Os limites da Greve da USP

  No dia 1º de Novembro,  a USP encerrou mais uma greve que durou aproximadamente 6 semanas. O movimento político foi liderado pelos alunos, essencialmente através de seu órgão diretivo, o DCE. Esta greve teve uma grande pauta: a contratação de mais professores efetivos. Mais do que discutir a questão dos professores, a greve serve para ilustrar um momento de crise da universidade brasileira e dos caminhos propostos para a resolução dessa crise. As questões e problemas levantados pelo embate político da greve apontam para uma solução radical, que, contudo, não é colocada na ordem do dia nem pelos estudantes, nem professores e funcionários. Quais são os limites da luta e do horizonte político desses grupos que constituem a alma motora de uma universidade? 

  Para conseguirmos responder essa pergunta de forma satisfatória, devemos recuperar em certa medida a trajetória da greve e, a partir de uma análise de seu desenvolvimento, ressaltar quais são os caminhos possíveis de serem trilhados no futuro próximo. Comecemos pois com a recuperação do problema e de seu desenrolar histórico. 

 

O problema  

  A Universidade de São Paulo, assim como tantas outras universidades estaduais, é dirigida por um reitor escolhido em lista tríplice pelo governador do estado. No ano de 2014, Marco Antônio Zago assumiu  a  reitoria da USP, um professor da faculdade de Medicina do campus de Ribeirão Preto. Escolhido por Geraldo Alckmin, então governador do estado e o atual vice-presidente da República, Zago iniciou um processo gradual de demissão dos funcionários e professores da USP. O reitor estabeleceu um programa de demissão voluntária atrativo para que muitos funcionários e professores desejassem sair de empregos. O argumento era simples: a folha de pagamento estava comprometida mais de 100% com o pagamento de salários dos servidores. Logo, a demissão era uma necessidade para equilibrar as contas públicas.

  Aliás, esse argumento é constantemente estampado nos mais variados jornais burgueses em circulação no país ao afirmarem que não se pode gastar mais do que se tem, ou seja, o déficit deve ser zerado e as despesas não podem ser maiores do que as receitas. A matemática é simples, dizem. Se fosse apenas um problema da matemática, estariam corretos. Mas os números não são neutros e tampouco é a Economia. A USP cresceu em número absolutos desde a conquista da autonomia universitária em 1989,  a Universidade de São Paulo mais que dobrou de tamanho – tanto no número de professores e funcionários, bem como de alunos. Contudo, seu orçamento, baseado na arrecadação do ICMS, permaneceu fixo em termos percentuais. Dessa forma, não é possível afirmar que se trata de um problema meramente econômico. É, em sua essência, um problema político. 

  A saída em massa de professores e de funcionários impactou profundamente o desenvolvimento das atividades realizadas na universidade, tanto no âmbito acadêmico, quanto no âmbito administrativo. Com a saída de funcionários de longa data e que realizavam tarefas essenciais ao cotidiano da vida universitária, a reitoria optou por fazer contratos de estágio para alunos suprirem a falta de funcionários. Esses contratos, de até 6 horas, pagavam salários muito abaixo daquilo que os antigos servidores recebiam e sem qualquer direito trabalhista – não existiam férias, nem décimo terceiro, nem FGTS. A superexploração do trabalho, que já estava presente na universidade, foi elevada em sua máxima potência a céu aberto. Os servidores que permaneceram e os alunos tornados funcionários eram obrigados a realizar as mesmas tarefas que antes diversos trabalhadores se dividiam para cumprir. Houve, portanto, uma intensificação do trabalho, pois onde existiam 10, agora existiam 5. 

  Marco Antônio Zago cumpriu à risca os objetivos de Alckmin. Alckmin, que na eleição de 2022 foi chamado de companheiro por Lula, era chamado de fascista por diversos petistas por causa da sua truculência em reprimir manifestações, além de ser conivente com a atividade policial em favelas contra a população pobre e negra. Em 2022 isso deixou de ser um problema, pois era necessário combater o “fascismo” de Bolsonaro. Aliás, todo passado do atual vice-presidente parece ter sido convenientemente esquecido pelos petistas. A necessidade de vitória política na eleição é maior do que qualquer compromisso político real com a transformação da sociedade. 

  Na esfera docente, o processo foi mais lento, mas constante. Aos poucos, professores foram saindo ou se aposentando e a reitoria conscientemente não os repôs. Eis que houve a pandemia e, por medida governamental, foram proibidos novos concursos públicos. Isso fechou o caixão de um problema que já era anterior. Entre 2014 e 2023, a USP perdeu 818 professores, segundo dados da própria universidade. Segundo a Associação dos Docentes da USP (ADUSP), o déficit de professores seria ainda maior, chegando a 1039. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas perdeu 16% do seu quadro, totalizando 71 professores. A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) perdeu 28%, a Faculdade de Economia e Administração 25%, a Faculdade de Medicina (FM) 16% e a Escola Politécnica (POLI) 14%. Isso ocasionou uma diminuição ou até fechamento de disciplinas para alunos da graduação e da pós-graduação. Inclusive ocorreu o não oferecimento de disciplinas obrigatórias para a conclusão da graduação. Houve a contratação de professores temporários. Esses professores recebiam um salário que confirma a superexploração do trabalho, pois eram muito mais baixos do que a força de trabalho deles de fato valia. Além de não haver a possibilidade de se estruturar uma relação entre ensino e pesquisa, pois, ao término de seu contrato, eles eram de fato desligados. 

  Como é possível de se observar, o quadro não era apenas de uma ou de outra faculdade, mas da própria estrutura universitária uspiana e das decisões tomadas pela reitoria e pelo governo do estado. 

 

A greve  

  O que foi descrito acima ocorreu em um intervalo de 9 anos. Nesse tempo ocorreram algumas greves na USP, mas sem que tivessem a pauta clara e direta da contratação de professores. Entretanto, nesse ano de 2023, a situação se tornou crítica demais para muitos alunos de diferentes cursos e isso insuflou uma insatisfação que já ocorria há mais tempo. Houve uma assembleia do Diretório Central dos Estudantes no dia 19 de Setembro e lá foi votado para que o corpo discente entrasse em greve. Diversas faculdades aderiram à greve com manifestações de paralisação por alguns dias. Faculdades que historicamente não apoiam greves ou paralisações, como as faculdades de Economia e de Medicina, estavam apoiando o movimento grevista. A ADUSP aprovou a paralisação não só em apoio aos estudantes, mas também porque representa um acúmulo de trabalho para os próprios professores, uma vez que são eles que terão que dar mais aulas, orientar mais alunos e desenvolver mais atividades acadêmicas. Até o jornal O Estado de São Paulo, em editorial, indicava a necessidade de mais contratação de professores. Ou seja, o movimento gozava de amplo apoio, até de veículos reacionários.

  Como é possível ler em uma postagem do DCE na rede social Instagram no dia 27 de Setembro, as reivindicações se dividiram em 5 pontos: 1. Não extinguir cursos por causa da falta de professores; 2. a volta do gatilho automático para a reposição de professores; 3. o aumento do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAFPE); 4. fim do edital de méritos, que destinava às universidades mais ou menos professores baseados em critérios de produtividade; 5. nenhuma punição aos estudantes. 

  Diante da pressão e mobilização iniciais tanto por parte dos estudantes, quanto por parte da sociedade, a reitoria decidiu elaborar uma proposta que tentasse resolver os problemas, bem como encerrar a greve. Nessa proposta, estavam incluídas a contratação de 1027 docentes, sendo que 879 já haviam sido definidas pela reitoria como plano para os 4 anos de exercício. Na prática, seriam, portanto, apenas 148 vagas novas. A reitoria também se comprometeu a fazer a  reposição automática dos professores exonerados. O edital de mérito foi mantido na proposta. 

  Claramente, a proposta da reitoria era extremamente insuficiente diante das necessidades estruturais que a universidade enfrentava. Em nova assembleia no começo de Outubro, os estudantes votaram por manter a greve. Apesar de haver inúmeras assembleias, o DCE publicizou apenas três atas do período em questão. Em todas podemos ver alguns encaminhamentos programáticos como manifestações ou panfletagens a serem feitas. Contudo, parece que falta algo: a elevação do nível de consciência crítica dos estudantes. Não houve aulas públicas para debater não só a questão da falta de professores, mas o problema da universidade brasileira como um todo. A discussão sobre a universidade necessária, pensada por Darcy Ribeiro, não esteve presente em nenhum momento da greve. A luta é por manter a universidade atual com alguns reparos que, entretanto, não tocam no fundamental. A universidade pode ter mais professores, mas qual é a sua conexão com as necessidades do povo brasileiro? A publicação de artigos em revistas acadêmicas, impulsionada pelo Qualis, parece não ser um problema para a maioria dos estudantes. É essa lógica de publicação que justamente afasta os professores-pesquisadores das temáticas importantes para a nação. Do que adianta exigir a contratação de professores se o sistema que os aprisiona e que, simultaneamente, faz com que eles sintam sua importância aumentar à medida que publicam em revistas com alta classificação, continua a existir? 

  Além disso, a universidade, ao ficar prisioneira desse sistema que privilegia a publicação em revistas acadêmicas, volta as costas para as grandes questões nacionais e sociais. A dependência econômica e o desenvolvimento do subdesenvolvimento, como aponta André Gunder Frank, passaram longe de qualquer tipo de discussão. A dependência não é sequer pensada como um dos elementos que dão origem justamente à crise, não só de financiamento das universidades, mas também da produção de ciência e tecnologia. Ou seja, aquilo que gera a situação de crise que a USP atravessa é completamente ignorado pelo corpo discente, apesar de ser justamente denunciado. A dependência produz uma universidade cativa de ideais originais e de avanço em direção à problematização teórica sobre o subdesenvolvimento e sua superação. As ideias são importadas principalmente da Europa, mas também a partir dos Estados Unidos. Aquilo que José Enrique Rodó definiu como “nortemania”, quando se referia à influência estadunidense na América Latina. Mas, além disso,  a dependência cria uma sociedade onde o desenvolvimento da universidade se faz não para libertá-la do domínio do capital e do imperialismo, mas precisamente para reforçá-lo, ainda que inconscientemente. 

  Após algumas semanas de greve, as faculdades foram pouco a pouco saindo do estado de paralisação e retornando às suas atividades. A ADUSP também retirou o estado grevista. E assim o movimento foi aos poucos perdendo força e capacidade de negociação com a reitoria. Foi assim que a greve foi minguando e restou ao DCE aceitar as frágeis propostas da reitoria. A greve, apesar de seu conteúdo legítimo, fracassou. Muitos acreditam que, quando se faz uma greve, a discussão e a crítica devem estar ausentes para favorecer movimentos práticos como atos, piquetes e panfletagem. Não há a menor dúvida que estes instrumentos de greve são fundamentais e necessários. Entretanto, o debate e a discussão devem permear a greve, pois é assim que a consciência é capaz de produzir uma reflexão crítica sobre o momento e assim delinear de forma clara a tática a se seguir. E, ao mesmo tempo, apontar para o cerne do problema. 

 

E agora?

  Esta não foi a última greve da USP, tampouco de qualquer universidade brasileira. Não deve haver desespero, pois a luta é contínua e se hoje se experienciou a derrota, é ela mesma que amanhã sedimentará a vitória. O momento exige uma reflexão crítica realista sobre os pontos positivos da greve e seus limites. Sobretudo deve-se recolocar o problema da dependência no horizonte do debate, pois é somente a partir desta concepção teórica que haverá alguma saída satisfatória para o impasse universitário. A Teoria Marxista da Dependência, bem como Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, foi apagada conscientemente do debate brasileiro, especialmente na USP, não só pelo seu arcabouço teórico rigoroso, mas pela sua radicalidade. Cabe agora retornar a esse debate e armar o movimento dos estudantes, pouco a pouco, com a reflexão teórica da dependência. 

  Além de reinserir este debate novamente na discussão para se transformar a estrutura universitária, é necessário estabelecer outros dois pontos. O primeiro refere-se às instituições representativas dos estudantes, tanto os centros acadêmicos, quanto o próprio DCE. Deve-se realizar uma disputa destes centros acadêmicos para que ocorra uma disputa dentro da ordem contra a ordem. As entidades representativas têm que se apresentar cotidianamente na vida dos alunos e não somente em momentos de eleição e de greve. Deve haver um trabalho para organizar os alunos de forma sistemática e durante longo período de tempo. A diversidade de atividades, bem como a multiplicidade de debates ajudam não só na construção da própria entidade, mas também na mobilização e tomada de consciência por parte dos estudantes. Assembleias com 5% do total de alunos apontam que há uma descrença generalizada dos estudantes com seus próprios órgãos representativos. Os estudantes não se reconhecem nem nos CAs, nem no DCE. Portanto, é preciso disputar essas entidades.

  Em segundo lugar, deve-se disputar os estudantes também em um movimento por fora das entidades representativas. Mobilizá-los ouvindo suas demandas, suas necessidades, suas queixas. A partir de uma construção coletiva, independente dos CAs, que é possível mobilizar e organizar os estudantes. Se os estudantes não se veem em sua entidade representativa, além de disputar essas entidades, é necessário que uma organização revolucionária consiga fazer os alunos sentirem que seus problemas são ouvidos e entendidos e que há uma solução. Elevar o nível de consciência dos estudantes partindo de suas próprias experiências é uma tarefa da mais alta importância. 

  Somente a partir da consciência crítica é que se pode avançar na organização e mobilização estudantis. Aqui, onde prospera o subdesenvolvimento e a miséria é constante, só pode haver uma saída: a revolucionária. Como aponta Marini em seu livro clássico, aqui temos o subdesenvolvimento e por isso devemos ter a revolução. 

 

Texto de
Flávio Magalhães
Militante da JRB – SP

 

 

Spread the love

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.