Tese da Revolução Brasileira para o 7º Congresso do Psol

O desafio dos socialistas diante da hegemonia da esquerda liberal

 A guerra de classes ganha a cada dia maior força no Brasil. O protofascista Bolsonaro avança com decisão e êxito na execução do programa ultraliberal destinado ao aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento, cuja expressão mais evidente é o elevado grau de exploração da força de trabalho e a miséria crescente das massas. A crise social – que jamais deixou de existir no país – ganha contornos mais dramáticos a cada dia... No entanto, não há que se enganar sobre o fundamental: crise e superlucros constituem a norma em crises cíclicas e, de maneira geral, caracterizam o desenvolvimento capitalista desde a instalação do Plano Real em 1994 e o pacto de classe selado sob FHC, estratégia de dominação que expressa a força da coesão burguesa. Contudo, a partir de janeiro de 2016, a coesão burguesa avançou ainda mais aproveitando as águas turbulentas da crise inaugurada ainda no governo petista de Dilma Rousseff, manifesta desde o primeiro dia de seu segundo mandato. A crise nacional em curso desde então foi agravada pela eclosão da crise cíclica do capitalismo em escala global – cujo epicentro são os Estados Unidos – e ainda não oferece sinais de superação a despeito do ensaio “rooseveltiano” de Biden que animou os democratas no principal país imperialista e renovou as esperanças da esquerda liberal em vários países da América Latina. Ainda assim, mesmo contando com os recursos que sempre emergem em períodos semelhantes, a crise segue seu curso normal com os conhecidos efeitos destrutivos especialmente agudos na periferia do sistema.

 A esquerda liberal no Brasil sofreu grave regressão intelectual e política nas duas últimas décadas e, para além das ilusões próprias acumuladas historicamente, agravou ainda mais sua impotência diante da crise ao ignorar o processo de acumulação em escala global com as características próprias que sempre se manifestam na periferia do sistema capitalista. Até bem pouco tempo, a esquerda liberal também compartilhava com as distintas frações do capital certo orgulho burguês ao sublinhar o caráter complexo e industrializante do desenvolvimento capitalista no Brasil em contraste com outros países latino-americanos. No entanto, pela via lenta desde 1994 e de maneira acelerada a partir de 2016, a dependência se aprofundou com tanta intensidade que os desenvolvimentistas reconheceram o processo dobrando a aposta na sua ideologia ao denunciar a “desindustrialização” como fenômeno derivado da aplicação de “políticas neoliberais” e jamais como expressão das enormes transformações da economia mundial. Em resumo: o desenvolvimentismo empobreceu ainda mais seu horizonte como expressão da consciência burguesa possível na periferia do sistema capitalista e, em consequência, não teve alternativa senão o refúgio no bordão moral da luta contra a pobreza pela via de políticas sociais submetidas à austeridade fiscal necessária para alimentar a espiral rentista que finalmente domina a lógica do sistema.

 Assim, o antigo desenvolvimentismo sob o impulso das enormes transformações do sistema capitalista em escala global abandonou de bom grado o antigo projeto burguês da industrialização e assumiu sem inibição o desenvolvimento capitalista rentístico que atualmente é dominante. A fração industrial da burguesia – aquela mesma que na história dos debates acerca das frentes progressistas embaladas pelo otimismo da aliança de classes sempre flertou com a promessa de superação da dependência e do subdesenvolvimento pela via capitalista – sucumbiu completamente diante da concorrência dos preços chineses e os sobreviventes avançaram para as formas rentísticas de valorização do capital sem vacilação. Adeus desenvolvimentismo! As demais frações do capital (comercial, agrária e bancária) ganharam proeminência na coesão burguesa e o recurso de maneira mais sistemática à superexploração da força de trabalho supunha a guerra do capital contra “os direitos dos trabalhadores”. O desenvolvimentismo não perdeu o rebolado e a cada nova investida da coesão burguesa reafirmava sua fé na capacidade de uma “integração não subordinada” à economia mundial com as possibilidades de emprego e renda para todos.

 Há que enfrentar questões elementares. A estratégia desenvolvimentista é mesmo viável? As transformações na economia mundial impeliram a transformação rentística do capitalismo dependente. Ademais, não são menores as transformações estruturais do capitalismo no Brasil, sistematicamente ignoradas com o artifício de comparar governos (FHC x Lula ou Lula x Bolsonaro) como meio cômodo de não observar a continuidade na economia, no estado, no regime das classes sociais e na cultura. Os socialistas não podem simplesmente permanecer apegados à interpretação eleitoral da luta de classes! Ao contrário dos anos sessenta e setenta quando até mesmo liberais aceitavam que a agricultura brasileira era um “problema”, a solução capitalista implementada no país fortaleceu a importância da renda da terra na obtenção de um enorme excedente econômico com notória implicação política: a burguesia agrária obteve mais poder político e capacidade de ação. O Brasil é um dos poucos países do mundo onde a fronteira agrícola cresce ano após ano sem respeitar governos! Nos governos do PT a expansão é enorme! O antigo desenvolvimentismo tinha na reforma agrária um dos seus pilares precisamente destinado a superar a baixa produtividade da agricultura capitalista. O desenvolvimento capitalista da agricultura superou esta barreira.

 O segundo pilar de sustentação do projeto desenvolvimentista supunha a forte intervenção estatal em favor de uma aliança de classe cuja liderança estava reservada para a burguesia industrial. Também aqui as condições objetivas para tal estratégia desapareceram para sempre. A lenta e inexorável transnacionalização da indústria foi a prática concreta da administração petucana da política econômica e, em consequência, a produção de máquinas e equipamentos – núcleo racional da burguesia industrial – é de completo controle das multinacionais. O sonho dourado dos desenvolvimentistas sempre foi a política industrial que jamais sequer se ensaiou em todos os governos desde 1994. Ano após ano, governo após governo, o país comprou ou alugou máquinas e equipamentos responsáveis pelo aumento da produtividade do trabalho. Em agosto de 2016, último mês do governo do PT, o país queimou nada menos que 23 bilhões de dólares com a importação e aluguel de equipamentos. A burguesia industrial perdeu força no interior da coesão burguesa.

 O terceiro sustento da política desenvolvimentista consistia na capacidade de endividamento do Estado. Ora, não é preciso muito esforço para observar o superendividamento do Estado brasileiro em moeda nacional – além da dívida externa em dólar – sob controle das distintas frações de capital nacional e também em posse de estrangeiros. De fato, a dívida pública se tornou o epicentro da república rentista e seus credores mantêm estrito controle sobre a política econômica. A política de permanente austeridade fiscal é resultado necessário do rentismo em sua forma mais visível, razão pela qual todas as demais demandas sociais – ambiente, educação, saúde, ciência e tecnologia, controle territorial, saneamento, etc. – não podem ser senão muito modestas, cronicamente subfinanciadas e permanentemente insuficientes. Não por acaso o PT na administração Dilma vetou a auditoria da dívida pública embora contasse com maioria no parlamento!

 Finalmente, o antigo desenvolvimentismo defendia a prioridade para o mercado interno. No entanto, sem reforma agrária, com a inexistência do setor de máquinas e equipamentos e na esteira da superexploração da força de trabalho, os desenvolvimentistas criam mera ideologia incapaz de encontrar apoio nas frações burguesas responsáveis pelo pacto de classe. Os superlucros dos últimos anos em meio à enorme crise foram, na prática, resultado de sucessivas reformas trabalhistas que na essência aprofundaram a superexploração dos trabalhadores: segundo a PNADC, em 2019 a renda média mensal de 60% dos trabalhadores brasileiros — o correspondente a 54 milhões de empregados com carteira assinada ou na informalidade — foi inferior ao salário mínimo pago em 2018. A ONU (PNUD) informa que o 1% mais rico da população brasileira detém 28,3% da renda e os 10% mais ricos ostentam 42,5%. Enquanto isso, os 40% mais pobres possuem apenas 10,4%.

 O forte apelo moral dos governos petistas corresponde, portanto, à incapacidade crônica da esquerda liberal em superar as condições estruturais do desenvolvimento capitalista e, em consequência, as políticas sociais reduzidas a mera digestão moral da pobreza constituem o caminho de adaptação à ordem burguesa, um caminho “moralmente aceitável” diante da nova configuração do capitalismo dependente na fase rentística. Aqui reside a força e a miséria do “lulismo”, horizonte da esquerda liberal!

 Nesse contexto, toda a força e a miséria do “lulismo” tem origem precisamente no processo que a esquerda liberal não pode compreender e menos ainda superar. Manter a ideologia desenvolvimentista supõe, portanto, estabelecer como horizonte a “política da resistência”, forma supostamente “heroica” da aceitação da ordem burguesa contra a qual as baterias da esquerda não podem jamais atirar. Também por isso, a despeito da correlação de forças real e das transformações em ritmo acelerado que ocorrem sob seus próprios pés, a esquerda liberal assume que a dialética da luta dentro da ordem e contra a ordem não pode passar dos limites do sistema político da dominação burguesa. A consequência é clara: à esquerda liberal não resta outro papel senão figurar como o “espírito crítico” da ordem burguesa sem jamais oferecer o horizonte socialista e a revolução brasileira como a única saída possível. Essa é a razão pela qual desde sempre a correlação de forças nunca é favorável para nenhuma medida considerada mais agressiva contra a burguesia tal como podemos observar durante os longos quase 14 anos de governos petistas (Lula e Dilma). Assim, a vida alterna períodos de avanço da luta popular ou apatia das massas sem que os governos da esquerda liberal indiquem mesmo que timidamente a possibilidade de avançar para além dos limites da ordem que historicamente condenou a maioria absoluta de nosso povo à miséria e à exploração. Essa é a razão pela qual jamais a correlação de forças foi considerada por qualquer ideólogo lulista favorável para mudar os termos do pacto de classe herdado de FHC.

 No PSOL, a hora da verdade finalmente chegou. A destituição de Dilma – tomada como um “golpe parlamentar” e jamais como expressão concreta da guerra de classes – ainda é considerada como uma medida “impensada” ou mesmo “precipitada” de setores da burguesia que, diante da feição protofascista que agora se manifesta de maneira plena, ensaiaria na conjuntura uma retomada de uma aliança de classe capaz de barrar o ultraliberalismo, mitigar o aumento da desigualdade social e retomar o “caminho do desenvolvimento” com a recuperação dos direitos eleitorais de Lula. Uma burguesia arrependida de suas ações! Um país ordenado pela culpa: não é mesmo maravilhoso o mundo em que vivemos?

 Ora, a destituição de Dilma – acriticamente assumida de maneira hegemônica como “golpe” contra a democracia e o povo – permitiu ao PSOL afirmar que não mais existia “espaço para a conciliação” na política brasileira. A nova orientação buscava demarcar um campo de disputa político-eleitoral com o petismo na esperança de que a transição entre o eclipse da forma petista de ser e a nova configuração da esquerda exigida no contexto da guerra de classes pudesse ocorrer sem ruptura com o partido representativo da esquerda liberal. No entanto, bastou os tribunais burgueses afirmarem a possibilidade de Lula se candidatar e o PSOL rachou de maneira clara. De um lado, aqueles que querem Lula já no primeiro turno e, de outro, aqueles que não vacilam em afirmar Lula no segundo turno mendigando atenção para o ensaio de um “programa anticapitalista”.

 No final das contas, todos querem Lula! E o que pretende Lula? Não resta a menor dúvida: uma aliança de classe para enfrentar Bolsonaro! E o que fará a maioria com a linha adotada até poucos meses atrás quando a pleno pulmões gritava não mais “existir espaço para a conciliação”? Ora, abandonar o radicalismo político em nome de uma política cujo eixo central é a constituição de uma aliança de classes – a mais ampla possível – destinada a derrotar Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022.

 Boulos e Freixo expressam de maneira desinibida a filiação lulista e diminuem o horizonte possível para o PSOL na crise brasileira. Na prática, conspiram abertamente em favor da diluição do PSOL na frente ampla “contra o fascismo” como política que esteriliza na raiz o combate dentro da ordem e contra a ordem! A política que praticam é completamente funcional ao PT e a Lula e, obviamente, não contém antídoto contra o fascismo pela simples razão que, na existência eventual de um governo fascista, uma frente ampla eleitoral é completamente incapaz de contê-lo.

 Ademais, a emergência de um regime fascista exibe características marcadas historicamente. A principal é que um regime fascista surge como resposta da burguesia a crise terminal de um regime político democrático burguês que se vê seriamente ameaçado diretamente pela ascensão do movimento de massas liderado por forças socialistas. A experiência europeia é lapidar a respeito assim como, na América Latina, o regime encabeçado por Augusto Pinochet assemelha-se à experiência da Alemanha, Itália, Espanha e Portugal do século passado.

 Não é o caso do Brasil, obviamente. Aqui, o protofascista Bolsonaro é produto da crise da república burguesa e do fracasso histórico do PT em operar mudanças estruturais dentro e contra a ordem. Portanto, a crise exige – e ao mesmo tempo permite – que a transição de um regime de acumulação de caráter industrial para outro de natureza rentística obedeça ao comando da coesão burguesa sob hegemonia da fração financeira numa ofensiva contra a classe trabalhadora historicamente desmoralizada pela impotência petista de quase 14 anos de governo. A ofensiva da direita é, portanto, produto do fracasso histórico da esquerda liberal que confinou a luta dos trabalhadores e suas organizações ao horizonte da luta por justiça social nos marcos do capitalismo. Um enorme retrocesso histórico! Uma enorme derrota político-ideológica!

 A coesão burguesa que comanda o país desde 1994 encontrou a partir de 2009/2010 e especialmente a partir de junho de 2019 – momento em que os sinais da crise cíclica da economia estadunidense apareceram de maneira clara – a possibilidade de avançar de maneira acelerada na direção estabelecida com o Plano Real mas com velocidade multiplicada e sem os obstáculos da resistência popular, cuja última manifestação foi a “marcha sobre Brasília” impedindo a reforma da previdência patrocinada pelo governo liberal e corrupto de Michel Temer.

 A pandemia também abriu novas possibilidades de dominação política que foram devidamente usadas por todos os governos nesse momento de crise. No entanto, o movimento de massas após maio de 2017 arrefeceu e a ausência de convocatória para a luta contra as reformas do capital obedece em primeira instância ao fato de que a esquerda liberal perdeu credibilidade diante de milhões de trabalhadores, condição necessária para barrar a ofensiva burguesa agora em curso acelerado, com amplo apoio parlamentar e judicial e completa cobertura favorável da imprensa burguesa. É claro que os efeitos da crise – especialmente o elevado desemprego – reforçam a passividade da classe trabalhadora, fato que pode ser observado pela diminuição do número e caráter das greves nos últimos anos. Portanto, o efeito devastador da crise aliado à desmoralização histórica da esquerda liberal permitem a ofensiva burguesa contra os trabalhadores já manifesta na disputa presidencial de 2018 com a vitória eleitoral de Bolsonaro.

 O repúdio de amplos setores da classe trabalhadora contra a república burguesa – apodrecida até a medula pela corrupção e responsável pela degradação do trabalho e da vida - produziram a força de Bolsonaro que, não obstante, ainda não conseguiu construir um movimento de massas e organizações correspondentes para avançar num projeto fascista semelhante àquele configurado no Chile de Pinochet. É preciso reconhecer que tampouco foi necessário o recurso a praticas típicas do terrorismo de estado ou de um estado policial pois a oposição de esquerda tem revelado imensa impotência tanto na mobilização popular quanto na oposição parlamentar, a despeito de coincidir em larga medida com o ideário liberal da modernização da economia e do Estado implementado pelo ultraliberalismo sob comando de Paulo Guedes. É claro que sob as atuais circunstâncias e o impulso da crise, a necessidade de um estado policial cujo perfil ainda não está plenamente delineado não deixa de figurar no horizonte das possibilidades históricas. Nada desprezível, no entanto, a presença de milhares de militares (11 mil) da ativa e reserva em postos do governo, como também no núcleo de decisões estratégicas, fato que somente constituiu uma surpresa para a esquerda liberal que supunha e ainda defende a “despolitização das forças armadas” como se tal coisa fosse realmente possível. A esquerda liberal destina mais atenção na tematização das miliciais cariocas do que a evolução do comportamento político das forças armadas. É outro erro que marca a impotência do liberalismo de esquerda diante dos temas estratégicos!

 Essa é a razão pela qual insistimos que Bolsonaro não é um acidente eleitoral, um ponto fora da curva, senão o próprio movimento da curva que chegou para ficar. Nesse contexto, tampouco importa se Bolsonaro terá vida longa; importa reconhecer que o ultraliberalismo e a direita brasileira buscam sua representação como expressão concreta da luta de classes. Portanto, os planos da esquerda liberal resumidos em afirmar uma frente eleitoral “amparada” num programa de extração desenvolvimentista não poderá produzir efeitos positivos e, antes de mais nada, poderá precisamente tocar com mais força a manivela da crise comandada pelas exigências da coesão burguesa. A esquerda liberal – também hegemônica no PSOL – alimenta a ilusão de que a burguesia se encontra não somente dividida, mas, inclusive, “arrependida” de ter apoiado Bolsonaro contra Haddad na disputa de 2018. Outro erro grave! A crise combina reestruturação das condições de acumulação e superlucros para todas as frações do capital. Na mesma medida, avança a concentração e centralização do capital com força inusitada nas últimas décadas como também a desnacionalização do processo de produção a tal ponto que não somente o aluguel e a compra de máquinas e equipamentos se tornaram a regra, cancelando assim as políticas industriais, mas são também cada dia maiores a importação das matérias-primas intermediárias. A dependência nunca foi tão estendida e completa.

 Crise e superlucros anunciamos na resolução da última reunião do diretório nacional do PSOL de março deste ano. É a base da força da coesão burguesa que impede rachas e divisões somente existentes na cabeça dos liberais de esquerda supondo que a dominação burguesa sempre prefere ser civilizada e republicana ao invés da brutalidade e falta de decoro do protofascista que ocupa a presidência da república! Ora, o Brasil dos próximos anos combinará sem dúvida alguma elevada taxa de desemprego, salários baixos, degradação das condições de trabalho e maior intensidade do conflito social. Ao somar com o petismo e as ilusões conciliatórias e moralistas de Lula, os que defendem a adesão sem rodeios ao candidato petista em troca de eventuais apoios para as disputas estaduais não fazem senão comprometer o PSOL de maneira definitiva com a administração capitalista da crise por parte de um eventual – e muito débil – governo encabeçado por Lula. Em consequência, adiam para um futuro indeterminado a necessidade urgente da emergência de um novo radicalismo de esquerda, longe da decadência moral, política e programática do PT e Lula. A luta dentro da ordem e contra a ordem não passa mais pelo apoio a governos petistas, senão precisamente por seu contrário! Também se enganam aqueles que, dotados de consciência ingênua, julgam que a eventual eleição de Lula – ou Ciro – poderia representar um patamar necessário da “resistência contra as políticas neoliberais”, um passo tático na luta por outra correlação de forças. Esse postulado, quando não representa puro oportunismo parlamentar, expressa a consciência ingênua sobre o dinamismo da crise cíclica em curso que não poupará a periferia do sistema como uma das alavancas de sua eventual recuperação. Na conjuntura atual, nenhum governo progressista na América Latina avança em direção a conquistas sociais, limitando-se tão somente a mitigar cosmeticamente os perversos efeitos da crise sobre a população mais pobre enquanto a direita acumula mais força para nova investida.

 O potencial da direita latino-americana – Brasil incluído! – ainda não esgotou; ao contrário, a crise exigirá o aumento de sua potência, maior definição e alinhamento com o ultraliberalismo e o reforço do caráter de classe do Estado. A lógica das situações extremas sofre nova atualização e a importância de disputar governos somente se justifica se estiver aliada a um projeto de poder, portanto, colado à luta pela Revolução Brasileira. Nenhum governo que vença eleições poderá permanecer no comando das ações se não expressar em ações e programas um projeto de poder. A tática limitada a política da resistência já não é capaz de enfrentar a crise; a política de resistência somente se justificaria quando parte constitutiva de uma estratégia revolucionária destinada a fomentar um novo radicalismo político que a classe trabalhadora necessita no país diante do fracasso da esquerda liberal. A luta por direitos não possui qualquer eficácia diante da guerra de classes declarada pelo capital desde 2014 e aprofundada a partir de 2016 nos marcos da ordem burguesa. Os limites do liberalismo de esquerda estão cada dia mais evidentes e sua proclamação não fará senão fomentar ainda mais o avanço da direita brasileira.

 O congresso do PSOL – cujas regras e calendário foram elaborados precisamente para limitar a consciência crítica remanescente no seu interior – expressará o colapso final de um partido que nasceu para superar dialeticamente o fracasso histórico do PT e, finalmente, se rende de maneira definitiva à esquerda liberal na pretensão de ser mera consciência crítica da decadência petista. A tentativa de mudar os personagens e manter o roteiro inerente à esquerda liberal poderá até render mandatos e certo protagonismo eleitoral, mas é definitivamente incapaz de abrir as portas de uma saída popular para a crise brasileira. Ao contrário da superação necessária da política de conciliação de classe que precisamente pariu o beco aparentemente sem saída em que a esquerda se encontra, a aceitação da hegemonia petista implícita na candidatura de Lula a presidência em 2022 por meio de acordos destinados a assegurar certos espaços eleitorais antes de fazer avançar a consciência crítica reforça precisamente as ilusões mais fortes e nocivas da esquerda liberal. A operação é perigosa, pois deixa o campo da crítica à república burguesa e sua falência cada dia mais visível a amplos setores sociais para a direita que não vacilará em repetir o cenário de 2018, quando o protofascista se apresentou como candidatura antissistêmica e Haddad figurou como defensor do sistema ao proclamar adesão à democracia abstrata.

 A esquerda liberal – presidida por Lula – considera que a crise é corrosiva para as pretensões eleitorais da direita brasileira e especialmente adversas para Bolsonaro que, segundo essa versão, poderia chegar combalido para a disputa presidencial de 2022, sendo assim presa fácil para Lula. Nesse caso, caberia ao PSOL impulsionar um eventual governo petista à esquerda com um “programa anticapitalista” na mão na vã ilusão de manter independência em relação a Lula no primeiro turno e aderir sem remissão ao pacto de classe já em curso sob comando do ex-presidente com algum poder de negociação. Nada poderia ser mais ilusório! Lula, como já demonstrou de maneira contumaz, não faz pactos à esquerda e todo seu esforço consiste em buscar aliados na coesão burguesa com o objetivo de dar uma resposta à crise social tal como se fosse possível repetir os anos supostamente “dourados” de seu segundo mandato. Tem tido eficaz a astúcia do petismo em atribuir à Dilma – e jamais à crise e ao capitalismo dependente rentístico – o caráter acidentado de seus dois mandatos e de sua própria destituição. Com esse recurso, o petismo sedimenta o caminho para a disputa eleitoral de Lula na mesma medida em que fomenta todas as ilusões liberais inerentes ao segundo governo do PT na presidência da república.

 Ora, no contexto da crise atual, as exigências da burguesia serão ainda maiores que na década passada. A margem para uma aliança de classe na qual a classe trabalhadora não dispõe nem de partidos próprios, sindicatos verdadeiramente independentes e acumula baixo grau de consciência e capacidade de mobilização é, sem dúvida, inexistente. Ao assumir a possibilidade de apoiar Lula já no primeiro turno o PSOL perderia de maneira definitiva qualquer possibilidade de superação da miséria programática, moral e política do petismo em favor da independência de classe que um partido que se declara socialista deveria prezar.

 A crise da república burguesa não é fenômeno passageiro. As reformas produzidas no estado e na economia – em especial aquelas que aumentaram o grau de exploração da força de trabalho para a absoluta maioria da classe trabalhadora – não podem ser revertidas senão pela presença ativa das massas na política, fazendo valer sua independência de classe e afirmando o programa da revolução brasileira. Os anos vindouros serão – com qualquer governo – um tempo de intensa crise e conflito social. Nesse contexto, a repulsa das massas ao sistema político em crise será ainda mais acentuada. O compromisso com Lula e sua “frente ampla” anti-Bolsonaro na qual o PSOL será finalmente diluído num pacto de classe não somente incapaz de assegurar direitos elementares aos trabalhadores, mas, ao contrário, um compromisso que terminará por avalizar novo ciclo de reformas que a agenda ultraliberal considera indispensável ao calor da crise, representará novo retrocesso à luta socialista no país.

 Finalmente, aqueles que consideram que diante da guerra de classes promovida pela coesão burguesa e da ameaça de um estado policial promovida pelo presidente protofascista não resta senão experimentar uma vez mais Lula – posto que Dilma carregou todas as culpas do petismo deixando o ex-presidente livre das consequências de seus próprios governos – terão que admitir que ajudam a criar hoje os obstáculos que pretendem superar amanhã em condições ainda mais adversas. Não há, de fato, garantia alguma de que a crise poderá ser superada no curto prazo. Tampouco há qualquer sinal de que a coesão burguesa nacional tenha disposição para um pacto de classe diante das circunstâncias impostas pela crise e da absoluta falta de protagonismo das classes populares. Agora, muito mais do que há 10 anos, afirmar a independência de classe das poucas organizações ainda existentes é tarefa decisiva dos socialistas e do compromisso com a Revolução Brasileira.

 

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Comentários

  1. Apenas gostaria de registrar um tema que talvez seja o elo fraco da cadeia que pode servir como mote para emplacar as demais teses da revolução brasileira: o tema da infância. Talvez o único tema que se possa constranger epistemologicamente todos os políticos impostores e a pseudoesquerda seja este. As mazelas do terceiro setor, o mito da incompetência de tudo que é estatal. Enfim, submeto à apreciação dos camaradas esta ideia para irmos amadurecendo à luz das teses da revolução brasileira, até para poder sugerir um caminho dentro da ordem contra a ordem para quem no meio do calor dos fatos ainda precisa transmitir a cultura aos filhos pequenos e entender que sem uma educação de qualidade não deixaremos de ocupar as piores posições na divisão internacional do trabalho, além de inviabilizar a ruptura com o aprofundamento do subdesenvolvimento e da dependência. Abraço!

  2. Tese pujante, coloca os pingos nos is e jotas. Deixa claro que as ilusões de uma frente ampla liderada pela burguesia pode representar uma vitória eleitoral com a derrota do miliciano presidente mas será uma derrota política ao aderir a conciliação Lulista sem a crítica necessária. Demonstrar por A+B que o desenvolvimentismo sem ruptura com o sistema político atual é outra ilusão tão defendida pelos Ciristas, é muito importante.

  3. Diante da eminente incapacidade de promover ações efetivas alinhadas com os princípios da Revolução Brasileira, não consolidei minha filiação ao partido. Aos 57 anos de idade não posso cometer erros ao ingressar, mesmo que tardiamente, no campo da política partidária.

    Seguirei apoiando com atenção e olhar crítico, os encaminhamentos e as ações da Revolução Brasileira.

  4. Apoio a tese da Revolução Brasileira com a certeza de que a nossa luta não se deixa envolver pelas ilusões de que conquistaremos o poder pelas alianças com a classe dominante e pela via eleitoral, mas pela conscientização e organização do proletariado, no sentido da construção de um partido revolucionário, rumo à transição socialista para a sociedade comunista. Saudações!

  5. Eu apoio a tese da RB, pois me alinho política e ideologicamente com as premissas, com os argumentos e com as críticas dela.

  6. A guerra de classes está posta pela burguesia e é hora de assumirmos a independência e o protagonismo da classe trabalhadora brasileira. Nossa luta é contra o imperialismo que só aprofunda a superexploração dos trabalhadores e o assalto às riquezas do país: nem a ilusão do desenvolvimentismo, nem a armadilha da conciliação defendida pelo liberalismo de esquerda oferecem uma real saída para o povo brasileiro.

    Sim, é tempo para a Revolução Brasileira!
    Adiante e à esquerda, sempre!

  7. A construção de um partido revolucionário e mais que urgente discutir e construir a partir de referências teóricas marxistas.

  8. É mais que necessário que seja apontada uma resposta a altura para enfrentamento do avanço ultraliberal que tem nos levado a um retrocesso lastimável.

  9. Coletei assinaturas para obtenção do registro do verdadeiro PSOL aquele cuja base era composta por militantes que tinha vez e voz ,do 3º Congresso para cá virou isso ai ,a cúpula que se diz vanguardista auxiliando outra agremiação dita de esquerda.

  10. A Revolução Brasileira é a vanguarda da esquerda na política brasileira. A critica ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro e na América Latina encontra aqui seus melhores críticos e analistas. VIDA LONGA PARA A TESE DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA!

  11. Compartilho o ceticismo em relação às perspectivas de um eventual novo governo Lula sustentar alterações significativas no modo de produção estabelecido no Brasil.

  12. Concordo plenamente com a tese, vamos lutar por igualdades para todos cidadãos Brasileiros,a burguesia como sempre amassando as classes menos favorecidas deixando os trabalhadores vulneráveis.

  13. Concordo plenamente com a tese,onde a burguesia como sempre amassa os trabalhadores deixando como sempre vulneráveis.

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