“Procurar filosofar sobre a questão [do parto] não é uma insignificância ou uma distração, mas uma tarefa séria e da mais alta responsabilidade.” A. da Silva Melo
O dia das mães se tornou uma das datas mais comercializadas da sociedade capitalista. Neste dia de homenagens hipócritas e compra de flores e presentes, reflitamos acerca do que significa tornar-se mãe no capitalismo dependente brasileiro, do que significa, especialmente, a gestação, o parto e o nascimento, em uma sociedade regulada pelo lucro e pela superexploração do trabalho.
“Assim Nasce o Homem”, de onde foi retirada a epígrafe acima, é o nome de um livro de A. da Silva Mello publicado na década de 60, que levanta inúmeras questões acerca da gestação e do parto, infelizmente, ainda muito atuais. Ao lê-lo, percebe-se que não superamos enquanto sociedade, em mais de 50 anos, questões já cientificamente comprovadas naquela época. As práticas do sistema de saúde, a atenção de saúde à mulher e ao bebê – da gestação ao período que segue o nascimento -, mostram-se negligentes com o complexo processo que é essa fase da vida da mulher e de todos – afinal, todos nascem –, sendo muitas vezes verdadeiramente violentas. De fato, a ciência avançou consideravelmente no campo da obstetrícia e da pediatria, o que reduziu drasticamente a mortalidade materna e infantil. No entanto, agora é como se houvesse uma descompensação para o lado material do evento do nascimento do ser humano, uma excessiva mecanização do ato de parir e nascer. E, portanto, de outro lado, há uma supressão do aspecto espontâneo e biológico, tão natural ao acontecimento. A maneira de se entrar no mundo, definitivamente, mudou, e ninguém ainda pode mensurar as consequências disso a longo prazo.
Desde a Bíblia, a dor do parto é tratada como punição e castigo de Deus à mulher. Ao longo dos séculos, a gestação tornou-se cada vez mais um temor, um mistério permeado de questões psicológicas obscuras. Especialmente com a entrada e a permanência da figura do médico na cena do parto, os nascimentos sofreram significativa mudança. Não em razão, vale destacar, da dualidade de sexo e gênero, tão enfatizada pelos movimentos feministas, pois seria superficial atribuir tamanha transformação ao fato de os médicos serem homens. Mas sim em razão de atender à finalidade desviada da medicina como um todo que, nas sociedades capitalistas, se norteia inevitavelmente por interesses econômicos. É assim que a gestão empresarial da saúde dentro do sistema capitalista nos induz à alienação coletiva do que se é gestar e parir. Nesse âmbito, é totalmente compreensível que cada vez mais mulheres sequer desejem a reprodução; pois o medo decorrente dessa alienação está presente em todas as pessoas, em todas as mulheres, gestando e parindo, ou não. A maioria das mulheres inicia a gestação desejando um parto mais natural possível e a maioria termina em uma cirurgia, vencidas por argumentos não científicos, onde são cortadas sete camadas de pele, que as colocam em riscos desnecessários. Somado a isso, é claro, há as condições sociais muito desfavoráveis, inerentes ao próprio capitalismo, sobretudo nos países periféricos, para se colocar um filho nesta sociedade.
Em 1933, Grantly Dick-Read, médico britânico, publicou o livro “Natural Childbirth”, onde desenvolveu práticas que visavam combater o medo da gravidez e do parto, por meio de educação materna durante a gestação. No final da década de 40, os soviéticos desenvolveram a psicoprofilaxia, que – embora tivesse bastante semelhança com a teoria de Read, ambos reconhecendo o fator cultural como influência significativa nas dores do parto – consistia em um processo consideravelmente mais embasado no aspecto científico e teórico. Em 1951, na URSS, o método foi introduzido por lei em todas as maternidades, sendo este o primeiro país a aplicar a psicoprofilaxia de forma sistemática. Uma conquista muito importante de fato, onde as fases da gestação e do trabalho de parto podiam ser melhor compreendidas por todas as pessoas envolvidas, desde profissionais de saúde às próprias gestantes. No mesmo ano, Fernand Lamaze, médico francês, visitou o Instituto Ivan Pavlov, em Leningrado, e popularizou o método psicoprofilático soviético na França e em outros países, incluindo os Estados Unidos – em plena época da Guerra Fria. Assim, a gestante com acesso a esse conhecimento científico passou a participar de forma mais ativa do momento, com consciência de sua anatomia e fisiologia, entendendo melhor as fases do parto e superando as angústias e dificuldades relacionadas ao evento. Contudo, não se pode deixar de observar uma grande diferença entre a referida conquista na sociedade socialista e na sociedade capitalista. Naquela, foi um avanço universal, uma questão de saúde pública e, portanto, de Estado; enquanto nesta restringiu-se, e restringe-se até hoje, ao limite que o capital impõe, assumindo um status de “escolha” – leia-se, de privilegio de classe – não alcançando, portanto, as mulheres de todas as classes sociais.
Os cenários mundial, latino-americano e brasileiro não são favoráveis à aplicação prática dos conhecimentos e das informações científicas relacionadas à gestação, ao parto e ao nascimento. Nas últimas décadas, a grande mídia, o sistema de saúde e os interesses das grandes corporações vêm dificultando a redução das angústias envolvidas na gestação, no parto e no nascimento. Na verdade, reforçam essa ideia do medo do parto. E, assim, um ato tão natural da vida é transformado em algo cada vez mais artificial, onde percebe-se situações criadas artificialmente, para que artificialmente sejam solucionadas. Silva Mello denuncia em seu livro algo que ainda se mantém: os profissionais de saúde no Brasil, de maneira geral, têm resistência em aceitar métodos há muito provados como eficazes para a redução das dores do parto, o que reduziria, por consequência, as intervenções medicamentosas e cirúrgicas realizadas nesse momento. Ainda, ouve-se que a intervenção – desnecessária, no final das contas – salvou a vida da mãe e da criança. Nas próprias universidades, a formação dos profissionais despreza a fisiologia da gestação e do parto, uma vez que estão comprometidas com os interesses empresariais. A universidade acaba sendo apenas reflexo da sociedade capitalista: as pesquisas não visam o bem estar da população, mas tão somente os interesses privados das grandes empresas que estão por trás de seus financiamentos. Em consequência, consolida-se um efeito em cascata: as intervenções começam na gestação, seguem no trabalho de parto, no parto em si, e, assim por diante, no evento complexo do nascimento das futuras gerações – atendendo a interesses exteriores à mulher e ao bebê.
Assim, por trás da ênfase ao medo do parto, são os interesses econômicos que conduzem os nascimentos em nossa sociedade. Além da indústria de fármacos, claramente interessada em razão dos medicamentos, há o intuito lucrativo dos planos de saúde, traduzidos na intenção também do médico em ganhar mais em razão do nascimento de um bebê. Solidifica-se, assim, um sistema obstétrico formado por intenção de lucro. De modo que podemos dizer sem nenhuma hesitação que o parto é hoje, antes de tudo, um lucrativo negócio dentro do mercado da saúde. O médico recebe um valor maior por realizar uma cirurgia cesariana que por uma assistência a um parto normal. No caso dos médicos de planos de saúde, como agravante, muitos cobram “taxa de disponibilidade para o parto”, objeto de muita discussão jurídica – considerada ilegal em tantos julgamentos. Percebe-se que a chegada de um bebê ao mundo acaba sendo valorizada pelo dinheiro que ela pode proporcionar, em vez da qualidade do parto para a mulher e do nascimento para a criança. Apesar dos resultados científicos confirmarem as melhores variáveis atribuídas ao parto mais natural possível, os procedimentos mais comuns na nossa sociedade são aqueles envolvendo cirurgia e, por conseguinte, são também os mais custosos. Por que seria então mais interessante financiar cirurgias, se não pelo fato de que grandes interesses lucrativos se encontram por trás desse cenário? Percebemos que também no concerne ao nascimento, são os interesses privados dos capitalistas que ditam suas regras ao Estado.
E é assim que o argumento do cordão umbilical estar enrolado no pescoço do bebê, ou de ser arriscado ter que ir para a maternidade de madrugada em meio à violência urbana, entre outros, se transformam em justificativas aceitáveis dadas por alguns profissionais de saúde, pressionando muitas vezes as gestantes para que uma cirurgia de grande porte como a cesariana seja realizada sem necessidade real. Frequentemente, ocorrem cesáreas “de emergência”, que são marcadas para dias depois, não correspondendo, assim, a uma emergência. Segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS), nas semanas anteriores ao Natal, as cirurgias cesarianas aumentam consideravelmente, para, na semana entre Natal e Ano Novo, reduzirem bastante. É uma clara evidência da mais pura conveniência médica: os médicos não querem estar disponíveis para o parto nas semanas de festas de final de ano. Com o aumento das cesarianas desnecessárias – que aumenta em três vezes o risco de morte materna (devido a hemorragias, infecções) –, tem-se mais bebês nas UTI’s, já que nesses casos os riscos de problemas respiratórios são cento e vinte vezes maior. Ou seja, os bebês são extraídos do ventre materno antes de estarem prontos para a vida extrauterina.
Atualmente, a recomendação mundial para a realização de cirurgias cesarianas é entre 10 e 15%, e o Brasil possui taxa de 55,5% no sistema público de saúde, chegando a quase 90% em hospitais e maternidades particulares dos grandes centros – índices inimagináveis em qualquer lugar do mundo. O nosso país ocupa o segundo lugar no ranking mundial nesse quesito, ficando atrás apenas da República Dominicana – aliás, a América Latina possui os maiores índices de cesáreas. É intrigante que as informações científicas a respeito do assunto sejam desprezadas para dar lugar aos interesses econômicos; além de uma questão de lucro, parece ser até mesmo uma questão de status social – muitos bebês brasileiros, tristemente, estão nascendo com direito a festas na maternidade, “cinema” com transmissão ao vivo da cirurgia para a família, serviços de hotelaria impecáveis nas maternidades, dentre outras bizarrices que se tornam prioridade para o momento no lugar do nascimento em si mesmo. Nesses casos, é nítido o desvio total de significado do nascimento. Vimos que o capitalismo encontra facilmente um nicho de mercado no ato de parir, na reprodução humana; mas quando o parto ocorre via vaginal, sobretudo nas camadas mais pobres da sociedade, as inúmeras violências praticadas costumeiramente (agressões verbais, realização de procedimentos sem ciência e/ou consentimento da mulher, etc.) tornam o momento do nascimento algo extremamente traumático, que afeta, por consequência, tudo o que se segue na maternidade e no desenvolvimento dos seres humanos. Muitas mulheres são enganadas por profissionais de saúde para aceitarem os procedimentos – quando são comunicadas, pois muitas vezes, nem isso acontece –; e lidar com esse sentimento após se dar dele consciência pode ser uma tarefa solitária e extremamente árdua. As intervenções medicamentosas e cirúrgicas estão ocorrendo desde o mais cedo possível na vida das pessoas, de forma absolutamente desnecessária. A violência obstétrica (termo que vem sendo utilizado para designar os atos violentos nesse contexto) afeta praticamente a todas as mulheres que engravidam.
Há grupos que batalham pelo que se conhece como humanização do parto, fazendo um trabalho baseado em evidências científicas para nortear os caminhos dos cuidados com a criança, desde sua concepção, bem como fortalecendo a mulher durante gestação, parto e puerpério, fornecendo-lhe informações sobre a sua anatomia, fisiologia e transformações em diversos aspectos. Um movimento que conta com adesão de profissionais da saúde no setor público e privado. No entanto, acabam restritos a pequenos grupos, especialmente àqueles onde se consegue pagar valores bem altos por um pré-natal e um nascimento humanizado – valores altos demais para a maioria das mulheres da classe trabalhadora. A base da pirâmide social continuará refém das práticas nascidas no seio da lógica capitalista. Ainda que haja profissionais conscientes e com práticas baseadas em evidências científicas na rede pública de saúde, são pessoas contra um sistema muito bem consolidado. Ainda que haja leis consolidando um avanço teórico significativo no âmbito do amparo materno-infantil, as condições materiais são completamente desfavoráveis para o seu cumprimento. O movimento humanizado será, portanto, incapaz de se tornar universal em uma sociedade que não rompe com o ideal capitalista. O Estado burguês, sobretudo nas periferias do sistema, segue fornecendo apenas o mínimo necessário para que as pessoas possam se reproduzir e criar uma força de trabalho a ser superexplorada. Há espaço apenas para pequenas mobilizações que, por vezes, podem nos levar a pensar que estamos avançando. Mas, quando postas frente à totalidade, evidenciam seu caráter ilusório, pois, via de regra, apenas quem tem acesso à informação e condição econômica acima da média da maioria da população poderá adentrar nesse mundo.
As soluções que podem vir a ajudar em escolhas individuais, não podem, necessariamente, constituir a proposta em âmbito político pela esquerda. Por isso, o argumento da via de parto ser uma escolha individual da mulher que está gestando, “meu corpo, minhas regras”, como ocorre em movimentos feministas, é claramente insuficiente e politicamente bastante arriscado. Esse mesmo lema deu margem a cartazes de mulheres em manifestações nos Estados Unidos para que não usassem máscaras durante a pandemia da covid-19 que o país e o mundo enfrentam neste momento. De fato, alimentar essa ideia de que o corpo do indivíduo está acima de qualquer coisa, dá margem ao entendimento de que está acima da saúde coletiva. Dá margem, por exemplo, à aprovação do projeto de lei 435/2019, proposto pela deputada do PSL-SP Janaina Paschoal – a gestante poderia optar por uma cesariana a partir das 39 semanas de gestação. Embora seja um momento individual da mulher, ele é marcado pela atuação de grandes instrumentos do capital: religião, grandes mídias, universidades. E, movidos pelos interesses financeiros, adentram na política pública em sentido contrário à preservação dos direitos da mulher e dos bebês. Estamos, portanto, diante de uma responsabilidade coletiva que não pode ser tratada apenas como uma questão individual. Por isso os movimentos feministas, enquanto incapazes de superar os marcos ideológicos do liberalismo (isto é, da ideologia dominante), e de assumir uma perspectiva de classe, uma perspectiva marxista e revolucionária, mesmo com a melhor das intenções, acabam por fornecer armas para o que há de mais reacionário hoje na política.
Sobretudo neste momento em que nos encontramos, de pandemia, onde gestantes e puérperas são consideradas um grupo de risco para a contaminação pelo sars-cov2, fica cristalina a vulnerabilidade dessas mulheres dentro do sistema de saúde, igualmente vulnerável. Neste momento, não se pode nem mesmo defender a ideia de que o parto domiciliar é o mais seguro. Esse tipo de parto nunca foi adotado como política pública no país. Assim, se, por um lado, essa modalidade é de fato uma opção segura, em comparação ao parto hospitalar, para gestações de risco habitual; por outro lado, porém, é necessário que haja integração com o sistema de saúde, bom acompanhamento pré-natal, treinamento de profissionais, como de obstetrizes, e suporte hospitalar próximo do local. No entanto, está claro que esses fatores estão longe de fazerem parte da política pública do parto e do nascimento; o que deixa as mulheres e seus bebês sujeitas a um sistema hospitalar em ruínas. Com a pandemia, a situação precária da saúde está mais exposta do que nunca. Após décadas de sucateamento – passando pelos governos de Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer e, no ápice, Bolsonaro – o colapso do sistema de saúde brasileiro diante do surto viral é inevitável. Se nesta crise pandêmica os bancos estão recebendo todo o suporte do Estado, o sistema de saúde permanece abandonado. Mais de que nunca, o Brasil precisa investir e direcionar as suas políticas de saúde à preservação da vida e do real bem estar da população. Como as mulheres irão parir neste terrível contexto? Como os bebês vão nascer? Quais serão as consequências?
As informações acerca da gestação, do parto e do nascimento com fundamento científico precisam estar com as mulheres, mas também precisam estar nas escolas e nas universidades, nos profissionais de saúde, na cabeça do cidadão comum. É preciso entender as transformações biológicas, fisiológicas e anatômicas da mulher nesse período, encarar os desafios psicológicos inerentes ao processo, e todos devem debater sobre o assunto com muito compromisso com o futuro. É preciso fazer, à exemplo do que foi feito na URSS em determinado momento, uma implantação sistemática de práticas que sejam capazes de mudar o terrível cenário que envolve a gestação, o parto e o nascimento no Brasil. Uma nova concepção da forma de nascer, sem desvio da finalidade do real bem estar físico, mental e social dos seres humanos, só será possível em uma nova sociedade, a sociedade socialista, guiada pelo uso responsável da ciência e visando sempre o bem das pessoas. Uma sociedade humanizada, tal como nunca será a sociedade capitalista, e tal como apenas a revolução social será capaz de fazer nascer.
Indispensável questionamento, em um momento de que se vende uma aparente vida hedonista, “onde a dor não existe”,próprio da sociedade mercantil capitalista, onde no limite a vida vale o que pode se lucrar com ela.
A denúncia acerca da mercantilização da saúde é sempre oportuna e deve ser tema permanente no rol das discussões que envolvem o combate à opressão, as reflexões que alertam para os “jogos de verdades” que nos determinam e nos tornam “pacientes” passivos. Dentro desse extenso rol, especial interesse deve-se voltar para as práticas de exercício de poder sobre os corpos, em particular das mulheres e dos trabalhadores mulheres, que visam expropriar-nos de qualquer prática emancipadora e de esclarecimento, impondo-nos permanentemente o mundo da moral, dos saberes científicos carimbados, do mundo das sobras e das mistificações. Gestação, parto e nascimento no capitalismo se insere nessa luta de maneira a mais correta, um estímulo à reflexão e o destaque à capacidade revolucionária do pensamento, e não como uma mera comunicação simplificadora do tema.
Parir. Dar a luz. Nascer. Prerrogativa feminina. Palco inicial de longo trajeto? Ou mais um espaço a ser disputado? Qual a política a ser aplicada? Contabilizamos hoje os mortos da pandemia, mas quais as variáveis para melhor cuidar da mulher, da criança, da formação dos profissionais de saúde, do necessário retorno para troca do saber médico com as pacientes?
Como sobreviver?
Livia Albuquerque nos dá sendas para parir essa revolução:
São atos concretos de cada um de nós.