Lula e a política do esquecimento

 “O povo que não conhece a sua história e seu passado não terá chance de construir um futuro melhor.”
Luiz Inácio Lula da Silva

 Na busca de uma aproximação com os militares em virtude das investigações sobre a invasão na sede dos três poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, o presidente Lula determinou que o governo federal não faça rememorações de qualquer natureza em relação ao golpe militar de 1º de abril de 1964. O combinado seria que as Forças Armadas não fariam qualquer comemoração daquilo que chamam de “revolução de 1964” e o governo, por sua vez, não falaria em Golpe.

 A postura de Lula indica não apenas sua visão do passado, mas sobretudo sua postura política em relação ao presente. É a partir desses dois pontos que temos de analisar o problema colocado.

 

1964 – O passado no presente

 A ditadura militar-burguesa iniciada em 1964 exerceu profundas consequências na história brasileira. Na esfera econômica, teve-se como resultado a subserviência do capital nacional ao capital estrangeiro, enquanto esmagava a luta sindical, congelava salários e assim intensificava a superexploração. O aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento foi o principal legado do regime burguês-militar, definindo assim os rumos do capitalismo brasileiro sob a tutela do imperialismo estadunidense.

 No plano político, a ditadura inicialmente cassou todos os políticos que se opunham ao governo militar e perseguiu centenas de militantes de esquerda e organizações  revolucionárias. Cabe lembrar de uma quantidade significativa de militares perseguidos e exonerados de seus cargos. Muitos desses militares eram de esquerda, em algumas situações vinculados a partidos políticos, como, por exemplo, o PCB. Ou seja, durante longos 21 anos pessoas que se opunham à ditadura foram perseguidas, presas, torturadas e assassinadas. Muitas delas nunca foram encontradas e suas famílias ainda não sabem seus paradeiros. Some-se o exílio de artistas, políticos, como Brizola, e de grandes intelectuais, como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra. Nada disso parece importar ao presidente Lula. Pelo contrário: em entrevista à RedeTV ele afirmou que a ditadura militar seria “história” e ele não quer ficar “remoendo o passado”. Contudo, falar do golpe de 1964 não é nem remoer o passado, nem discutir uma história acabada, é justamente o oposto. Mencionar esse tema é discutir e colocar em pauta uma história que ainda tem ecos no presente, tanto para as diversas pessoas e famílias que sofreram com esse período, como até para os militares, que também foram perseguidos. Ou seja, não é falar do passado, mas sim do presente. Por que o medo em enfrentar a verdade histórica?

 É curioso que Lula recuse a análise da ditadura brasileira, quando outros países sul-americanos, que também sofreram ditaduras, encararam seu passado de forma radicalmente diferente. Na Argentina, diversos militares foram a julgamentos públicos, e crimes horrendos vieram à tona, somados à busca incessante dos desaparecidos da ditadura. Há movimentos semelhantes no Chile e no Uruguai. Sem memória histórica não é possível ler o presente, e tomar uma postura política coerente com suas urgências. A recusa da Comissão da Verdade é claramente uma decisão pelo esquecimento e a cegueira política. 

 Ademais, Lula, que foi preso durante a ditadura, fez sua militância política durante esse momento histórico. As greves metalúrgicas do ABC, das quais foi um dos principais líderes, foram um momento muito importante de organização dos trabalhadores. Contudo, se engana quem vê uma mudança de postura política do próprio Lula, entre o passado e o presente. Lula nunca foi alguém que fosse radical em suas demandas, mas sim alguém que procurava apaziguar as reivindicações dos trabalhadores e conciliá-las com os donos das indústrias automobilísticas. Nesse sentido, Lula e Dilma têm uma história radicalmente diferente durante o período da ditadura e essa diferença permanece no presente.

 Portanto, o que vemos da parte de Lula é uma tentativa de esquecer o passado e assim, como num passe de mágica, todos os problemas desapareceriam. De forma intencional, Lula não quer voltar a um período de tempo que pode gerar embates diretos com elementos que ele quer atualmente conviver de forma pacífica, como por exemplo os militares.

 Além disso, há uma completa ausência de uma tentativa de orientação para o papel das Forças Armadas. Não há disputa, mas uma aceitação subserviente ao que hoje essa instituição defende. Como é a postura do PT e do próprio Lula, não há uma crítica em relação às instituições burguesas, mas a simples administração, dentro da ordem, dessas mesmas instituições. Essa é a postura de Lula sobre o passado. Cabe agora analisar como essa postura impacta o nosso presente. 

 

2024 – Do presente para o futuro

 A preocupação de Lula de evitar atrito com os militares revela sua impotência e o limite de sua ação política. Na mesma entrevista citada acima, o presidente afirma que não está preocupado com o Golpe de 1964, e sim com o “golpe” de 2023. O conceito de golpe para o PT parece confuso e elástico. Basta ver o uso que fazem da palavra para nomear a destituição da Presidente Dilma Roussef em 2016; processo que durou longos oito meses, e aceito resignação e sem convocação das massas. 

 Essa falta de conceituação do golpe tem dois problemas. Em primeiro lugar, é um desrespeito ao que de fato foi o golpe de 31 de março de 1964, pois esse golpe resultou em uma ditadura com perseguições, torturas e assassinatos. Quando de fato houve uma golpe, pessoas perderam suas vidas e muitas sofreram impactos em suas vidas. Diferentemente de 2016 e 2023, quando ninguém foi morto pelos supostos golpes. Portanto, o conceito “golpe” não cabe ser utilizado em qualquer situação histórica.  Em segundo lugar, parece que os petistas determinam o que seria um golpe a partir de suas próprias necessidades políticas imediatas. Chamar e caracterizar todos esses momentos como “golpe” é uma atitude retórica para reforçar uma determinada concepção política que procura fabricar alguns problemas e esconder outros. Durante toda a campanha presidencial, Lula falou que era necessário combater o “fascismo”. O que de fato foi feito para combater esse suposto fascismo? Acaso esperar o julgamento dos invasores da sede dos três poderes é combater o fascismo? Esse suposto “golpe” de 8 de janeiro de 2023 é a expressão máxima do fascismo?

 Tal qual Dom Quixote, Lula procura fabricar monstros para combatê-los e se tornar o herói de toda a narrativa. É claro que deve-se combater esses arroubos autoritários que se expressaram em 8 de janeiro. Contudo, para ser coerente, é necessário um combate real àquilo que seriam os problemas de fato. Uma nova orientação para as Forças Armadas seria somente um exemplo de um combate real. Além disso, onde está esse empenho que Lula demonstra em relação ao 8 de janeiro no caso da superexploração dos trabalhadores? Nenhuma palavra em relação ao novo teto de gastos elaborado pelo ministro liberal da economia, Fernando Haddad. Onde está a revogação da reforma trabalhista de Michel Temer e a reforma previdenciária de Jair Bolsonaro? Não encontramos nenhuma palavra em relação à política liberal da Educação, endossada pelo ministro Camilo Santana e o Novo Ensino Médio ou a continuidade dos vestibulares. Uma nova política de orientação para a Petrobras jamais é discutida, mas mantém-se o lucro dos acionistas, a injeção de dólares continua e perde-se cada vez mais a soberania dessa empresa pública vital.

 Enfim, todas essas questões fundamentais para discussão jamais são colocadas em pauta por Lula. Ao contrário, temos a sua completa omissão sobre esses temas fundamentais em um país dependente e subdesenvolvido. O governo petista limita-se a administrar o capitalismo brasileiro sem jamais questionar sua natureza. O horizonte dessa esquerda liberal e hegemônica não é a transformação da realidade brasileira, mas sim a gestão comportada da ordem. A luta contra a ordem burguesa dentro da ordem burguesa não é algo que os petistas tenham em mente dentro de sua prática política. A postura política do PT e de Lula é de manutenção da ordem burguesa. Esquecer o golpe de 1964 é apenas a expressão, em relação ao passado, daquilo que se defende politicamente no presente. Não haverá um combate real contra os temas necessários por parte de Lula nem do PT, mas apenas aqueles temas que estão à margem do que realmente importa serão mencionados. A estratégia petista fracassou historicamente como alternativa para a transformação da realidade e não há qualquer possibilidade de esse caminho levar para algo que não seja o fortalecimento da direita. É, afinal, a direita que critica, ainda que de forma reacionária, as instituições burguesas e a situação política atual. Cabe, então, para a esquerda que não é petista nem liberal, assumir as rédeas da crítica da realidade social, política e econômica brasileira para que assim se possa elevar o nível de consciência política da população. É necessário mostrar que há caminho para além de uma esquerda da ordem e de uma direita reacionária e autoritária. Esse caminho é somente um: a Revolução Brasileira. 

 Para a Revolução Brasileira, é essencial retornar ao período da ditadura militar por alguns motivos. Em primeiro lugar, é necessário enfrentar o passado, pois ele ainda não foi resolvido. Reabrir a Comissão da Verdade é o mínimo que se pode fazer quando se analisam os crimes cometidos durante esse período. Há que se confrontar o passado, encontrar e responsabilizar os culpados pelos crimes para efetivamente superar esse momento histórico sombrio da história brasileira. Em segundo lugar, recuperar a memória da ditadura civil-burguesa é essencial para a compreensão do processo de aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento do nosso país. Tal qual fez Ruy Mauro Marini em seu livro “Subdesenvolvimento e Revolução”,  a análise desse  momento permite compreender as contradições do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e elucidar quais foram os diferentes papéis das classes sociais nesse período. Essa forma do desenvolvimento do capitalismo dependente operado durante a ditadura ainda tem ecos no processo econômico brasileiro atual. Resgatar o que ocorreu durante esses vinte um anos é, simultaneamente, compreender o passado e propor uma prática política radical em relação ao presente para fazer frente à direita e à esquerda liberal. 

 

Texto de
Flávio Magalhães
Militante da JRB – SP

 

Spread the love

Comentários

  1. Bom artigo, porém o papel central do Trabalhismo, razão pela qual se levantou o golpe de 64, ainda é desconsiderado. Fruto do hegemonismo petista que coloniza a cabeça até de seus críticos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.