquerda liberal.

 

Nildo Domingos Ouriques

Militante pela Revolução Brasileira

 

 

 

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