Terras raras, soberania nacional e a reality

 A política vulgar, aquela pautada nas eleições, tem como uma de suas características fundamentais o esquecimento prematuro. Se, por um lado, essa política cada vez menos pauta os caminhos de superação da dependência referenciando suas próprias lições históricas em conjunturas decisivas, por outro, parece se adequar a um caráter tão passageiro quanto raso. Essa lógica, cujos principais veículos são a grande mídia e as redes sociais (em especial o YouTube), se restringe superficialmente aos fatos semanais e as decisões, geralmente judiciais, que tomam conta das atenções de boa parte da base de apoio do liberalismo em suas feições progressista ou conservadora. Replicando a alienação que embrutece esses meios, a política passa a ser vista como um trágico reality show em que a “esquerda”, diante de um governo cuja marca é a despolitização dos temas nacionais e dos sujeitos possíveis de conduzir os seus debates, passa a ser uma mera espectadora desses episódios: ela somente aguarda, ansiosamente, pelos próximos capítulos desse drama em que o povo brasileiro sai como perdedor enquanto reserva para si o infecundo papel de somente votar pelos “eliminados” (eleitorais, e não políticos). O caso mais recente, sem dúvida, é o desmascaramento dos crimes de Bolsonaro e seus capangas, mas já foram CPI da COVID, privatizações da Eletrobras, da CEDAE e dos Correios, impeachment da Dilma etc. O resultado desse processo não é outro senão a apropriação de pautas altamente estratégicas pela direita de um lado e, do outro, o esquecimento (quando não, a vulgarização) do nacionalismo, com a classe trabalhadora desarmada ideologicamente e acompanhada de um certo grau de aceitação com uma alta dose de banalização, cuja expressão mais acabada seja a ausência do campo progressista nas ruas. O que se vê, em seu lugar, é o exorcismo de uma soberania em abstrato, dissimulando uma preocupação, há muito, escamoteada. O anúncio do ministro da fazenda, Fernando Haddad, de que o Brasil promete se ajoelhar às exigências dos Estados Unidos sob Trump no que consiste nas exportações dos chamados “minerais críticos” e das “terras raras”¹ é a expressão de que o faz-de-conta da soberania é o vale-tudo do entreguismo às custas da devastação ambiental promovida pela cadeia mínero-siderúrgica e do agronegócio.

 

Terras, águas e vagões sem gente

 Enquanto mais uma ilusão cai por terra, os apoiadores de Lula, antes desse interesse se publicizar, já pareciam ignorar o fato de que o Brasil já tem acordos com China, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita para exploração desses minerais². O desinteresse completo pela história os fazem esquecer, aliás, que é impossível distinguir a história da exploração das “terras raras” do Brasil do saqueio promovido pelas potências hegemônicas globais, que, já no século XIX, embarcavam, gratuitamente, toneladas de areia monazítica rumo à Europa e aos EUA³. A política mineral brasileira é marcada, desde sempre, pela permanente rapinagem de seus recursos e pela devastação dos biomas onde se encontram. Por outro lado, de acordo com o Observatório da Mineração⁴, as isenções fiscais e os incentivos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para exploração mineral continuaram a todo vapor. O setor mineral é o que mais concentrou investimentos em empréstimos diretos do BNDES entre 2002 e 2022. A cadeia também se estende para a produção de fertilizantes (cuja dependência do Brasil, no setor, ultrapassa os 70%⁵), simbolizando a articulação da cadeia mínero-siderúrgica com o agronegócio na defesa de um modelo econômico pautado pela drenagem direta da natureza e da economia nacional. Além disso, o depoimento de Haddad prevê acordos com os EUA para a instalação de data centers para uso de Inteligência Artificial (IA) no Brasil, que consomem o equivalente a 16 milhões de casas em energia⁶. Em países europeus e nos Estados Unidos, o debate sobre o consumo de água pelas IAs se comparar a grandes cidades e, em um horizonte de alguns anos, a países inteiros⁷, tem acendido o alerta entre militantes e pesquisadores para o interesse dessas corporações sobre a compra de terras no Brasil. A política ambiental de Lula nunca saiu de sintonia da cadeia mínero-siderúrgica e do agronegócio, caracterizada não só pela alta dependência de exportação, mas pela integração territorial funcional ao escoamento de commodities (como a Ferrogrão e a Fico) que vem ameaçando o território nacional em várias escalas. Aliás, o problema do escoamento produtivo recai em dois erros da série histórica da esquerda liberal que são desmembrados a seguir.

 O primeiro é a reprodução da visão parcial de que essa ameaça só se apresenta aos povos tradicionais, ainda que, com razão, aponte que sejam os atingidos mais diretamente e com maior intensidade. Porém, ao fazer esse descolamento, perde-se de vista a oportunidade de unificar a luta da classe trabalhadora concentrada, majoritariamente, nas cidades, com as dos povos tradicionais, através da politização de temas como: desastres ambientais (como o do Rio Grande do Sul em 2024, que analisamos em https://revolucaobrasileira.org/23/06/2024/o-desastre-ambiental-gaucho-entre-o-afogamento-das-solucoes-e-a-inundacao-das-ilusoes, mas outros tantos), intensificados pelas mudanças climáticas e de uso e cobertura do solo resultantes das atividades extrativas; ofensiva da aprovação de diversos agrotóxicos, promovida por Lula e Marina Silva que atua diretamente em problemas na saúde pública nas grandes cidades e; a taxação da remessa de lucros e dividendos das grandes empresas dos setores, que não pagam impostos e deixam um rastro de baixa geração de empregos de qualidade e alto consumo de energia, somente para ficar em três temas centrais.

 O segundo é o otimismo alienante em relação aos investimentos sobretudo chineses através da construção de ferrovias. Sobre isso, vale recordar Lênin, que, há mais de 100 anos, desmascarou o pretenso caráter “simples, natural, democrático, cultural e civilizador”⁸ das ferrovias, que já ocultava o real interesse capitalista por trás de sua implementação: ligar seus fios à propriedade privada dos meios de produção em geral. Na era da globalização, o interesse privado tampouco se altera. Antes, se aprofunda, por meio do conhecimento profundo das transnacionais em relação aos lugares, com o intuito de ligar dois pontos no território nacional para meramente escoar produtos agrícolas e minerais em direção aos portos, aeroportos e, quando muito, para agroindústrias e indústrias de base. Nada que tenha a ver com “integração territorial”! Essa globalização, diria Milton Santos, globaliza as mercadorias, e não as pessoas. O geógrafo mesmo fez uma análise⁹ da “integração” heterogênea e descontínua das ferrovias indistinta ao desenvolvimento regional a exemplo de Buenos Aires, cuja incompatibilidade do tamanho das bitolas das linhas traduz espacialmente a economia voltada para o mercado externo (o “fim” das linhas, nos portos) enquanto o ônus ecológico é voltado para o interno (o “início” e toda a extensão das linhas, deixando um rastro de impactos e conflitos ambientais da extração ao transporte mineral). Algo une visceralmente os argumentos do livro e o caso atual: o modal tal como estabelecido é fortemente impulsionado por uma dinâmica exógena, baseada nas demandas industriais do país que exporta essas linhas.

 

A fumaça da soberania nas terras da devastação

 A evocação da “soberania” oculta os inúmeros impactos ambientais da cadeia de exploração dos “minerais críticos” enquanto os atrela ao caráter antinacional do governo Lula. Como mostra Marcos Pedlowski¹º, grande parte das “terras raras” se encontram em unidades de conservação, áreas quilombolas e terras indígenas. Com a recente aprovação do PL da Devastação pelo Governo Lula, a pressão sobre os povos que vivem nessas áreas é inevitável. A mineração das “terras raras” já ameaça diversos assentamentos rurais no centro-oeste e no nordeste¹¹. Na América Latina, a Colômbia já oferece exemplos concretos dos danos ecológicos promovidos pelo extrativismo desses minerais¹². O Brasil parece perseguir seu exemplo não só no terrorismo de Estado, mas nos dados de assassinatos cometidos contra ativistas ambientais¹³. Os países imperialistas e suas transnacionais, que detêm as inovações tecnológicas da indústria “verde”, não vão recuar na exploração dessas terras na América Latina, o que exige do Brasil uma resposta à altura, o que não vem sendo pautado por Lula. Ao contrário do que ideologicamente se veicula, a opinião pública faturada por essas transnacionais e os jornais que melhor atendem a seus interesses¹⁴ falam de “transição energética” para que não se questione o essencial: o regime de produção.

 Enquanto se levanta a cortina de fumaça de que o Brasil saiu do “mapa da fome” sem discutir os parâmetros de seu cálculo, a fala do presidente do Sindicato da Indústria e de Armadores de Pescado do Espírito Santo mostra que essa “soberania” evocada por Lula é tão cosmética que se a pesca fosse voltada pro mercado interno, admite ele, seria inviável¹⁵. A realidade, que, infelizmente, tem se adequado tão bem às teorias – especialmente à dependência e ao imperialismo –, é escancarada quando o representante afirma que o mercado interno absorveria essa demanda, mas que esse redirecionamento seria insustentável financeiramente. Os reflexos das tarifas de Trump, da mesma forma, são didáticos para se pensar não só as farsas criadas por esse governo para se legitimar em uma possível “alternativa única” contra uma extrema-direita que chega galopante para 2026, mas a vitalidade da dependência e do imperialismo enquanto categorias históricas não superadas. A “integração territorial” do postulante governo da “soberania” não tem passado de um farsesco bordão que oculta seu real compromisso com o aprofundamento da dependência e da superexploração do trabalho e da natureza. O único compromisso que parece se apresentar a Lula é a concentração e a internacionalização de terras, para que possam ser exploradas a bel-prazer pela cadeia mínero-siderúrgica, pelo agronegócio e pelas big techs. A Revolução Brasileira deve apontar para os caminhos de superação do horizonte petucano por meio da interação entre a crítica à economia política rentista e da politização da questão ecológica oferecida pela ecologia política crítica, reunidas no âmbito do nacionalismo revolucionário.

 

André Oliveira

Militante pela Revolução Brasileira-RJ e da Frente de Estudos Socioambientais

Colaboração: RB Rio de Janeiro

 

 

¹ https://g1.globo.com/economia/noticia/2025/08/04/tarifaco-haddad-admite-que-minerais-criticos-e-terras-raras-podem-entrar-na-negociacao-com-os-eua.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias. Aqui vale um adendo: o que se denomina como “terras raras”, na realidade, não são terras e nem são raras. Por isso, a expressão, aqui, é sempre colocada entre aspas. O grupo de elementos das “terras raras” inclui os metais lantanídeos, o escândalo e o ítrio, que são utilizados desde ímãs permanentes a circuitos eletroeletrônicos, passando por motores, celulares, vidros, entre outros (Fonte: https://www.scielo.br/j/qn/a/rV5BjydbKvZFZcPhwktTVgf/?format=pdf&lang=pt). A demanda das “terras raras” pelas indústrias eólica e de carros elétricos cresceu significativamente nos últimos anos. Por essa razão, as “terras raras” são consideradas “minerais críticos”, haja vista não só esse crescimento recente, mas a expectativa de crescimento ainda maior para os próximos anos com a ascensão das energias chamadas “renováveis” (Fonte: https://ibase.br/wp-content/uploads/2022/02/Terras-raras-e-niobio_Julio-Holanda.pdf).

² Lula sabe que todo mundo já “meteu a mão” em nossos minerais estratégicos, inclusive com apoio do seu governo: https://share.google/tr0QXfH1Jc46SFuC6.

³ https://www.scielo.br/j/qn/a/rV5BjydbKvZFZcPhwktTVgf/?format=pdf&lang=pt.

⁴ EXCLUSIVO: Em 20 anos, BNDES emprestou R$ 25,5 bilhões para mineradoras – Observatório da Mineração:  https://share.google/7GS4b0aUH4qBxid0Z .

https://www.canalrural.com.br/agricultura/dependencia-de-fertilizantes-e-grande-desafio-para-o-brasil

https://g1.globo.com/inovacao/noticia/2025/08/03/primeiros-data-centers-de-ia-no-brasil-podem-consumir-mesma-energia-de-16-milhoes-de-casas-conheca-os-projetos.ghtml?utm_source=share-universal&utm_medium=share-bar-app&utm_campaign=materias.

https://theecologist.org/2025/may/30/ai-storm .

⁸ Menção pode ser encontrada em Imperialismo, estágio superior do capitalismo (Vladimir I. Lênin, 1917 – Edição Boitempo de 2021).

A urbanização desigual: a especificidade do fenômeno urbano em países subdesenvolvidos (Milton Santos – Editora Vozes de 1980).

¹º http://anovademocracia.com.br/pl-devastacao-boiada-passou-lula-vaqueiro.

¹¹ https://observatoriodamineracao.com.br/terras-raras-ameacam-assentamentos-no-nordeste-e-em-goias-incluindo-area-que-conserva-o-mais-antigo-pau-brasil-do-pais.

¹² https://blogdopedlowski.com/2024/07/30/protecao-ambiental-na-colombia-operacao-sob-medo-da-morte.

¹³ A Colômbia liderou o número de assassinatos de ativistas ambientais em 2023, seguida por Brasil, México e Honduras. https://globalwitness.org/pt/press-releases/mais-de-2100-defensores-da-terra-e-do-meio-ambiente-foram-mortos-em-todo-o-mundo-entre-2012-e-2023.

¹⁴ Esse particular exemplo, entre outros, é bem revelador das táticas de linguagem e das estratégias de negócios promovidos pelo discurso ideológico das práticas empresariais ESG. A reportagem assume o atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas e o papel do Brasil frente à economia mundial como verdade universal. O jornalismo corporativo, claro, escreve para quem pagar mais: https://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/especial-publicitario/meteoric-caldeira/noticia/2025/02/28/inovacoes-no-setor-de-extracao-de-terras-raras-minimizam-impactos-ambientais.ghtml.

¹⁵ https://www.folhavitoria.com.br/folha-business/tarifaco-dos-eua-ameaca-setor-de-pesca-no-espirito-santo.

 

 

Spread the love

Comentários

  1. Quando que se deve abandonar, deixar de se dedicar ao estudo e avaliação de políticas, uma vez que o tempo vai exigir total dedicação a implantação das melhores práticas politicas? Qual é o limite para a teorização, quando se deve começar a executar as politicas escolhidas? Considerando que se tem o poder necessário para executar essas políticas

Deixe um comentário para João Coimbra Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *