A ADESÃO DO PSOL A LULA E AO PT

 O PSOL caminha a passos largos para um acordo ainda no primeiro turno com o PT em apoio à candidatura Lula/Alckmin. A reunião da executiva do dia 11 de fevereiro decidiu por maioria (11 x 8) abrir uma negociação com o PT e Lula sobre a aliança. Em consequência, no dia 16 de fevereiro, o partido realizou uma conferência de imprensa destinada a apresentar uma “plataforma com propostas para a unidade da esquerda” que, na prática, é uma carta de adesão à candidatura do ex-presidente.

 Os últimos movimentos não constituem novidade alguma. O congresso do partido, realizado sob condições sanitárias absolutamente inaceitáveis e repleto de sérias denúncias sobre a legalidade de muitos procedimentos para aceitar ou excluir delegados, deixou claro que a esquerda liberal não vacilaria em validar, por qualquer método, sua hegemonia. Ademais, nos últimos três anos, as resoluções aprovadas por maioria nas sucessivas reuniões do Diretório Nacional jamais conseguiram orientar a militância mesmo por algumas semanas, revelando de maneira clara que o PSOL está orientado por uma concepção parlamentar de política, destinada tão somente a assegurar o fundo partidário e o fundo eleitoral, para os quais a superação da cláusula de barreira (mínimo de 10 deputados) é indispensável.

 A recente decisão do PSOL constitui, portanto, o corolário de uma trajetória longamente anunciada pela Revolução Brasileira nos últimos anos: a possibilidade do PSOL assumir um papel construtivo na conjuntura brasileira, buscando o protagonismo popular e afirmando seu caráter socialista está, completa e definitivamente, descartada. Agora, não restará ao partido senão a agonia da prática parlamentar limitada, o triste papel de “crítico bem comportado” do liberalismo de esquerda e sua completa e definitiva integração à ordem burguesa sob condução do PT.

 A afirmação do caráter socialista e revolucionário de um partido político num país periférico e dependente não é tarefa simples; exige reflexão profunda, um programa sólido e não poucos sacrifícios militantes. Hoje é fácil perceber que tamanho desafio não resultará de um processo eleitoral, pois precisamente nas disputas eleitorais observamos no PSOL sua profunda crise ideológica e política. Em larga medida, o PSOL tão somente repete, precocemente, a trajetória e os métodos que levaram à decadência moral, política, ética e programática do PT. Não cabe aqui uma sentença sobre as possibilidades eleitorais do partido, mas é indispensável um alerta contundente sobre um itinerário que já desperta a atenção e a crítica de milhares de filiados e simpatizantes.

A candidatura Glauber

 O deputado Glauber Braga anunciou, no dia 10 de maio de 2021, sua pré-candidatura à presidência na vã ilusão de que existiam “contradições internas” na hegemonia liberal do PSOL suficientemente fortes e importantes para mudar o resultado do congresso em favor de uma candidatura própria no primeiro turno das eleições presidenciais; nossa corrente, a Revolução Brasileira, jamais se enganou com essa possibilidade. No entanto, desde o anúncio naquele distante maio, observamos com atenção a campanha de Glauber que, para nossa surpresa, foi menos que modesta, especialmente se considerarmos o ambiente favorável em função das condições sanitárias permitidas com o avanço da vacinação. Portanto, a timidez da pré-candidatura não se explica pelas restrições outrora impostas pelos riscos do contágio e as consequentes ameaças à vida. Ora, num balanço inicial, Glauber visitou apenas 6 estados, incluindo o Rio de Janeiro; foi, de fato, uma campanha sem qualquer ambição. Por que? Ademais, a iniciativa da pré-candidatura tampouco esteve marcada por um esforço midiático necessário para influenciar os delegados e a base partidária; tampouco é compreensível uma campanha “interna” sem ter como objetivo alcançar as grandes massas, organizações populares, sindicatos. Glauber não orientou seu discurso para criticar abertamente os perigos emanados da conciliação de classes e menos ainda a necessidade de um partido político capaz de oferecer uma alternativa que, em curto espaço de tempo, será absolutamente necessária diante da imensa crise brasileira.

 As observações anteriores não constituem enigma algum. As razões do conteúdo e alcance limitado da campanha de Glauber expressam de maneira clara a incapacidade da “ala esquerda” do partido em romper com o liberalismo de esquerda e enfrentá-lo até o fundo e o fim. Na realidade, o programa por ele apresentado expressa um amálgama de medidas cuja inspiração última é o obsoleto “programa democrático e popular” do PT que foi devidamente arquivado pelo desenvolvimento capitalista e a luta de classes no Brasil. De resto, um somatório de medidas de inspiração keynesiana com pitadas de identitarismo e a luta de causas é incapaz de tocar no nervo da opressão e exploração capitalista historicamente consolidada na coesão burguesa que conduz o país desde 1994.

 Portanto, é mais do que claro que sua candidatura apenas marcou posição com hora marcada para terminar: no segundo turno, afinal, todos estarão com Lula e Alckmin! Nesse contexto, o lançamento de uma candidatura no primeiro turno jamais superou a disputa interna entre as tendências do partido que perderam a capacidade de conduzi-lo, em acordo com a maioria liberal hoje dominante. É claro que Lula, navegando nos índices atualmente favoráveis das pesquisas eleitorais, simplesmente não considera – mesma de maneira protocolar – um acordo com o que restou da esquerda no Brasil. Ao contrário, Lula move-se cada dia mais para a direita na vã tentativa de romper o monolitismo da coesão burguesa conduzida pela política econômica de Paulo Guedes.

 A esquerda liberal julgou que os ares oriundos dos Estados Unidos sob condução de Biden – o suposto renascimento do espírito rooseveltiano –, criaria as condições necessárias para articular, na periferia capitalista, uma proposta de extração keynesiana capaz de sustentar as quinquilharias ideológicas que alimentaram a digestão moral da pobreza produzida em 14 anos de governos do PT (mercado interno, fortalecimento dos monopólios, o fetiche da política de salário mínimo, etc.). Os formuladores ingênuos e oportunistas do programa desenvolvimentista esqueceram que vivemos num país periférico. De resto, fecharam os olhos para a crise cíclica aprofundada a partir de junho de 2019 – portanto, antes da pandemia – que bloqueou radicalmente essa possibilidade que habita os sonhos dourados dos liberais de esquerda. Lula, portanto, navega nos marcos dos interesses da burguesia na pretensão de outorgar um rosto humano à superexploração de milhões de trabalhadores no país e o aprofundamento da dependência.

As ilusões alheias e as próprias 

 Mas o PSOL, além de adotar ilusões “alheias”, também é pródigo na produção de suas próprias ilusões. Um somatório de causas rende mandatos, mas não solda um programa, nem jamais produziu uma alternativa real para a maioria do povo. A experiência do PSOL se resume a disputas eleitorais sem jamais convocar sua militância e a simpatia que, de fato, despertou para a árdua e decisiva tarefa do debate programático necessário para estabelecer o caminho da Revolução Brasileira. Ora, sem esse elementar horizonte estratégico, o partido expressa apenas o desmedido apetite eleitoral e – tal como demonstra o exemplar caso do Rio de Janeiro – ficou prisioneiro não somente do cretinismo parlamentar, mas especialmente do oportunismo político. Nessas circunstâncias, carente de horizonte socialista, a hegemonia liberal do partido é adestrada na estranha arte de assumir receitas além-mar para resolver dilemas próprios de um país dependente e subdesenvolvido.

 No PSOL, o entusiasmo pelo Podemos espanhol – para dar apenas um exemplo – foi quase completo. Nas filas da esquerda liberal já se tornou um padrão de comportamento não prestar contas teórica e política das opções assumidas no ano anterior. No Brasil, especialmente no PSOL, não há memória histórica alguma, pois o destino do partido está confinado, quando muito, num assento no parlamento. O apreço pelo Podemos espanhol, glamourizado na periferia latino-americana pela figura de Pablo Iglesias – e depois pela defunta “geringonça” portuguesa – já foi devida e completamente arquivada, como se jamais tivesse existido, após a confissão de impotência completa do jovem espanhol em nada menos do que… abandonar a política! O mesmo hábito da importação da ideologia oriunda da Europa, se reproduz com cada vez mais força, no reforço da importação das quinquilharias ideológicas dos Estados Unidos. É verdadeiramente espantoso observar o apreço pelas posições defendidas por Bernie Sanders no Partido Democrata dos Estados Unidos no interior do PSOL.

 Ora, uma disputa presidencial exige, antes de tudo, um enfrentamento sério e decidido contra a hegemonia liberal que levará o partido para a adesão a Lula ainda no primeiro turno; nesse contexto, a disputa não deveria ser apenas para marcar posição, pois estava em jogo – em larga medida já decidido – a própria sobrevivência do compromisso socialista no interior do partido. Ademais, são eloquentes os indícios que a adesão incondicional, agora em curso, poderá ter como corolário a participação num eventual governo Lula/Alckmin. Em consequência, uma verdadeira disputa no interior do partido, nas circunstâncias atuais, implica em assumir abertamente o conflito pelo caráter e função do PSOL. No entanto, Glauber está impedido de assumir essa disputa por razões óbvias: seu tímido protesto tem como limite o segundo turno das eleições presidenciais, nas quais ele já reservou, sem cerimônia alguma, publicamente, o voto em Lula/Alckmin. Assim, o milhar de assinaturas que lançou à disputa interna e a propaganda sobre os 48% que discordam da orientação dominante sequer teve força para manter-se unido até o fim da disputa, pois o MÊS foi lentamente, uma vez mais, se deslocando do apoio até abandoná-lo completamente em função de seus próprios interesses eleitorais.

 A verdade do PSOL como partido não reside, no entanto, na disputa eleitoral do primeiro turno. Ao contrário, a verdade do PSOL está precisamente na opção do segundo turno! No entanto, posto que a concepção parlamentar de política é predominante nos dois bandos em disputa no interior do partido, nas questões estratégicas não há divergência e, no limite, leva águas no moinho das forças dominantes que decidiram a adesão a Lula, pois parecem mais “realistas” e, de fato, considerando o pragmatismo rasteiro que as orienta, são mais realistas… no terreno do pragmatismo burguês! Essa é a razão pela qual o apelo extemporâneo de Glauber não tinha qualquer possibilidade de mudar a orientação adotada no último Congresso Nacional, destinada à adesão da candidatura de Lula.

 De resto, é necessário registrar que a “dissidência” que pretendia salvar as aparências de um combate socialista, de olho nas disputas eleitorais que se avizinham, também ajudou a construir a hegemonia liberal-lulista em todas as reuniões anteriores do Diretório Nacional, negando as sucessivas iniciativas que apresentamos para abrir as suas reuniões aos filiados e simpatizantes. Assim, nem a tendência majoritária e tampouco a tendência dissidente tinham qualquer compromisso em realizar o que chamamos “abrir o partido” para a militância, diminuindo, no seu interior, a presença crescente dos meramente filiados e da pequena burocracia partidária originada com militantes profissionalizados em mandatos de vereadores, deputados e prefeitos.

Ausência da vanguarda

 A constituição de uma vanguarda política, portanto, segue como tarefa inconclusa e aberta diante do desafio da crise que se desenrola lenta e silenciosamente. Qual a feição que essa vanguarda assumirá no desenrolar da crise e na dialética inerente à Revolução Brasileira? Impossível prever. No entanto, a recente adesão do PSOL a Lula revela que o fracasso histórico do PT não foi apreendido como lição decisiva de nosso tempo e mantém – por limitações político-ideológicas ou interesses pequeno-burgueses – o PSOL cativo das mesmas ilusões e do mesmo oportunismo político. Ora, o comportamento de Marcelo Freixo, no Rio, ou de Boulos, em São Paulo, para dar apenas os exemplos mais ilustrativos e miseráveis, não constituiu apenas expressão de opções individuais nas quais os limites em breve todos poderemos ver, mas é resultado de uma trama conduzida até agora tanto pela “tendência majoritária” quanto pela “esquerda partidária” no interior do PSOL. Esse comportamento político – com a pobreza da práxis centrada nas disputas eleitorais no contexto de um sistema político apodrecido até suas raízes – revela que a esquerda ainda não soube resolver uma questão elementar: a luta nos marcos da democracia burguesa para avançar na direção da consciência e práxis revolucionária. Os dilemas ou opções inerentes à luta dentro da ordem, mas contra a ordem – elucidadas de maneira clara no processo brasileiro pré-64 ou na derrota de Allende no Chile – sequer são lembrados pelo que restou da esquerda no Brasil. Esse dilema e as opções decorrentes se tornam ainda mais agudas quando consideradas à luz da crise atual, uma vez que o PSOL também julga – tal qual o PT – que a mera eleição de Lula abrirá as portas para a recomposição da crise da República burguesa, num processo de conciliação de classes sem protagonismo das classes subalternas.

 Após a destituição de Dilma e, especialmente após a vitória do protofascista Bolsonaro, o bordão preferido do PSOL – mas também de setores do PT, PCB, UP, etc. – consistia precisamente em afirmar que o tempo da conciliação de classes havia sido superado para sempre. Palavras ao vento! Na exata medida em que o choque da derrota eleitoral diminuiu e a ofensiva burguesa assumiu feição mais nítida no governo Bolsonaro, a consciência ingênua cresceu nas filas da esquerda liberal. No entanto, foi precisamente após a liberdade concedida a Lula, pelo mesmo sistema de justiça que o levou a cadeia e o tirou da última disputa presidencial, que os mais radicais defensores do “fim da conciliação de classes” pediram novamente sua readmissão e foram os primeiros a gritar a plenos pulmões por uma “frente de salvação do país”, na forma cínica de uma “frente de esquerda” que somente existe em suas próprias cabeças e na exata medida de suas ilusões.

 É preciso recordar o essencial: um processo de aliança de classes destinada a “disputar a hegemonia” no processo, requer – no mínimo – um intenso ativismo das classes populares. Porém, orientada pela concepção parlamentar de política e nutrida pelo esforço das políticas de reconhecimento no interior da ordem burguesa, os chamados movimentos sociais revelam não somente a impotência, mas o beco sem saída em que a esquerda se encontra. Tal como anunciamos sucessivas vezes, as políticas de reconhecimento no interior da ordem burguesa constituem o terreno exclusivo da classe dominante e somente de maneira marginal e parlamentar, poderiam “avançar” na conquista de direitos. Ora, os trabalhadores se encontram não somente divididos em centrais sindicais submetidas à razão de partido, mas sobretudo atônitos em função da ausência completa do referencial socialista e da revolução social. Nesse contexto, são presas fáceis inclusive da extrema direita – tal como apareceu na disputa eleitoral de 2018 – que pode, ela também, ganhar milhões de votos simulando um radicalismo contra a República burguesa. A propósito, a despeito do aprofundamento da crise – elevado desemprego, queda acentuada da renda e dos salários, etc. – o caráter da disputa eleitoral de 2018 não foi dissipado para 2022, razão pela qual não há dúvidas que o protofascista pretende figurar como candidato antissistema, enquanto Lula/Alckimin serão a expressão mais acabada do que a direita afirmará como “a antiga política”. Um processo eleitoral sem o radicalismo de esquerda tende a ser como já se insinua, tanto ultra ideologizado quanto profundamente despolitizado. Ou seja, os temas ultra ideológicos (luta contra o comunismo, contra a moral burguesa e a corrupção), devem ganhar o centro da disputa, enquanto temas de relevância política (a concentração da propriedade fundiária e urbana, a superexploração da força de trabalho, o assalto ao Estado, etc.), tendem, por sua vez, à subalternização… Enfim, a direita radicaliza enquanto a esquerda liberal tenta a conciliação! Não há dúvidas que se trata de um terreno fértil para nova vitória eleitoral e política da direita.

A natureza específica da crise atual

 A incompreensão sobre a natureza da crise atual conduziu o PSOL – e também a pré-candidatura Glauber – para novo erro de consequências históricas graves. A ofensiva burguesa, decidida ainda durante o chamado ajuste praticado por Dilma Rousseff, não tem sido observada com seriedade. A ilusão da esquerda liberal, encabeçada pela candidatura Lula/Alckimin – e apoiada pelo PSOL, mesmo quando exibe cinicamente seu descontentamento e impotência com a aliança petucana – consiste precisamente em supor que uma aliança eleitoral pode fazer frente à efervescência social que brotará em função da crise em curso e da administração ultraliberal da mesma. Ademais, alimenta a perigosa ilusão segundo a qual bastaria administrar de maneira republicana a crise para soldar uma aliança de classe destinada a bloquear o caminho das forças reacionárias encabeçadas por Bolsonaro. Ora, a iniciativa da burguesia no covil de ladrões (congresso nacional), destinada a criar um “semi-presidencialismo” é uma indicação clara que o regime político atual não atende seus interesses estratégicos e que tampouco vacilará em jogar para o lixo da história a democracia restringida que sofremos desde a exaustão da ditadura em 1985. A coesão burguesa, diante do avanço do capitalismo dependente rentístico e em resposta às exigências e oportunidades abertas pela crise cíclica mundial em curso, não vacila em elevar o grau de exploração da força de trabalho, turbinar a concentração e centralização do capital em todas suas frações, assaltar o Estado por meio da política fiscal, monetária e cambial e, por fim, eliminar os mecanismos inerentes à regulação keynesiana nas mãos de um presidente da República, tal como o fez com o Banco Central.

 Diante dessas circunstâncias, supor que uma frente eleitoral, alimentada por todas as limitações e conveniências de Lula e do PT, poderia sustentar uma aliança de classe sem apoio real e ativo da massa dos despossuídos, é ignorar o elementar e, mais grave, alimentar ilusões de que poderia enfrentar as tarefas históricas necessárias para derrotar a ofensiva burguesa. É óbvio que somente os interesses mesquinhos da concepção parlamentar de política podem aderir a tamanha ilusão. De resto, é mais do que claro na história do Brasil que, mesmo quando comparado com presidentes profundamente desgastados diante do eleitor, o parlamento sempre recebe avaliação mais negativa do conjunto da classe trabalhadora. As massas no Brasil não aprovam o parlamento! Em consequência, todo ativismo político destinado a fortalecer a presença parlamentar da esquerda cai num terreno que não desperta a simpatia desde uma perspectiva popular. O reconhecimento histórico do repúdio e a desconfiança que as massas manifestam em relação ao parlamento, não anulam a necessidade das disputas eleitorais; no entanto, exigem que a esquerda confira à disputa parlamentar um novo radicalismo de esquerda destinado a denunciar os limites objetivos do atual sistema político. Porém, ao contrário, o que qualquer neófito pode observar é que precisamente a esquerda liberal segue alimentando cada uma das ilusões sobre a atuação parlamentar e jogando águas no moinho da coesão burguesa e seu protofascista na presidência.

 Os esforços destinados a “salvar o PSOL” são, nesse contexto, inúteis e estéreis porque não tocam no nervo da disputa atual. Não bastaria defender um programa para afirmar o caráter socialista do PSOL e, logo após a cena, aderir à candidatura da esquerda liberal, como se nosso futuro dependesse de uma eleição e não pudesse ultrapassar os limites político, programáticos e ideológicos impostos pela antiga adesão de Lula e o PT à ordem burguesa e a pretensa administração mais competente e sensível aos interesses da coesão burguesa, sedimentados com a virada operada em 1994 por meio do Plano Real. Os riscos agora são muito maiores! É preciso, em primeiro lugar, um diagnóstico apegado às imensas transformações no sistema capitalista impulsionadas pelo consórcio petucano (1994-2016) que consolidou o capitalismo dependente periférico sob domínio da fração financeira e a drástica reconfiguração do Estado nacional em favor de seus interesses. Por outro lado, é fácil perceber que Lula/Alckmin não indicam, sequer sutilmente, qualquer mudança de rumo que afronte os interesses da coesão burguesa e os interesses da dominação imperialista no Brasil.

 Nesse contexto, tem sido um artifício tolo e igualmente destinado ao fracasso indicar o “erro” da aliança de Lula com o tucano Alckmin. O problema reside em Lula e no PT, jamais em seu vice. Ao contrário, a escolha de um tucano, governador de São Paulo, é fruto das opções conscientes tomadas pelo ex-presidente e seu partido. Não há erro! Aqueles que imaginam a madre Teresa de Calcutá como vice ou mesmo um “político burguês de esquerda” não fazem menos do que cobrir a cabeça com o cobertor curto, deixando, obviamente, os pés expostos. Essa é a razão pela qual o discurso de Lula, até o momento, evita qualquer disputa e definição em matéria de política econômica, da mesma forma que silencia sobre questões essenciais sobre o funcionamento do Estado e do sistema político. Não é a suposta sabedoria e cautela que dirige o comportamento de Lula, mas precisamente a voracidade da crise que exibe a timidez dos liberais de esquerda diante de opções estratégicas. Há anos entramos numa lógica de situações extremas em que somente a direita brasileira – por meio de sua coesão burguesa – disputa ideologicamente as massas. É óbvio que a redução da política à moral, praticada pela esquerda liberal, é incapaz de oferecer, nos marcos do sistema, uma resposta para as maiorias por meio de sua condenação moral à violência, à exploração e à opressão de milhões de trabalhadores.

 A coesão burguesa alinhada no programa de Paulo Guedes encontra-se, portanto, em condições eleitorais super favoráveis: nas próximas eleições não haverá oposição ao programa ultraliberal em curso. A crítica ao “neoliberalismo” é, nas circunstâncias atuais, incapaz de criar as condições para um programa alternativo. Ademais, com Bolsonaro ou Lula, a coesão burguesa encontrará o essencial de seus interesses contemplados de maneira segura e, em consequência, restará tão somente à esquerda liberal a antiga e desgastada digestão moral da pobreza, orientada por programas sociais ainda mais modestos do que aqueles que praticou em 14 anos de governo.

 A crise atual não é fruto de políticas recessivas ou escolhas “equivocadas” de política econômica; menos ainda, a crise atual não se explica por “erros” nas alianças e na condução dos assuntos de Estado durante 14 anos de governos petistas. Os “erros” políticos e as decisões “equivocadas” na política econômica somente se explicam como produto necessário das transformações capitalistas em curso no país. O capitalismo de base industrial, impulsionado por políticas desenvolvimentistas, capaz de criar um orgulho burguês num país periférico e dependente, cujo epicentro foi São Paulo, não passa de uma peça de museu. Essa é a razão elementar pela qual milhões de brasileiros – de fato, a maioria absoluta de nosso povo – jamais conseguiu elevar a cabeça dois centímetros acima da miséria em que objetivamente se encontra. É também a razão pela qual, em longos 14 anos de governo do PT, o povo jamais foi convocado para qualquer batalha que elevasse seu nível de consciência e organização (nem mesmo a erradicação do analfabetismo!), necessário para enfrentar o despotismo burguês que orienta as ações do Estado.

 O sistema petucano – a alternância entre petistas e tucanos na condução do programa que produziu o capitalismo rentístico no Brasil – não foi capaz e nem poderia conceder “cidadania” ao nosso povo, tal como pretende o liberalismo de esquerda. Em longos 20 anos (1994-2016), tal sistema aprofundou a alienação política, a dependência científica e tecnológica, limitou gravemente a soberania política, revelou completa incapacidade para criar uma doutrina militar necessária para tirar as forças armadas da orientação e controle de Washington, concentrou de maneira inédita a terra no campo e na cidade, com enorme ampliação da fronteira agrícola, acelerou a monopolização e atuação do capital externo no chamado mercado interno e criou um sistema de dívida pública que condensa o essencial da valorização fictícia para todas as frações do capital. O sistema petucano no governo – especialmente eficaz nos governos petistas – criou as condições para a ascensão do protofascista e seu programa ultraliberal. Como poderia agora, diante de sua própria obra, na condição de oposição ao protofascista, figurar como alternativa aos interesses burgueses que alimentou por duas décadas?

Nildo Ouriques

Militante pela Revolução Brasileira

 

 

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Comentários

  1. Crítica irretocável. É preciso encontrar o caminho para juntar as forças com outros setores igualmente críticos e dispostos a construir a almejada Revolução Brasileira.

  2. Belo comenfário camarada Nildo.
    Esse sistema petucano me recorda muito a situação dos social democratas da Alemnha na segunda Internacional. O Psol de fato parece abraçar hoje uma luta economicista de causas imedatas deixando a disputa da radicalidade nas mãos dos protofacistas de direita.
    Acho que o partido padece também de um maior debate político para a orientação de suas ações. Por isso venho cada vez mais simpatizando com a RB. Saudações de um.militante de base do núcleo 8 de março.

  3. Saudações camarada Nildo. Ok, um tanto pedante e cansativo o texto, dá pra concordar com umas partes, mas acho que falta política, não é? Afinal, o que vamos fazer agora, se disputar a orientação do partido é “ilusão”? Qual o problema de a candidatura Glauber ter como horizonte o voto crítico em Lula no segundo turno? Segundo suas próprias palavras, Bolsonaro é protofascista, Lula não. Vota em Lula lá, meu bom, dá nada. Ou tá pensando em anular, ir pra Paris?…

    Concordo que a crise do capitalismo é gigante, a crise do PSOL é terminal, mas depois dessa análise toda você propõe o quê? Gostaria de em breve estar discutindo concretamente a criação de um novo partido, que unifique algumas organizações revolucionárias do Brasil. Talvez uma última batalha contra a liquidação do PSOL seja determinante nesse passo (novo partido) que os revolucionários vamos ter que dar no futuro. E vem cá, existe uma esquerda partidária, algo que você coloca entre aspas como se fosse pouca a diferença entre aqueles que defendem a independência do partido e aqueles que querem transformá-lo num puxadinho do PT.

    1. Lula e Bolsonaro são expressão da mesma república apodrecida. Lógico que há diferenças em um ponto ou outro, mas no que diz respeito ao enfrentamento da classe dominante, nenhum deles pode fazê-lo. Pelo contrário, os dois lutam pelo fortalecimento da classe dominante, enquanto um o faz mais abertamente e o outro não.

      A solução para isso é construir a Revolução Brasileira. Nossa organização luta por essa construção.

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