Há alguns dias, Bolsonaro anunciou a demissão de seu secretário especial de cultura, Roberto Alvim. Apesar de aparentemente já ser carta fora do baralho no que tange às disputas palacianas, o pronunciamento do ex-secretário abriu espaço para importantes reflexões entre os revolucionários. Especialmente porque o caso em questão, justamente por se tratar de mais um capítulo lamentável da “telenovelização” da política brasileira, também revelou um movimento nas trincheiras ideológicas da luta de classes nacional.
Ora, o nacionalismo de Roberto Alvim é sabidamente fajuto, de araque. Afinal, como é possível realizar o fomento estatal à arte e à cultura nacionais sob o bojo da política ultraliberal de Paulo Guedes? Vale lembrar que tal agenda tem feito pouca coisa além de aprofundar o sucateamento ou a simples extinção de instituições e equipamentos culturais como, por exemplo, museus, teatros, universidades, salas de cinema e concerto, orquestras e etc. Pior: que tipo de nacionalismo é esse que não coloca no centro da discussão o jogo sujo que as frações burguesas internas realizam com as potências estrangeiras para a manutenção da sua dominação de segundo grau por aqui? Como falar de nacionalismo em um país subdesenvolvido e dependente sem dar concretude a isso por meio de uma atitude enérgica dentro do quadro da luta de classes brasileira?
A peça de farsa com efeitos circenses – o pronunciamento do ex-secretário (realizado a partir de consultas aos diversos órgãos da cultura nacional, tal como IPHAN, FUNARTE, IBRAM) – é tão débil quanto cretina: ora, não é a música de Heitor Villa-Lobos que embala a suposta exortação de Roberto Alvim à grandeza da arte brasileira, mas sim a música de Richard Wagner. Diante desse quadro farsesco, onde um dito nacionalismo brasileiro de direita é mobilizado de maneira teatralizada, a música do nacionalista alemão apenas ilustra nossa verdadeira e sempre renovada submissão econômica e cultural perante os países metropolitanos do sistema capitalista.
Porém, se por um lado, o ultraliberalismo enxerga o nacionalismo brasileiro apenas como um bordão, com pouca ou nenhuma consequência prática, por outro, para o liberalismo de esquerda a ideia do nacional é e sempre foi algo a ser combatido; fato este que, precisamente, contribuiu para desenvolver o clima político necessário para o tratamento rasteiro e reacionário do nacionalismo por parte da direita.
A ideia da “globalização” – essa forma convenientemente mistificadora de se nomear as últimas formas que o imperialismo adotou – foi sempre algo difundido e defendido entre nós pela esquerda liberal e pelo progressismo em geral. A chamada “aldeia global”, celebrada pelos liberais de esquerda mais cínicos sob o nome de “internacionalismo”, revela-se hoje uma quimera ideológica; mais uma das tantas que perecem frente à crise brasileira e mundial, onde a realidade do mundo das nações, da submissão do capitalismo periférico ao capitalismo central é cada dia mais evidente. A esquerda liberal é, em suma, uma esquerda anti-nacional.
Tal fato permitiu, no plano da cultura como em tantos outros, que a direita saísse com larga vantagem, ainda que parcial, sobre a esquerda brasileira, esta que em grande medida ainda se mantém refém das teses fundamentais do liberalismo de esquerda.
Enquanto a esquerda liberal se mantém na defesa dos diversos “grupos oprimidos”, a direita ultraliberal, comandada por Bolsonaro, afirma a ideia de Brasil e de povo brasileiro. Embora de forma rasa e demagógica, o ultraliberalismo bolsonarista de fato mobiliza um dado da realidade, isto é, a nossa identidade nacional, a aglutinação de um conjunto de elementos culturais que nos define como povo brasileiro.
Enquanto a esquerda liberal segue cativa do postulado da “justiça social” e da promoção de oportunidades individuais – daí sua defesa cínica do funk, do rap e do hip hop – estes produtos degradados da indústria cultural estadunidense que se reproduzem sobre a vulnerabilidade econômica e cultural de nosso povo – a direita ultraliberal segue, apesar da forma conservadora e reacionária, denunciando a pobreza artística e o caráter humanamente simplório que caracterizam tais gêneros musicais.
Enquanto a esquerda liberal segue se pautando pelo lixo cultural internacional cientificamente distribuído ao redor do globo, a direita segue afirmando, por mais falso e demagógico que seja, que os recursos públicos devem ser empregados em produções artísticas de qualidade e de ampla relevância social. Vale insistir no ponto: ao passo que praticamente todo o espectro do liberalismo de esquerda se mostre extremamente permeável à pataquada pós-moderna e à centralidade da agenda de liberalização dos costumes do Grupo Globo e do Partido Democrata estadunidense, que em última instância, toca em quase nada em relação à miséria do povo brasileiro, a direita tenta acertar o discurso em direção às grandes maiorias em vez de orbitar ao redor de nichos de classe média.
Por fim, enquanto a esquerda liberal segue afirmando o horizonte mesquinho de idéias como “empoderamento“ e “representatividade”, ou seja, da simples inclusão de ícones representativos dos grupos historicamente oprimidos da sociedade brasileira na atual cultura de massas – marcada pela pobreza estética e pela submissão ao imperialismo cultural – o pronunciamento do ex-secretário afirma, ainda que de forma cínica e inconsequente, a ideia de uma arte que retrate o povo brasileiro na totalidade de sua riqueza cultural.
É evidente que, no plano da cultura, a direita brasileira tem feito uma crítica parcial à decadência estética e à regressão intelectual promovida pela esquerda liberal; crítica essa que deveria ser total e, principalmente, capitaneada pelos revolucionários.
Apesar disso, um elemento iguala, naquilo que é essencial, ultraliberalismo e liberalismo de esquerda: a política cultural baseada na isenção fiscal, manifesta na Lei Rouanet e suas correspondentes nas instâncias estaduais e municipais.
Todos os governos – a despeito da coloração partidária -, que desde a criação da lei – durante o governo Sarney – sustentaram tal política de forma mais ou menos intensa, não fizeram mais que entregar nas mãos dos capitalistas o destino da cultura nacional. Eis o cerne dessa politica: o Estado brasileiro deixa de aplicar diretamente a riqueza no fomento ao melhor de nossa cultura para, através da isenção fiscal, incentivar o capital a patrocinar, como bem lhe aprouver, a produção cultural nacional.
Uma vez que os critérios dessa escolha por parte do capital não são artísticos, mas sobretudo comerciais, a decisão sobre quais produções serão patrocinadas não se orienta pelo valor artístico, pela dimensão crítica ou pela importância da produção para a cultura nacional, mas simplesmente pelo potencial de retorno em propaganda e marketing que tais produções carregam. Nessas circunstâncias, as produções culturais nacionais mais autênticas ficam, via de regra, escanteadas em detrimento das produções nacionais mais diretamente referenciadas pela indústria cultural dos países centrais. Ou seja, a política da isenção fiscal funciona no Brasil esterilizando, diluindo ou neutralizando as produções culturais nacionais mais genuínas, fortalecendo desde dentro a jaula do imperialismo cultural.
Assim, se na aparência a política cultural dos governos do sistema PTucano se diferencia da política cultural que vem se delineando no governo Bolsonaro, na essência essa diferença não existe. Apesar dos alardes, o atual governo mantém incólume a política cultural baseada na isenção fiscal; a Lei Rouanet goza de boa saúde no governo Bolsonaro, e seguirá assim em todos os governos sem compromisso com a cultura nacional e cúmplices de nossa submissão ao imperialismo cultural.
Dessa forma, sem condição alguma de produzir uma crítica contundente à política cultural de Bolsonaro, só resta ao liberalismo de esquerda denunciar de forma impotente e moralista os flertes cosméticos e pitorescos de Roberto Alvim com o nacionalismo de extrema-direita no seu pronunciamento tão repercutido.
A questão que o vídeo do ex-secretário realmente impõe à esquerda é: como tratar o nacionalismo?
Se de modo semelhante o socialismo foi alvo de intensa disputa à direita e à esquerda, o nacionalismo, de fato, também é. O nacionalismo invocado ali, não por acaso, é de uma vertente expansionista e que aposta na metafísica de quinta categoria da excepcionalidade de um povo em relação a outro para colonizá-lo – algo muito diferente do nacionalismo de libertação nacional de povos constantemente subjugados, espoliados, violentados e humilhados.
Ao contrário daquilo que a esquerda liberal e seu eterno compromisso com o imperialismo professa, no Brasil o nacionalismo é de fato uma força revolucionária. Ora, o que é a defesa do controle nacional sobre nossas empresas estatais, sobre nossos recursos naturais, sobre nossa biodiversidade, sobre nossas fronteiras, senão uma defesa do nacionalismo? Afinal, o que é a defesa de nossa imensa riqueza cultural perante a miséria que a indústria cultural dos países centrais nos impõe, senão a defesa do nacionalismo?
Eis a grande diferença em relação ao nacionalismo professado pela direita: o nacionalismo revolucionário é o único que pode entregar o que promete, isto é, o único que pode dar consequência prática à luta pelas nossas riquezas nacionais, sejam culturais ou econômicas, se opondo de forma contundente a todas as formas de imperialismo que nos explora e subalterniza. No Brasil, portanto, o nacionalismo de esquerda é um nacionalismo revolucionário.
É evidente que o ultraliberalismo encabeçado por Bolsonaro recolocou, de forma incontornável, o tema do nacionalismo na política brasileira; nesse sentido, o pronunciamento de Roberto Alvim foi um tensionamento que apenas confirma o fato de que o nacionalismo seguirá sendo tema patente, não podendo ser ignorado pelos revolucionários.
Os tempos de internacionalismo abstrato ou cosmopolitismo ingênuo não mais se sustentam entre nós; hoje é tempo de radicalidade política, tempo de pensar a transição ao socialismo, a tática e a estratégica da revolução brasileira. No plano da cultura como em todos os outros, é tempo de pensar o nacionalismo revolucionário!
Grupo de Trabalho ‘Arte, Cultura e Revolução’
Boa tarde!! Belíssimo texto, gostaria de ler mais sobre o tema, para poder criar uma condição melhor para discussão. Gostaria de ler mais, se pudesse enviar mas texto ficarei muito grato.
zeduba@yahoo.com.br
Posso está equivocado, mas concebo o nacionalismo revolucionário proposto pela RB como a própria transição para o Socialismo. Neste particular o texto me soa ambíguo ao tratar do nacionalismo separado da transição socialista.
Olá, camaradas,
Penso que a ambiguidade apontada pelo Antonio Macário em seu comentário é acertada. Também há incorreções: o projeto do atual governo para a cultura é muito mais amplo do que a simples manutenção da “lei Rouanet”, que por sua vez sofreu modificações que devem ser observadas. Também me parece que a questão cultural e por decorrência a artística no texto são abordadas em abstrato.
De qualquer forma, uma reflexão necessária e urgente. Para´bens por também se colocarem nela.
Faltou só se estender e discorrer sobre qual o papel que a arte e a cultura exercem na construção do nacionalismo numa república esfacelada social e economicamente.
Caros companheiros:
Tenho acompanhado seus textos e posicionamentos com muito interesse. Concordo com quase todas as suas análises, avaliações e propostas. Entretanto, ainda não entendi a razão pela qual vocês se autoproclamam “revolucionários”. Fazer renascer o debate sobre o nacionalismo é, no meu entender, um grande retrocesso perigoso que vocês abraçam. Nacionalismo foi e continua a ser prática da direita: nacionalismo foi e continua a ter cunho fascista que nos reporta a Menotti Del Pichia, Marinetti, Plinio Salgado, Mario de Andrade, Futurismo italiano e à música dando roupagem eruditesca ao folclore. O verdadeiro revolucionário de esquerda, cuja utopia é o socialismo com cada um produzindo segundo sua capacidade e recebendo segundo suas necessidades, é aquele que abraça o internacionalismo. Abraços.