“Vasos comunicantes são um conjunto de recipientes que inter-conectados adequadamente mantem seu conteúdo líquido equilibrando no mesmo nível em todos os recipientes, independentemente da forma e do volume dos recipientes. Se mais líquido for adicionado a um recipiente, o líquido encontrará novamente um novo nível igual em todos os recipientes, bastando para isso mantê-los conectados.”
O governo Bolsonaro é inegavelmente a expressão pessoal e política do estágio mais avançado da crise brasileira. Isto posto, cabe verificar que, embora ele se apresente como o ponto mais alto da crise, não decorre daí ele ser também a origem desta. Avaliado além da superfície, é nítido que seu governo não representa uma mudança de rumo em relação aos governos anteriores. Pelo contrário, Bolsonaro e Guedes – sabatinado por Dilma para o cargo de ministro – exprimem a aceleração, a condensação em curto espaço de tempo, da aplicação das exigências do capital ávido pela recuperação de sua taxa de reprodução ampliada.
Dito de outra forma: Bolsonaro é o atendimento expresso das exigências dos Steinbruch, dos Setúbal, dos Lemann, dos Dantas, dos Marinho, dos Esteves, dos Maggi e das Trajano em manter suas taxas de lucro às custas do couro do trabalhador. Essa aceleração não permite afirmar, de forma alguma, que houve significativa alteração no rumo da rota imposta pelos sucessivos governos a partir do Plano Real. Para manter esta continuidade, a burguesia pode contar com um complexo sistema de vasos comunicantes que, independentemente do governo, fará prevalecer seus interesses sobre os da classe trabalhadora.
A reaproximação de Lula com os caciques que, até ontem, eram tratados como execráveis “golpistas” é uma evidência superficial, mas inconteste, desta prevalência e continuidade. Outra evidência aparentemente mais subtil e muito mais significativa da continuidade que permeia todos os governos pós-94 – todos executores das reformas ditas “neoliberais”, em que pese suas colorações retóricas – é a recente divulgação da articulação de Lula com um eleitor declarado de José Serra, o ex-ministro Nelson Jobim, sócio do BTG pactual, banco fundado por Paulo Guedes e hoje propriedade do ex-residente de Bangu 8, André Esteves.
Jobim, filiado ao PMDB – onde foi cotado para a sucessão do “golpista” Temer – é figura emblemática do PTucanismo e simboliza nitidamente o perene domínio da burguesia sobre as decisões cruciais do Estado. Foi ministro de FHC, Lula e Dilma, além de ministro do STF, casa onde os crimes políticos contra o povo são apresentados para chancela.
Jobim não refuga serviço: suspendeu demarcações de terras indígenas e implementou legislação que favorecia a contestação daquelas pelos latifundiários; atuou pela liberalização e desregulamentação da aviação civil com a ampliação do capital estrangeiro no setor; abafou o Massacre de Corumbiara (RO) e de Eldorado dos Carajás (PA); reforçou a subordinação das Forças Armadas aos EUA; fez gestão a favor do marco temporal como critério de demarcação de terras indígenas; aumentou a ingerência direta dos EUA na segurança pública sob pretexto de “guerra às drogas”; colaborou para a cessão da formação da PF ao DEA via financiamento estadunidense, etc.
Entre os serviços prestados à manutenção da ordem burguesa no Brasil, um episódio com profunda repercussão na história recente foi seu o envolvimento na operação dos militares brasileiros no Haiti. Sobre ela, para sermos breve, é significativa sua afirmação de que o transplante da experiência haitiana para o Brasil merecia ser avaliada e para isso se dispunha a “patrocinar a discussão”.
Desaparecido após deixar o governo Dilma em 2011, Jobim ressurge triunfante em 2016, agora sócio e membro do conselho de administração do BTG, atuando como responsável pelas Relações Institucionais, lá permanecendo até hoje.
Dito isto, o que se quer elucidar é que Jobim não é uma excentricidade, uma anomalia do sistema, pelo contrário, ele é parte constitutiva do sistema, órgão vital, engrenagem mestra, sem a qual o regime da superexploração nos países dependentes não se sustentam. São elementos fundamentais para a manutenção da ordem social fundamentada na espoliação cruenta da classe trabalhadora. Sendo, portanto, um elemento permanente, constitutivo da república burguesa.
Jobim, sócio do BTG, ao ser requisitado por Lula, surge como mais um dos fiadores do compromisso entre governo e capital. Figuras como ele atuam como vasos comunicantes que, no subterrâneo, mantém a estabilidade, o nível e a essência do regime capitalista na periferia do sistema, independentemente da forma do reservatório que contenha este regime. Jobim expressa o caráter permanentemente funcional dos agentes que trafegam, operam e implementam as exigências do capital no interior do Estado.
Escalar a contribuição de Jobim é mais uma forma de Lula garantir à burguesia do Brasil que esta pode dormir sossegada pois não tocará, de modo algum, em nenhum de seus interesses.
Não apenas neste aceno, como em todos os acordos que o Partido dos Trabalhadores patrocina, como critério para superar sua derrota histórica, de um lado, e tentar reverter, de outro, os sucessivos reveses que acumulou eleitoralmente desde 2018, algo resta evidente: o petismo não consegue apresentar-se, hoje, senão como mera força de estabilização do regime burguês. É apostando neste papel que sua principal figura – Lula – tenta sinalizar às distintas frações da burguesia que, num possível terceiro governo seu, o ambiente político e social do país será mais favorável aos negócios da classe dominante que o verificado hoje, diante de uma crise profunda da República burguesa, sob direção política de Bolsonaro. Com efeito, a crise reticente que se amplia sobre a nação é tirada, de forma cômoda e oportunista, do seu aspecto estrutural para encontrar justificativa moral no terreno de uma suposta disfunção individual do presidente protofascista – como se Bolsonaro e o bolsonarismo fossem uma anomalia da vida política brasileira, e não expressão do controle absoluto que, nela, exerce a coesão burguesa.
Em todo caso, restam os versos imortalizados por outro Jobim – figura que merece nossa distinção: é o vento ventando, é o fim da ladeira; é a viga, é o vão, festa da cumeeira.
Leonardo Souto
Militante pela Revolução Brasileira
Links:
BTG PACTUAL ANUNCIA O EX-MINISTRO NELSON JOBIM COMO SÓCIO E MEMBRO DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO, RESPONSÁVEL POR RELAÇÕES INSTITUCIONAIS E POLÍTICAS DE COMPLIANCE
https://static.btgpactual.com/media/20160726-btg-pactual-anuncia-o-ex-ministro-nelson-jobim-como-socio-e-membro-do-conselho-de-administracao.pdf
ACORDO ENTRE O GOVERNO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E O GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA SOBRE COOPERAÇÃO EM MATÉRIA DE DEFESA
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/D8609.htm
PETROBRAS PRETENDE ACELERAR DESINVESTIMENTOS, DIZ PRESIDENTE
MEMORANDO DE ENTENDIMENTO SOBRE CONTROLE DE NARCÓTICOS E APLICAÇÃO DA LEI ENTRE O GOVERNO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E O GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
https://web.archive.org/web/20081119133659/http://www2.mre.gov.br/dai/b_eua_339.htm
JOBIM QUER DISCUTIR USO DO EXÉRCITO CONTRA O CRIME
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,jobim-quer-discutir-uso-do-exercito-contra-o-crime,46192
PARA JOBIM, PACIFICAÇÃO NO HAITI OFERECE ‘KNOW-HOW IMPORTANTE’
https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2007/09/070904_haitijobim
O MISTERIOSO E VERGONHOSO ACORDO MILITAR BRASIL-ESTADOS UNIDOS
POR IVAN PINHEIRO – SECRETÁRIO GERAL DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO
https://resistir.info/brasil/acordo_militar_eua_12mai10.html
JOBIM REFORÇOU A IMPORTÂNCIA DO MARCO TEMPORAL PARA DEMARCAÇÕES.
https://www.defesanet.com.br/toa/noticia/21861/Nelson-Jobim-critica-PEC-da-demarcacao-das-terras-indigenas/