As forças armadas e o governo Bolsonaro

“A sedução da ditadura é um dos malefícios contra o qual nos devemos precaver, opondo-lhe a clareza do pensar crítico, sob a forma de interpretação logica do curso histórico. Tal sedução apresenta graus variáveis de em suas manifestações. Vai desde os casos mais primários, expressos em julgamentos obtusos como estes: “Só matando esses canalhas é que este país endireita”, “É preciso um pulso de ferro para botar isto nos eixos” e infinitos outros do mesmo jaez, até as insinuações mais elaboradas, que se dão conscientemente em forma de doutrinas totalitárias, passando pelas modalidades intermediárias da prédica jornalística ou parlamentar de estados de exceção, como recurso extremo para a revisão moral da máquina administrativa e expurgo dos elementos maculados”

Álvaro Vieira Pinto, Consciência e realidade nacional, 1960

 

O apelo ao caráter institucional das forças armadas ecoou com ímpeto renovado na semana passada; sua essência liberal-burguesa é tão indiscutível quanto impotente. Na América Latina, somente a amnésia histórica, a completa ignorância ou a cínica cumplicidade com a ordem dominante poderiam afirmar ou defender a institucionalidade das forças armadas. Afinal, em nosso continente, as ditaduras, o terrorismo de Estado, o intervencionismo dentro e fora do país foram e seguem sendo precisamente executados pelas forças armadas e não, necessariamente, sob a proteção das constituições. Portanto, forças armadas neutras, institucionais ou despolitizadas não passam de ilusão perigosa e fatal para as classes populares. No contexto latino-americano, o brado liberal pela institucionalização das forças armadas revela também enorme ignorância sobre a dominação imperialista, o meticuloso acompanhamento realizado pelo Instituto de Cooperação e Segurança do Hemisfério Ocidental (Western Hemisphere Institute for Security Cooperation) e, em alguns casos, o controle direto que as forças armadas da região sofrem desde Washington.

A raiz da troca de ministros da área militar operada por Bolsonaro é considerada por muitos como “crise militar”. Ciro Gomes, por exemplo, julgou o episódio como um sinal de que “os militares estão se desencantando com as loucuras que Bolsonaro tem praticado no Brasil” e, ademais, seria uma indicação de “que eles querem retornar o melhor respeito que sempre deveriam ter merecido se não fora a aventura, o equívoco, de terem hoje quase 4 mil militares da ativa dentro do governo”. Para concluir, afirmou que a troca de vários comandantes com uma canetada só, enviava para “dentro da tropa… uma mensagem inequívoca de que eles não aceitam – e eles representam a liderança formal daqueles que estão na ativa – o apelo golpista dos setores bolsonaristas que querem envolver as forças armadas na politicagem.”

O postulado que nega o envolvimento “das forças armadas na politicagem” é tão simpático quanto ingênuo. Afinal, 11 mil militares – da ativa e reserva – em postos de governo (nos três poderes), assinalam até mesmo para o mais desavisado acadêmico algo que parece faltar ao candidato presidencial do PDT: realismo elementar. A magnitude do fenômeno (11 mil militares segundo informação do TCU, outras fontes indicam 6.000), aliado ao protagonismo político das forças armadas nos últimos anos, não nos subsidiam para afirmar que estamos diante de uma “aventura” da cúpula militar, mas de algo mais estendido e profundo que o envolvimento na “politicagem” nacional.

Lula manteve sepulcral silêncio. Nesse caso, de fato, não é necessário declaração alguma para avaliar o que ele pensa sobre a situação atual, afinal o ex-presidente foi durante 8 anos o comandante em chefe das forças armadas. Ninguém poderá livrá-lo da responsabilidade de não ter durante sua longa presidência (e outros 6 de Dilma), sequer um esboço de uma nova doutrina militar para o Brasil. As declarações de Lula sobre os militares se resumem a temas relativos ao orçamento das forças armadas e ao respeito que ele manteve ao não interferir na sua dinâmica interna. É preciso dizer mais? Ambos – Lula e Dilma – são responsáveis diretos pela impunidade que protegeu os crimes de militares durante 21 anos de ditadura. Nem sequer tocou no nervo da questão a Comissão da Verdade constituída por Dilma, que, sabidamente, sofreu na carne a prisão e a tortura. Mas também não podem negar a responsabilidade pela atual hegemonia no interior da caserna.

Na verdade, Lula e Ciro apenas expressam a visão corrente entre os políticos brasileiros. Expressam também as ilusões inerentes à esquerda liberal sobre a natureza do Estado e a função das forças armadas. O primeiro acumula responsabilidade direta sobre a situação atual dos militares, afinal, todos os generais que brilham no governo Bolsonaro foram promovidos e tiveram posições de mando em governos petistas. Não há notícia – aberta ou reservada – de um único documento ou iniciativa presidencial destinada a enfrentar o decisivo tema da formação de nossos militares e o objetivo estratégico de uma doutrina militar em tempos de democracia burguesa. Nenhuma linha! Nenhuma ação! Portanto, a continuidade da formação militar e a doutrina que a informa durante a ditadura e no período da democracia liberal burguesa é completa!

Não se trata de um descuido. Tal ausência é consequência direta da renúncia do petismo em lutar pelo poder, restringindo-se, miseravelmente, a manter seus governos. De fato, os governos petistas não produziram qualquer mudança nas estruturas do Estado brasileiro em favor das classes subalternas; ao contrário, produziram mudanças estruturais que fortaleceram a classe dominante. Portanto, a ausência de uma única iniciativa destinada a mudar a formação dos militares brasileiros e o esboço de uma nova doutrina militar não é um descuido, mas, precisamente consequência necessária da concepção liberal de política que defendem.

 

As ilusões liberais hoje

A crise da república burguesa é visível; no entanto, os políticos vulgares semeiam a ilusão de que a eleição de um novo presidente com algum compromisso popular e respeitoso da liturgia do cargo em 2022, poderia colocar as coisas no eixo. É grave engano, mesmo quando bem intencionado! A crise da república burguesa é produto do avanço do capitalismo dependente rentístico que não visualiza saída fácil no curto prazo. As dores do parto inerentes ao surgimento de um novo regime político, em consequência, serão sentidas durante um tempo considerável entre nós. Não devemos, portanto, excluir qualquer movimento das forças armadas do quadro geral da crise e da transformação do regime político agora em curso.

A esquerda liberal ignora a crise do sistema político; considera a eleição de Bolsonaro um ponto fora da curva e jamais o próprio movimento da curva! Ora, o enorme protesto popular de junho de 2013, a virada recessiva imposta por Dilma em janeiro de 2015, sua destituição em agosto de 2016 e a eleição do protofascista em 2018 são considerados acidentes de percurso, mera tentativa de forças aleatórias ou contingentes de subverter a paz da república por fora de seu dinamismo interno. É claro que ocorre precisamente o oposto: nenhum desses eventos podem ser devidamente analisados e compreendidos fora da crise da república burguesa e, no limite, da incompatibilidade entre o sistema político e a dinâmica da acumulação de capital decorrente do capitalismo dependente rentístico. Todos os eventos mais marcantes e muitos outros de “menor” importância, representam precisamente a crise em movimento. Qual crise? A crise da república burguesa apodrecida até sua medula.

Há forças concretas na sociedade brasileira que não mais acreditam na capacidade de auto regeneração do sistema político – parlamento, tribunais, executivo, imprensa, governos estaduais, etc. – razão pela qual conspiram e bradam abertamente pela volta da ditadura ou de um estado policial de perfil e conteúdo ainda indefinido. No turbilhão da crise e diante da cumplicidade da esquerda liberal com a podridão do regime político, amplos setores sociais – especialmente marcante entre os trabalhadores – apoiam o projeto do protofascista que ocupa a presidência pois ele ainda simula bastante bem que permanece em “luta contra o sistema”.

A podridão do sistema político possui expressão cada dia mais clara. Em primeiro lugar o repúdio à política eleitoral que se expressa na quantidade de votos brancos, nulos e no abstencionismo. Em segundo, o efeito da crise cíclica mundial que reduz a capacidade do Estado na periferia capitalista em atender as crescentes demandas populares em defesa da vida e do trabalho. Em terceiro, a emergência da ultra direita com capacidade de interferir no processo eleitoral e ambição de construir um movimento de massas. Finalmente, o desgaste da esquerda liberal em escala continental com notória incapacidade de oferecer uma alternativa real de poder, limitando-se, tão somente, ao esforço cada dia mais precário de garantir seus governos.

As armas da esquerda liberal diante da crise da república burguesa restringem-se, na prática, à filantropia e à defesa abstrata da democracia. A primeira – a filantropia – é filha de sua luta por “justiça social” nos marcos do sistema capitalista. A segunda – a defesa abstrata da democracia – inscreve-se em sua filiação à democracia como um valor universal. Portanto, os “erros” ou “vacilos” da esquerda liberal ou suas ilusões cada dia mais impotentes diante de fatos elementares da luta política no país, são produto de escolhas estratégicas realizadas nas últimas décadas. Uma esquerda liberal não é uma esquerda socialista ainda que aqui e acolá bradem pelo socialismo como “modelo ideal”. A bandeira do socialismo e da revolução está órfã!

A defesa abstrata da democracia consagra o atual sistema político e antagoniza a esquerda liberal com setores importantes das classes subalternas que sofrem com a crescente pobreza, miséria e violência do sistema em crise. A defesa e implementação de programas sociais foram também adotadas pela direita – Michel Temer e Bolsonaro seguem pagando o bolsa família – razão pela qual a filantropia praticada até ontem como prática da justiça social possível na periferia do sistema, também outorga “rosto humano” à direita.

 

A esquerda e os militares

Na verdade, há na atualidade, um abismo entre a esquerda e os militares. É um abismo construído ao longo de várias décadas. A situação expressa em larga medida a ingenuidade da esquerda liberal e sua incapacidade crônica de tocar nos temas relativos ao poder, os temas inerentes à revolução brasileira. Ora, desde que a “crise” militar emergiu com a troca de comando nas três armas, promovida pelo protofascista, é fácil constatar que, no interior da esquerda, tanto a “análise” quanto a “informação” considerada, decorrem de maneira geral da imprensa burguesa – CNN e Globonews – e não de protagonistas internos em conflito no interior das forças armadas. Portanto, é necessário dizer que a esquerda na atualidade ignora por completo o que de fato ocorre no interior das forças armadas.  A existência de uma “ala golpista” e outra “ala institucional”, longe de constituírem forças reais em conflito no seio das forças armadas, representa antes mera ideologia que revela a incapacidade da esquerda diante de um fenômeno da mais alta importância na crise brasileira sob hegemonia da classe dominante e do governo ultraliberal.

Nem sempre foi assim, é necessário lembrar. No pré-64, a esquerda tinha considerável influência nas três armas, razão pela qual milhares de militares foram presos, torturados, exilados, mortos ou colocados na reserva durante a ditadura. O regime cívico-militar de 1964 logrou cortar essa conexão pela raiz. No entanto, a partir de 1985, com o fim da ditadura – lá se vão quase 30 anos! – a verdade é que a esquerda devota das disputas eleitorais sem projeto de poder, jamais deu a devida atenção aos militares. É fácil perceber que o “tema militar” permaneceu cativo dos acadêmicos com as limitações típicas da profissão. Mas os acadêmicos não fazem revolução e a maioria sequer pretende atuar como intelectual público. Há, em consequência, farta documentão disponível e muitas hipóteses para observação, mas não articulação real dentro das forças armadas.

A fé na força da democracia permaneceu sólida no debate público até agosto de 2016, quando a consciência ingênua representada pelo petismo despertou de sua letargia com a queda de Dilma. Era tarde, sabemos agora. No entanto, a destituição sem luta de Dilma não abalou as convicções liberais da esquerda; ao contrário, diante da mudança radical da conjuntura, a esquerda liberal aferrou-se ainda mais à “defesa da democracia” centrando sua crítica no caráter golpista da “oposição de direita” sem sequer dar uma olhadinha para os movimentos no interior da caserna. Os militares somente “emergiram” na cena política por um tweet do General Vilas Boas às vésperas de uma decisão do STF sobre os processos contra Lula em abril de 2018. Não é patético? No entanto, desde o primeiro dia do governo do protofascista, a “presença” militar era intensa e deveria ter sido motivo para uma reflexão sobre o fenômeno. A esquerda liberal permanece nesse – como em outros tantos temas – interditada pela própria responsabilidade na crise atual, razão pela qual mantém silêncio eloquente nas questões decisivas relativas à luta pelo poder.

A despeito da ignorância e cumplicidade da esquerda liberal, a hegemonia atual das forças armadas é clara. Alinhadas com a política imperialista dos Estados Unidos, seguem alimentando o anti-comunismo; mantêm-se alerta sobre o inimigo interno derivado da doutrina de segurança nacional e professam um nacionalismo de direita e cosmético que reforça o poder tanto dos Estados Unidos quanto das classes dominantes no país.

Em primeiro lugar, a formação e a doutrina militar dominantes no país são diretamente informadas em função dos interesses nacionais dos Estados Unidos. Em consequência, os acordos de cooperação bilaterais e a formação de quadros não se afastaram jamais dessa linha, após 1985. O fenômeno era bastante claro antes mesmo da existência de Bolsonaro. Chamei a atenção para o fato ainda em outubro de 2017 ao analisar o discurso de um até então desconhecido general chamado Hamilton Mourão.

Ora, Mourão expressou claramente o pensamento na cúpula militar e a doutrina que informa as forças armadas. Num “mundo em convulsão”, diz o general, não resta ao Brasil senão filiação ao “bloco americano”. A rigor, não existe um “bloco americano”, mas a tradicional dominação imperialista dos Estados Unidos no mundo, especialmente forte na América Latina. A doutrina Monroe de 1824 é concepção ideológica a que os militares brasileiros estão aferrados; é a doutrina vigente no âmago das forças armadas nos últimos 60 anos!! É claro que a esquerda liberal não pode acusar essa característica decisiva da formação militar porque ela própria tampouco se filia a uma orientação anti-imperialista.

Registre-se, tomado como mera agitação ideológica, o brado da direita na última disputa presidencial afirmando que o Brasil jamais se “transformaria numa Venezuela” oculta, de fato, profundo sentido histórico. Monroe e Bolivar lutam na cena histórica como antagonistas há quase dois séculos!! Para o primeiro, a “América para os americanos” enquanto, para o segundo, a necessária afirmação da “Pátria Grande”. Vasconcelos (que não é um marxista) em 1934 escreveu Bolivarismo e monroísmo, um livro aqui desconhecido, que elucida bem os dilemas da América Latina diante da política pan-americanista praticada pelo imperialismo estadunidense. Os militares brasileiros – formados na doutrina emanada dos Estados Unidos – não vacilam nas questões centrais e seguem os ventos do norte.

Não foi por acaso, portanto, que nas eleições de 2018 a direita denunciava a “transformação do Brasil numa Venezuela”. A propaganda ideológica mais do que exorcizar o dilema histórico entre monroismo e bolivarismo, ataca algo mais imediato e visível: o fantasma de Bolívar na versão bolivariana já corria a América Latina desde a aparição de Hugo Chávez na Venezuela no 4 de fevereiro de 1992 e, com mais força, quando o tenente coronel tomou posse da presidência do país vizinho em 2 de fevereiro de 1999. Mourão em pessoa observou a ameaça bolivariana em seus inícios na condição de adido militar do Brasil em Caracas entre 2002 e 2004, nomeado no primeiro governo Lula.

 

A constituição bolivariana do Brasil

No entanto, mais que um bolivarianismo destinado a impedir a diluição do Brasil numa hipotética e caricata “Pátria Grande!”, o bordão anti-bolivariano pretende esterilizar seu conteúdo anti-imperialista e anti-capitalista, além de ter como alvo a esterilização de algo valioso em qualquer doutrina militar: a força decisiva do nacionalismo revolucionário revitalizado na pátria de Bolivar.

Ademais, como tenho recordado com insistência há anos, a concepção bolivariana está inscrita em nossa constituição! Ora, basta ler os princípios fundamentais da Constituição de 1988, em seu parágrafo único para entender que “A república Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. O alinhamento automático praticado por Bolsonaro ou mesmo a política de Lula/Dilma em boicotar de maneira consciente as iniciativas materiais destinadas a dar corpo ao princípio constitucional – Telesur, Banco do Sur, Empresas GraNacionais, etc – revelam de maneira clara o quanto a esquerda liberal abriu caminho para o avanço da direita e a exata medida em que ambas, cada qual à sua maneira, “violam” a constituição.

É claro que o anti-nacionalismo na esquerda liberal apareceu por outros caminhos, não tão grotescos quando aquele que a direita agita, mas igualmente eficazes; no Brasil, a crítica e rechaço do nacionalismo como força revolucionária emergiram a partir da crítica sociológica uspiana ao “populismo”. Era artigo em oferta desde 1978 quando Francisco Weffort – que, sem cerimônia alguma, saltou diretamente da secretaria geral do PT para o Ministério da Cultura de FHC – lançou uma coletânea de ensaios miseráveis de coloração “marxista” destinados a exorcizar o nacionalismo como força política indispensável na América Latina. A hegemonia intelectual no interior do petismo foi um meio eficaz de esterilizar na esquerda liberal o nacionalismo como força, na toada do desencontro histórico entre marxismo e nacionalismo. Ao longo do tempo a esquerda liberal sob condução do PT foi cada dia mais hostil ao nacionalismo.

Quando Lula chega ao governo em 2002 o bolivarianismo já está em plena ebulição no continente e, portanto, já era assunto de atenção minuciosa nos Estados Unidos. Ademais, após o fracasso do golpe contra Hugo Chávez em abril daquele ano, o imperialismo entendeu que nascia numa área estratégica para afirmação de sua hegemonia mundial, um adversário novo e com imenso poder.

Ninguém menos do que o general James T. Hill, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, sintetizou em 24 de março de 2004, qual era a natureza da ameaça concreta contra os interesses da potência imperialista na América Latina: o populismo radical. “O populismo – disse o general – não é uma ameaça. Não obstante, a ameaça emerge quando o líder se radicaliza…”. Ademais, certeiro no alvo, o general Hill afirmou nessa reunião do congresso nos EUA que “alguns líderes da região estão se aproveitando das profundas frustrações derivadas do fracasso das reformas democráticas em fazer chegar os bens e serviços prometidos. Utilizando estas frustrações, que se combinam com as frustrações causadas pela desigualdade econômica e social, estes líderes são ao mesmo tempo capazes de reforçar suas posições radicais inflamando o sentimento anti-estadunidense”.

A ofensiva bolivariana não se limitaria a Venezuela e há uma década mantinha influência em vários países. Em setembro de 2009, o presidente equatoriano Rafael Correa não renovou o acordo militar com os Estados Unidos e a base de Manta voltou ao controle nacional revelando que a “ameaça populista” tocava também nas questões de ordem militar de interesse estratégico para a potência imperialista. A resposta estadunidense foi, como se sabe, óbvia: assinou novo acordo militar com a Colômbia em 3 de novembro – um mês após perder a base de Manta – aumentando o contingente militar no país vizinho dominado há décadas por um regime de terrorismo de estado.

O nacionalismo, portanto, não pode ser ignorado num sistema de estados nacionais. O mundo capitalista funciona sob o impulso da lei do valor em escala mundial, porém, num sistema de estados-nação, o capital opera, necessariamente, violando as fronteiras estatais em favor dos capitais com maior composição orgânica. No entanto, na mesma medida em que enfrenta o estado e produz a abertura de mercados, os capitais também lançam mão do protecionismo para o mesmo fim: alcançar o monopólio e vencer a concorrência capitalista.

No Brasil, especialmente após a emergência do capitalismo dependente rentístico, o nacionalismo assumiu a forma cosmética, meramente alegórica nas forças armadas. É o que podemos constatar com clareza no governo de Bolsonaro. Não se trata de um nacionalismo ao estilo de Velasco Alvarado no Peru ou Omar Torrijos no Panamá (ambos militares). O nacionalismo dos militares brasileiros que poderia ter evoluído no sentido revolucionário foi exterminado com o golpe militar de 1964. O “nacionalismo” dos militares pós 1964 jamais deixou de aprofundar a dependência e o subdesenvolvimento e manteve estreita conexão com os interesses dos Estados Unidos na América Latina.

 

A ditadura do grande capital

O Marechal Castelo Branco anunciou logo no início de seu mandato a necessidade de substituir as fronteiras físicas ou geográficas pelas “fronteiras ideológicas”, caminho pelo qual deu por encerrada a “política externa independente” de Jânio Quadros e João Goulart, na mesma medida em que abria as portas para a diplomacia da “interdependência continental” cuja formulação era de responsabilidade do general Golbery, um militar diplomado por Fort Benning, a terrível Escola das Américas, onde tantos ditadores latino-americanos foram formados.

Marini indicou com precisão que a ditadura pretendia “criar uma simbiose entre os interesses da grande indústria e os sonhos hegemônicos da elite militar, que encontraria uma expressão ainda mais evidente nos vínculos estabelecidos no nível da produção bélica.” (Subdesenvolvimento e Revolução). Várias iniciativas avançaram nessa direção em aliança por meio da Comissão Militar Mista Brasil-Estados Unidos e do Grupo Permanente de Mobilização Industrial, que reunia as mais importantes empresas do país “com a assessoria direta de membros das forças armadas”. A própria Confederação Nacional da Industria era presidida por ninguém menos que o general Edmundo Macedo Soares e Silva!

É, portanto, fácil estabelecer o contraste entre o II PND de Ernesto Geisel (1974-1979), caracterizado por forte intervenção estatal em associação com o capital estrangeiro, com o programa econômico ultraliberal de Bolsonaro apoiado com entusiasmo por Mourão. Na década de setenta, o “nacionalismo” dos militares flertava com ações que, em aparência, descartavam o liberalismo como doutrina, razão pela qual não poucos analistas caracterizam a ditadura como nacionalista e inclusive desenvolvimentista, a despeito da crescente internacionalização do ciclo do capital no país, da dívida externa e da superexploração da força de trabalho. De igual modo, a formulação da política externa daquele período sob o bordão do “pragmatismo responsável” indicava aliança estratégica com os Estados Unidos, com pequena margem de manobra que pode ser vista no acordo nuclear Brasil-Alemanha.

No entanto, o resultado da estratégia desenvolvimentista dos militares – e da burguesia brasileira – fortaleceu todas as frações do capital nacional e estrangeiro. A primeira manifestação liberal da burguesia na sua ofensiva contra o estado ocorreu precisamente em 1977 quando os empresários publicaram o manifesto contra o “gigantismo estatal” e se declararam em favor da democracia. Ora, de olho em Washington, a burguesia entendeu tanto a crise do milagre econômico já evidente em 1975, quanto a nova política externa do imperialismo impulsionada por Carter (“a defesa dos direitos humanos”) naquele ano. Os militares resistiram, mas operaram sob estrito controle a “transição lenta, gradual e segura” que garantia completa impunidade para os crimes cometidos durante a ditadura. As condições nacionais são determinantes para entender as razões pelas quais muitos desenvolvimentistas guardavam certo orgulho da obra econômica da ditadura embora fizessem restrições humanitárias à “sistemática violação dos direitos humanos”. A conveniência liberal desconectava o resultado econômico – intensa acumulação de capital – com as enormes restrições da liberdade política – indispensáveis para manter a superexploração da força de trabalho – que levou a esquerda para o exílio, cadeia ou morte nos porões da ditadura, além é claro, do controle sobre os sindicatos.

O contraste com a Argentina é sempre útil para perceber o quanto as condições nacionais são decisivas. É comum ouvir de economistas e sociólogos progressistas que o “modelo econômico dos militares” não produziu na Argentina os mesmos resultados verificados no Brasil. A “regressão econômica” de Martinez de Hoz contrastava, segundo a visão desenvolvimentista, com os arrojados planos industriais impulsionados por Delfim Neto durante a ditadura. Aqui, se evidencia o quanto a esquerda liberal se nutre de certo “orgulho burguês” emanado do desenvolvimento capitalista produzido pela ditadura (1964-1985) embora condene a repressão inerente a seu regime.

A digressão anterior é necessária para evitar um vício recorrente, ou seja, tratar os militares, a evolução de sua doutrina, a hegemonia política no interior do alto comando ou na tropa, fora da correlação de forças e do processo de acumulação de capital. Nesse contexto, os militares expressam mudanças no sistema político, mas não as produzem, não são sua causa original. É até constrangedor recordar aqui essas verdades elementares para chegar a algumas conclusões diante dos episódios recentes.

A hegemonia ultra liberal se consolidou nas forças armadas a par e passo com as transformações ocorridas após 1994 no desenvolvimento capitalista no Brasil. Portanto, constitui grave erro supor que os militares foram responsáveis por levar o sistema político para a direita. É claro que as decisões da cúpula militar estão baseadas no fato de que possuem o monopólio da violência por parte do Estado e, em sentido estrito, podem decidir a correlação de forças numa ou noutra direção segundo as exigências da luta entre as classes. A burguesia decidiu a ruptura com o governo de João Goulart e, em consequência, logrou o apoio das forças armadas. Relembre-se o atinado estudo de René Armand Dreifuss (1964: a conquista do Estado) para quem o golpe foi, antes de tudo, um golpe de classe, um golpe burguês! Tal constatação não isenta a responsabilidade histórica das forças armadas e menos ainda implica a absolvição de todos seus crimes, mas dirige a reflexão para o caminho correto. A hegemonia social se impõe, finalmente, também nas forças armadas. É uma dura lição histórica que parece esquecida na atualidade quando nos deparamos com a necessidade de analisar o papel dos militares na política brasileira.

Acaso, a notável expansão da fronteira agrícola ainda em curso no Brasil – que confere a renda da terra e aos latifundiários enorme poder econômico e político – seria possível sem o papel ativo dos militares? Jamais! Basta recordar o protagonismo dos militares na expansão da fronteira agrícola representado pela incorporação da Amazonia no circuito do capital, manifesto na apologia da Transmazônica, orgulho do regime militar. Não somente o capital agrário, mas também comercial, industrial e, sobretudo bancário, tinham interesse imediato naquela estratégica iniciativa. A posse da terra, com documentos, era fundamental para conseguir empréstimos bancários e garantir, em caso de não pagamento, a propriedade como mercadoria sujeita a compra e venda.

A subordinação do exército ao poder civil não pode supor o congelamento da vida política no âmbito da corporação. Exército e política sempre marcharam juntos em qualquer país da América Latina!!! Portanto, a esquerda liberal não pode pretender a neutralidade das forças armadas; menos ainda supor que elas devem se submeter à Constituição como garantia da vida democrático-burguesa!

 

A força do presidencialismo

Nas condições concretas do país, o presidencialismo é o único poder capaz de disciplinar as forças armadas. A renúncia do poder presidencial pela esquerda liberal – nos marcos do finado sistema petucano – em nome de um parlamentarismo corrupto e nocivo praticado pelo “presidencialismo de coalizão”, é responsável direta pela situação atual. No entanto, a história da América Latina – e do Brasil – ensina de maneira clara que o presidencialismo somente se sustenta com apoio na mobilização das massas de maneira permanente em direção a um objetivo estratégico de conquista do poder político. A conquista do poder político jamais figurou no horizonte do nacional-reformismo de João Goulart, razão pela qual aquele notável movimento de massas sucumbiu diante da ofensiva da direita, consumada no golpe de 64 e na ditadura que se seguiu. Na Venezuela, ao contrário, o golpe cívico-militar de Hugo Chávez contra o governo constitucional de Carlos Andrés Perez tinha como objetivo a conquista do poder político. Após seu fracasso, o MBR-200 não retrocedeu; ao contrário, avançou no conceito da Revolução Democrática Bolivariana rumo ao poder, trilhando um caminho repleto de acidentes no interior de uma estratégia política que, finalmente, venceu com a eleição de Hugo Chávez.

A esquerda liberal se nutre da sociologia da ordem produzida no ambiente universitário e, em consequência, apenas assinala miseravelmente as limitações reais ou imaginárias da ação do caudilho, sem observar a função notável da liderança oriunda do movimento revolucionário. “Nossa realidade vital é grandiosa e nossa realidade pensada é mendiga”, dizia Jorge Luis Borges em janeiro de 1926. No Brasil, ainda não superamos essa sentença.

A ausência de uma política anti-imperialista nos partidos políticos da esquerda, em organizações sociais e também na intelectualidade, somente reforça o curso livre para o nacionalismo cosmético e funcional a Washington que ali se verifica. Nesse contexto, a eleição de Bolsonaro representa antes que o início de novo ciclo nacionalista, o resultado necessário da crise do sistema político brasileiro e da fase rentística do desenvolvimento capitalista. A virada ultraliberal que os militares assumem como horizonte político não ocorreu de maneira súbita! Apenas apareceu de maneira súbita e na única linguagem que a esquerda liberal pode entender: a interferência no processo eleitoral.

De fato, a presença de 11 mil militares – dos quais 4 mil da ativa – ocupando funções de governo nos três poderes da república burguesa, merece análise e atenção. Um conjunto de estudos de extração acadêmica que apenas começam a ser divulgados indicam que essa hegemonia foi lentamente construída no interior das forças armadas na última década ou pouco antes. No entanto, não devemos afastar a análise de suas ações descoladas da dominação burguesa nas condições da crise que sofremos. Assim como as forças armadas apoiaram a ditadura do grande capital e dela se beneficiaram dirigindo ou influenciando grandes projetos, igualmente atendem à demanda atual submetendo-se e dirigindo a agenda ultraliberal conduzida pela coesão burguesa sob a batuta de Paulo Guedes.

Portanto, a presença avassaladora dos militares em funções de governo, longe de representar apenas uma política da “boquinha” para complementação salarial numa típica operação de defesa coorporativa diante dos baixos salários, indica que a nova hegemonia burguesa inerente ao desenvolvimento capitalista rentístico foi também construída ao longo de muitos anos no seu interior. A hipótese de Manuel Domingos Neto segundo a qual os militares se caracterizam na atualidade por uma posição coorporativa e que a oficialidade estaria orientada por uma “meritocracia de caserna” que tampouco o distinguiria de uma carreira de juiz ou procurador não consegue explicar o fenômeno. O estudioso alega também que os militares estão governados por uma “mentalidade neocolonial”, que somente pode ser explicada na trama da dominação imperialista estadunidense particularmente intensa no Brasil.

Afinal, após 1994, com a afirmação da hegemonia da fração financeira na coesão burguesa que dirige o país, o desenvolvimentismo foi batido historicamente, a despeito de pequenas iniciativas que, por sua natureza, antes de negar o avanço de rentismo, marcam precisamente sua força. O breve fortalecimento da indústria naval nos marcos da política petroleira do governo Lula, por exemplo, é uma clara indicação dessa debilidade tal como a lei da partilha que abriu a exploração do pré-sal aos capitais estrangeiros por iniciativa da presidente Dilma. Nenhuma dessas iniciativas poderia, portanto, criar uma “ala nacionalista” ou “legalista” no comando militar. A propósito, é significativo que num assunto tão estratégico como o controle nacional sobre o petróleo, os militares não se manifestaram diante do entreguismo praticado no governo de Dilma.

Portanto, o desinibido entreguismo de parte dos militares na atualidade e seu alinhamento automático como peça do domínio imperialista no Brasil é decorrência direta do entreguismo da burguesia brasileira e também um resultado da impotência dos governos progressistas em superar os marcos estritos do subdesenvolvimento e da dependência. Bolsonaro, nesse sentido, antes que precursor de uma nova orientação para os militares é simples produto daquela concepção encubada no interior das forças armadas durante longos anos sem que o “poder civil” tivesse algo a dizer de maneira clara na mudança da doutrina militar que agora muitos contemplam com surpresa e irritação. O caráter tosco de suas declarações e não poucas vezes ofensivo para o espírito republicano que os políticos vulgares cultivam com particular zelo, não pode ocultar a comunhão que mantém com o “espírito” dominante na caserna nos pontos estratégicos da política, que executa com êxito até agora, especialmente aqueles relativos ao avanço da agenda econômica e na formação, ainda incipiente, de um movimento de massas de corte conservador ou mesmo fascista.

No entanto, a esquerda liberal permanece cativa das pesquisas eleitorais como se no cenário elaborado pelo cretinismo parlamentar, a derrota eventual de Bolsonaro nas eleições de 2022 fosse capaz de interromper o dinamismo da crise conduzida pela burguesia. É até constrangedor observar que na análise dominante no interior da esquerda liberal a hipótese de que “setores” da burguesia estariam arrependidos de ter apoiado Bolsonaro contra Haddad nas últimas eleições, figura como ciência certa e, em consequência, eles estariam dispostos à defesa da democracia contra as aventuras golpistas do protofascista.

De fato, o núcleo racional da análise da esquerda liberal assinala que a demissão dos generais Edson Leal Pujol do Exército, Ilques Barbosa da Marinha e Antonio Carlos Bermudez da Aeronáutica, mais Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa (com o secretário geral), o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o brigadeiro Raul Botelho é resultado da recusa dos demitidos em avançar na aventura golpista e representa a preservação da autonomia castrense em relação aos planos políticos do presidente.

As forças armadas estariam, portanto, negando-se a cumprir um papel político e, no embalo do bordão liberal, afirmando as forças armadas como instituição de Estado e não de governo. O mundo dos progressistas não é belo?

Porém, nesse caso, faltaria explicar por que os milhares de militares não desembarcaram do governo, entregaram seus apartamentos funcionais, suas funções gratificadas e rumaram para a caserna de maneira disciplinada… Afinal, por que romperam com a hierarquia e permaneceram fieis ao governo dando as costas a seus comandantes?

No terreno da especulação, há bons indicativos para afirmar que a hegemonia entreguista no interior das forças armadas aproveitou a oportunidade para disciplinar ainda mais a tropa, revelando que a decisão de seguir até o fim e fundo com o presidente não admite vacilação. Nesse caso, Bolsonaro antes de sofrer uma perda e ver seu domínio desafiado, teria afirmado ainda mais sua autoridade diante da lista de generais e promoções vindouras.

Finalmente, é fácil observar que os líderes da oposição liberal se limitaram a afirmar que a crise é grave porque a demissão de 4 ministros militares não tinha precedentes na história da república burguesa. Ou seja, ao invés de uma efetiva análise, a contribuição analítica da esquerda liberal repete apenas a manchete do jornalão burguês.

 

O progressismo na estação final

A destituição de Dilma é a face nacional da impotência do progressismo latino-americano em superar as mazelas próprias do subdesenvolvimento e da dependência. De fato, há muitos anos, as forças progressistas sofrem reveses e se revelam incapazes de manter governos na exata medida em que não possuem um projeto de poder. A destituição de Dilma não representa um raio em céu azul. Antes do Brasil – onde tudo ocorreu no pleno funcionamento das instituições democráticas – Hugo Chávez na Venezuela (2002), Jean Bertrand Aristid no Haiti (2004), Manuel Zelaya em Honduras (2009) e Fernando Lugo no Paraguai (2012) eram exemplos aqui considerados exóticos até que a conveniência da esquerda liberal necessitou inscrever a destituição de Dilma no rol dos “golpes”. Em todos esses eventos os militares jogaram um papel relevante, impossível de ser ignorado.

É claro que a esquerda liberal não tirou lição alguma de cada um desses episódios. Mas a solução de Hugo Chávez não foi ignorada pela doutrina militar dos Estados Unidos e menos ainda passou despercebida para os militares brasileiros. A despeito da origem e sentido do bolivarianismo encabeçado por Hugo Chávez – de clara orientação anti-capitalista e anti-imperialista – o Departamento de Estado captou a ameaça e reforçou aspectos ignorados ou de impossível solução nas condições venezuelanas. Os militares brasileiros também, sempre com a orientação dos EUA. No entanto, a revisão crítica da política externa brasileira assinala claramente, como observou com exatidão e alegria o ex chanceler mexicano Jorge G. Castañeda, como Lula atuou na toada de uma “esquerda racional” enquanto Chávez tocava o tambor de uma “esquerda irracional”. A razão pela qual Lula manteve distância objetiva e calculada dos projetos estratégicos originados na Venezuela sob condução de Hugo Chávez, era produto não somente de eventuais ilusões próprias da esquerda liberal, mas, sobretudo, dessa determinação estrutural da orientação de Washington incorporada pelos militares brasileiros.

Não resta dúvida de que a emergência do bolivarianismo anti-imperialista e anti-capitalista alinhou ainda mais os militares brasileiros com a política estabelecida pelos Estados Unidos e o “bloco americano”. A política externa da Revolução Bolivariana praticou uma política energética que foi tão importante quanto eficaz para conquistar aliados e diminuir a força da política imperialista dos Estados Unidos e da França no Caribe e na América Central. Ninguém poderá explicar as razões pelas quais Zelaya, um fazendeiro eleito por partido conservador em Honduras em janeiro de 2006, encabeça um movimento em direção a ALBA (Alternativa Bolivariana das Américas) sem estabelecer essa conexão decisiva. O bolivarianismo no Brasil foi apresentado como algo distante, ilusório quando não caricato pela esquerda liberal. A propósito, basta conferir as dezenas de declarações de Lula, apresentando-se como um conselheiro lúcido e ponderado ao homem que emergiu como um raio diante da noite “neoliberal” que tanto afeta os petistas…

A política “altiva e ativa” do governo Lula navegou orientada pela política externa de Clinton e do principal intelectual do governo democrata, Anthony Lake, o chamado “intervencionismo humanitário”. De fato, como documentou Ricardo Seitenfus exaustivamente, desde 1994 – já sob a Doutrina Clinton – a ONU adota a Resolução 940 (com a oposição do Brasil!) prevendo a criação de um contingente militar multinacional para intervir no Haiti. Celso Amorim, na época, votou contra a intervenção. No entanto, mais tarde, durante o governo de Lula, a pedido de Jacques Chirac e ninguém menos que George W. Bush, o Brasil assume o comando da Minustah sob a liderança do chanceler. Ainda segundo Seitenfus, “hesitantes no início, os militares brasileiros foram convencidos de participar na medida em que todos os equipamentos, os sistemas de comunicação e transporte e o material a ser utilizados seriam nacionais. É a primeira vez em sua história que uma importante força militar é enviada ao exterior nestas condições. Para os estrategistas, a operação se transformou num desafio na preparação dos homens, na capacidade de comunicação e de transporte bem como um teste de confiança na indústria brasileira de armamentos.”.

Não era apenas uma boa oportunidade para as forças armadas. Em 2008 o jornalão burguês Valor publicava o entusiasmo da Coteminas e da OAS com as possibilidades abertas a partir da intervenção no Haiti. A empresa do vice-presidente de Lula, José Alencar, pretendia acesso preferencial para produzir têxtil destinado ao mercado estadunidense no marco dos tratados de livre comércio vigentes no Caribe, enquanto a OAS acabava de vencer uma licitação para a pavimentação de uma rodovia. (Valor, 15/08/2008). No entanto, as promessas de grandes negócios no Haiti jamais se confirmaram para a burguesia brasileira, tal como confidenciou um diplomata brasileiro à Miguel Borba Sá (IRI/PUC-Rio): “… a gente faz o trabalho sujo aqui e as nossas empresas nem entram, continuam sendo as empresas norte-americanas, canadenses e americanas comandando tudo aqui” (Brasil de Fato, 15/10/2019). Nada de novo no front, pois o manual imperialista ensina como deve ser a associação entre multinacionais e militares, tal como documento fartamente Amy e David Goodman (Corrupção à americana) na ação de “reconstrução do Iraque” que destinou todos os grandes projetos para empresas estadunidenses, excluindo sem cerimônia seus sócios na invasão em nome da democracia e dos mercados.

Finalmente, é mais uma demonstração clara de que as possibilidades de um projeto subimperialista anunciado por Marini para uma fase específica da acumulação de capital sucumbiu para sempre no desenvolvimento capitalista no Brasil sob as novas condições da economia mundial.

O projeto burguês fracassou, mas a experiência foi valiosa para a cúpula das forças armadas brasileiras. Em 2010 ninguém menos do que o próprio general Heleno resumiu o saldo: “como exercício militar a Minustah é excelente. No entanto, como Operação de Paz, ela não tem mais sentido”. Mais tarde, no governo corrupto e liberal de Michel Temer, seria o Rio de Janeiro – sob comando do general Braga Neto – a experimentar a intervenção militar em tempos de paz no interior do país. A crítica da esquerda liberal à intervenção no Rio de Janeiro raramente foi observada como um subproduto da diplomacia orientado pelo “Princípio da Não indiferença” praticado pelos governos de Lula e Dilma e implementado por Marco Aurelio Garcia e Celso Amorim. Uma vez mais o protagonismo dos militares era ignorado pela esquerda liberal ocupada com a denúncia do “golpe” contra Dilma.

Ora, tanto o general Augusto Heleno quanto Santos Cruz são nomes diretamente ligados ao intervencionismo no Haiti decidido por Lula, Amorim e Marco Aurelio Garcia. O general Heleno foi o primeiro comandante das tropas e Santos Cruz assumiu em setembro de 2006 após o suicídio do general Urano Bacellar ocorrido em 7 de janeiro daquele ano… O giro à direita da diplomacia brasileira é indiscutível e deve ser explicado. A tirada literária de Chico Buarque – “o Brasil não fala fino com os Estados Unidos nem grosso com a Bolívia” – é boa pra conversa de boteco, mas totalmente falsa para entender a trama da subserviência da diplomacia da esquerda liberal – implementada por Amorim e Marco Aurelio Garcia – à política externa dos Estados Unidos. Não por acaso, em 2009 a imprensa liberal nos EUA considerava Amorim o “melhor ministro de relações exteriores do mundo” (the world’s best foreign minister), um contrapeso considerado importante contra a ameaça representada por Hugo Chávez. Ora, o conceito de “potência regional” que Washington sempre reservou para o Brasil encontrou no bolivarianismo sua negação completa pois o nacionalismo cubano e venezuelano, de raízes anti-imperialista e anti capitalista, esterilizava na raiz a ilusão da classe dominante brasileira e seus políticos vulgares.  Por outro lado, as transformações do capitalismo no país anulariam para sempre as possibilidades da expansão das “multinacionais brasileiras” acomodadas na divisão internacional do trabalho nas fases que não disputam a liderança científica, tecnológica e produtiva de ponta dos países centrais.

Na verdade, ao incorporar o “Princípio da Não Indiferença”, a política externa do PT renunciava o princípio da autodeterminação dos povos, uma virada indispensável para assumir o “novo humanismo militar” dos Estados Unidos elaborado no governo democrata de Bill Clinton e, no caso haitiano, respeitado minuciosamente pelo republicano George Bush. Ora, foram Chirac e Bush quem convocaram Lula para a tarefa suja no Haiti. No Brasil, a esquerda liberal apresentou o intervencionismo imperialista estadunidense e francês como virtude e – pasmem! – também como expressão de um novo protagonismo do Brasil no mundo que poderia, como recomenda a subserviência, abrir as portas para eventual assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Mais miserável, ingênua e servil não poderia ser essa diplomacia!

Cuba e Venezuela atuaram na direção aposta. Cuba jamais deixou de prestar a ajuda humanitária que pratica no mundo desde o início da Revolução com a presença dos médicos cubanos e sempre fez defesa enfática do direito à autodeterminação. A Venezuela sob a condução de Hugo Chávez também se opôs ao “intervencionismo humanitário”, mas ofereceu por meio da PetroCaribe energia aos haitianos. Ambos, Cuba e Venezuela, possuem política externa anti-imperialista, conhecem a ação agressiva dos Estados Unidos há décadas e sabem o caráter nocivo da investida, sobretudo entre os militares. No Brasil, na ausência de uma doutrina militar própria, a alta cúpula militar ficou totalmente exposta à doutrina emanada dos Estados Unidos! Portanto, é impossível entender a situação atual descolada das mudanças ocorridas nas últimas duas décadas.

O nacionalismo de Bolsonaro – que o levou a bater continência para a bandeira dos Estados Unidos – mais que arroubo colonial, expressa claramente a concepção arraigada na alta oficialidade e na formação dos militares brasileiros. Tal situação não sanciona, obviamente, a existência de um “partido militar”. A degradação das instituições nacionais na esteira da podridão da república burguesa conferiu, por algum tempo, certa credibilidade às forças armadas diante de sucessivos escândalos de corrupção de distintos governos. No entanto, nem mesmo as forças armadas podem fugir da podridão burguesa cada dia mais visível aos olhos do povo, ainda que negligenciada pela esquerda liberal. Ademais, o protagonismo de milhares de militares em cargos do governo tende a dissipar a consciência ingênua que supõe a imunidade do militar diante da corrupção.

Em todos os países latino-americanos onde as forças armadas assumiram protagonismo tal como verificamos agora no Brasil, a conexão entre capital e estado rendeu enorme corrupção que terminaram também por arrastar as forças armadas para o centro da crise da republica burguesa. Portanto, na exata medida em que é crescente na caserna a mentalidade empresarial, não será surpresa quando os “escândalos” emergiram na primeira página de um jornalão burguês. É mera questão de tempo e tampouco será um assunto inédito, pois informação relativamente recente indica que “… com dados fornecidos pelo STM (Superior Tribunal Militar) a pedido do UOL mostra que, entre 2010 e 2017, 132 militares das Forças Armadas foram condenados pela Justiça Militar pelos crimes de corrupção passiva, corrupção ativa ou peculato, o equivalente a 0,04% do contingente total das Forças Armadas, estimado em 334 mil pessoas. Outros 299 militares ainda aguardam julgamento. Nesse período, pelo menos 12 oficiais foram expulsos e perderam seus postos e patentes por crimes ligados a desvios de recursos públicos das Forças Armadas.”

Não devemos julgar o todo pela parte, mas tampouco ignorar a dinâmica em curso. A corrupção no interior das forças armadas é produto da adesão dos militares ao ciclo da acumulação de capital e seu aburguesamento político-ideológico. Tal processo, nocivo em si mesmo, já está produzindo uma clara contradição entre a oficialidade e a maioria absoluta dos militares. Nesse contexto, a “não politização” ou o simples e ingênuo “apelo à institucionalidade” das forças armadas joga águas no moinho da oficialidade sem compromisso com a segunda emancipação que teremos que realizar. A reforma da previdência já afastou uma camada expressiva de oficiais da vida simples e austera do soldado, sempre submetido às degradantes condições de vida de nosso povo. Ora, o nacionalismo cosmético e burguês que é hegemônico atualmente já está, portanto, em contradição objetiva com o potencial do nacionalismo revolucionário que sempre existiu sob variadas versões nas forças armadas em todos os países latino-americanos. Não há razão alguma para supor que a lei da gravidade não funciona no Brasil…

Portanto, é trágico que a esquerda liberal siga pregando contra a “politização dos militares e a militarização da política”, fortalecendo assim a ideologia da neutralidade das forças armadas e ignorando a profunda crise da república burguesa.

O efeito combinado da crise cíclica do capital com a pandemia adquire, na periferia do sistema, um grau de “irracionalidade” que não se verifica nos países centrais, especialmente nos Estados Unidos. Não obstante, não devemos ignorar a lenta mudança que Bolsonaro opera em relação à política sanitária não depende da suposta resistência de comandantes das forças armadas a ideologia negacionista que a direita agita para ocupar a atenção do público com banalidades, mas, ao contrário, como já alertei em fevereiro desse ano noutro artigo, a eventual adesão dos militares à vacinação em massa é uma exigência do capital, tal como podemos observar nos Estados Unidos. A decisão pela vacinação não depende de uma decisão que está sob comando dos militares – uma espécie de partido militar – e muito menos poderá ser gerada no interior da caserna. É uma decisão dos capitalistas que, tal como ocorre nos EUA, necessitam da vacinação em massa para tentar superação da crise.

Não existe, em consequência, um “partido militar” operando no Brasil acima das contradições e dos antagonismos de classe. É claro que existe há muito tempo uma importante articulação na caserna e nenhuma mudança no seu interior – tal como a troca de comando por Bolsonaro – ocorre por acaso. Afinal, a sólida hegemonia pró-estadunidense que agora se manifesta sem pejo somente foi possível porque toda a cadeia de comando e os instrumentos de formação da carreira militar estavam sob controle estrito dos oficiais de alta patente e de Washington.

 

O que fazer?

A esquerda liberal de extração parlamentar poderia atuar em consequência. A primeira “medida” poderia ser a supressão do artigo 142 da Constituição de 1988. Ora, as forças armadas não podem figurar como a garantia dos poderes constitucionais, mas é precisamente o que reza a Constituição. Até mesmo a constituição deixa claro quem é que manda numa república burguesa num país periférico e dependente, configurando uma democracia restringida que nem mesmo a esquerda liberal pode ignorar. O próprio proto fascista Bolsonaro expressa de maneira recorrente o postulado para irritação dos políticos vulgares defensores da democracia em abstrato. O postulado constitucional é produto da ideologia de segurança nacional cujo núcleo racional é manter uma clausura pétrea contra o inimigo interno, ou seja, o despertar político de nosso povo, seu amadurecimento político e a plena consciência de avançar na direção da Revolução Brasileira na medida em que sua luta nos marcos do regime burguês se revela insuficiente.

Por isso mesmo, é absolutamente indispensável que as forças interessadas numa república com soberania popular e sem a tutela militar garantidora da ordem burguesa, inaugurem com força o debate público sobre uma nova doutrina militar. Há dois princípios basilares que ordenariam essa nova doutrina militar: o anti-imperialismo para enfrentar a potência imperialista dominante e uma concepção anticapitalista para superar a dependência. Não alimento esperanças que a esquerda liberal avance nessa direção e, na verdade, acredito que guardará imenso silêncio sobre o papel dos militares no país. Portanto, cabe a nós, a esquerda socialista, avançar nesse debate sem demora.

Finalmente, num país periférico e dependente, não deveria restar dúvida alguma sobre a força do nacionalismo revolucionário como parte do programa e da consciência crítica necessária para superar tanto o cosmopolitismo alienante da esquerda liberal (na prática a serviço das potências imperialistas) e o nacionalismo burguês e cosmético do protofascista Bolsonaro que somente simula a defesa do país enquanto pratica o maior entreguismo de nossa história recente. Uma esquerda cosmopolita – num mundo onde não existe uma internacional comunista e nem mesmo um movimento comunista internacional – é uma esquerda fadada ao fracasso. A esquerda, portanto, deve reivindicar, estudar e explicitar o nacionalismo revolucionário sem confundi-lo com utopias autárquicas próprias do (neo)desenvolvimentismo historicamente superadas que apenas reproduzem o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. O Brasil, a propósito, é a prova mais eloquente desse fracasso histórico!

O nacionalismo burguês também fortaleceu ilusões nos últimos tempos sob o manto de “um projeto nacional” (Ciro) ou de “reconstrução nacional” (Lula) que são, ambos, não somente incapazes de oferecer uma alternativa, mas, ao contrário, agravariam a crise brasileira sem abrir as portas para uma saída popular e menos ainda revolucionária.

Nesse contexto, a defesa da soberania sem a ruptura com a ordem burguesa é brado destinado a jogar águas no moinho da direita, caminho ilusório que termina por fortalecer as ilusões de um Brasil potência no interior da ordem capitalista. Ora, nenhum país superou a condição de periferia no interior do sistema e mesmo a China com a Revolução de 1949 ainda navega em águas turbulentas para disputar com os Estados Unidos em escala global.

Os militares estão ultra politizados no Brasil. O fenômeno evoluiu nas costas da esquerda liberal, somente possível porque essa abandonou a diferenciação elementar entre governo e poder nos marcos da crença ingênua da democracia como valor universal. Ademais, os militares assumiram um claro papel político no atual governo que é, de fato, irreversível. Não voltarão à caserna como pretende o espírito republicano da esquerda liberal. Ainda assim, se por circunstâncias da correlação de forças no contexto de uma crise profunda da república burguesa, tiverem que diminuir seu protagonismo, a “volta à caserna” é hipótese descartada. O gênio saiu da garrafa. A contrário do conto alemão, não há possibilidade de um final feliz para todos.

 

Nildo Domingos Ouriques

Professor e Militante pela Revolução Brasileira – SC

 

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Comentários

  1. Professor Nildo… Bom dia.
    Acompanho suas falas sempre que posso. Considero-o como um dos mais lúcidos “pensadores” a “ativistas” políticos do Brasil hoje. Pergunto:
    1- Qual poderia ser a resposta dos militares (alto comando) à possíveis pressões e ações no sentido de os fazerem retornar à caserna? Poderia haver uma ação dos EUA mais explícita?
    2- Essas “pressões” que falo à cima, podem de fato tomar vulto?
    3- O Gen. Pazuello, sendo agora investigado… pode ser um sinal?

    Parabéns pela análise.
    Desde já agradeço.

    André Beck

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