Sobre a ocupação de fábricas e as dificuldades impostas pelo capitalismo do Séc. XXI

   Apresentamos nossa reflexão sobre ocupações de fábricas pelos trabalhadores e analisamos especificamente o caso da Ford. Este texto pretende aprofundar de forma crítica a reflexão do texto “Ford: ocupar para salvar os empregos”, disponível no site da Esquerda Marxista. Não se trata de oposição à tese dos conselhos operários, até porque, se não acreditamos que os trabalhadores são capazes de tomar a produção, não faz sentido ser marxista e estar na Revolução Brasileira. O sentido correto é contribuir para aprofundar o necessário debate, para que a tese ganhe efetividade.

  A primeira observação, por demais óbvia, por isso não nos deteremos em esmiuçar, é a concordância do ponto de vista político de que os conselhos são a construção da capacidade de direção da produção pelos trabalhadores, portanto de grande relevância.

  Antes de entrar no tema, precisamos fazer uma segunda observação de natureza metodológica. Trata-se da relação entre um legado conceitual e a necessidade de atualizações, devido ao fato de nos dirigirmos a militantes de uma organização marxista-leninista. Marx nos deixou como legado um método cuja aplicação lhe permitiu apontar as determinações e leis gerais do capitalismo, no entanto, no próprio método dialético ele propõe um avanço em relação ao idealismo hegeliano, no sentido de que tudo é testado na aderência com a materialidade. Podemos então dizer que todos os conceitos têm que ser confrontados com as dimensões espacial e temporal. Para nós da Revolução Brasileira, isso significa que estamos sempre revendo os conceitos e experiências anteriores à luz da realidade latino-americana e brasileira, formações socais bastante diversas da Europa e do ponto de vista histórico que o capitalismo do século XXI continua capitalismo, mas isso não significa que não mudou em dois séculos. Portanto, devemos dialogar com experiências e conceitos do marxismo sem perder a dialética como métrica. Sobre como ser um marxista ortodoxo sem transformar os clássicos e experiências do passado em dogmas, Lukács em História e consciência de classe nos indica:

(…) O marxismo ortodoxo, portanto, não implica a aceitação acrítica dos resultados das investigações de Marx. Não é a ‘crença’ nesta ou naquela tese, nem a exegese de um livro ‘sagrado’. Ao contrário, a ortodoxia se refere exclusivamente ao método. É a convicção científica de que o materialismo dialético é o caminho para a verdade e que seus métodos podem ser desenvolvidos, expandidos e aprofundados apenas nas linhas estabelecidas por seus fundadores. Além disso, é a convicção de que todas as tentativas de superá-lo ou ‘melhorá-lo’ levaram e devem levar à simplificação excessiva, à trivialidade e ao ecletismo (Disponível em: https://www.marxists.org/archive/lukacs/works/history/orthodox.htm).

   A terceira e mais central observação é de caráter histórico e econômico, confrontando experiências do século XIX e início do XX com a segunda década do século XXI. Iniciando com as experiências pioneiras da Comuna de Paris (1871) que já estão relacionadas ao desdobramento das forças produtivas para o capitalismo industrial o qual dialeticamente cria a classe que a ele se opõe, na figura do trabalhador industrial, o operariado, que naquele momento, devido ao seu número e organização, estavam na prática passando de classe em si à classe para si. Durante a Comuna, os trabalhadores controlaram a produção. Do ponto de vista da evolução das forças produtivas, estavam na fase concorrencial do capitalismo, ou seja, um período dominado por pequenas empresas de produção local, regional ou raramente nacional.

   A outra grande experiência de conselhos de trabalhadores foram os sovietes da Rússia de 1905 e 1917, os quais já estavam no limiar para o surgimento do próximo desdobramento das forças produtivas, com o capitalismo industrial passando a operar monopolisticamente. Nesse caso, a escala de produção é no mínimo nacional, mas, devido ao avanço das forças produtivas, há a necessidade de buscar mercados internacionais, resolvida através de políticas militares de constituição de colônias. Essa é a observação a partir da qual Lenin em 1916 escreve Imperialismo, fase superior do capitalismo. Apresenta também a vinculação entre o capital financeiro, os monopólios privados e o monopólio estatal em alguns ramos de atividades. Em 1917, Lenin volta ao tema em O Estado e a Revolução, avançando suas observações e apresentando o conceito de Capitalismo Monopolista de Estado (CME), derivado do excepcional incremento da máquina estatal e das implicações desse processo para a luta revolucionária. O conceito aparece também no sentido de registrar essa crescente intervenção estatal como um sinal da “última hora” do capitalismo, devido a enorme socialização da produção. A categoria imperialismo e a crescente presença do Estado na economia também foram alvo das análises de Trotsky, Rosa de Luxemburgo, Kautsky, Hilferding, Bukharin e até de Gramsci, que não trata de imperialismo, mas dos entraves ao avanço do modo de produção capitalista na Itália em Americanismo e fordismo.

   Para o propósito de ver como aplicar o controle da produção em setores de ponta do capitalismo, retomamos o conceito de CME, mas dialogando com a versão de Baran e Sweezy, sintetizada em Capitalismo Monopolista: ensaios sobre a ordem econômica e social americana. Por terem escrito na segunda metade do século XX, os desdobramentos do CME estão nítidos. A dinâmica é alimentada fundamentalmente pelas iniciativas de empresas gigantescas, as quais trabalham em uma forma renovada de escala global. A partir da metade do século XX, essas empresas em busca de mão de obra mais barata e dócil transferiram plantas industriais para países da periferia, dando origem ao que a literatura econômica chama de Newly Industrial Countries (NICs), países recentemente industrializados (Tailândia, México, África do Sul, Brasil, Singapura, Turquia, China, Índia e Hong Kong). Essas plantas são firmemente ancoradas nas matrizes através de mecanismos de patentes, utilização de máquinas das matrizes e dependência tecnológica. A participação do Estado é fundamental na matriz para financiar pesquisas e desenvolvimentos que depois são incorporados aos produtos sem custo para as transnacionais, devido a escala os riscos são ampliados e o Estado, tanto do país matriz como dos países das filiais, surge como garantidor de última instância. No caso dos países da periferia, devido à competição entre os estados nacionais pela instalação dessas empresas, em geral, a oferta de infraestrutura e subsídios é a regra, no caso da Ford, algo em torno de 20 bilhões de reais.

   Depois desse quadro, fica claro que os desafios para a gestão por conselhos das empresas de dimensões locais, regionais ou nacionais do século XIX até a primeira década do século XX são completamente diferentes dos desafios de gerir empresas de produção em escala global da segunda década do século XXI. Materializo a seguir algumas, existem várias outras, dificuldades no controle por comissões de empresas transnacionais, como é o caso da Ford.

 

Na fabricação

a – Fábricas de automóvel são montadoras, ou seja, em geral produzem apenas o motor e a carroceria, e no caso das picapes e caminhões, o chassi. Como articular a rede de fornecedores com uma fábrica sob controle dos trabalhadores? Vimos esta dificuldade aqui no Rio de Janeiro na experiência do controle dos trabalhadores da Ciferal, no primeiro governo Brizola. As empresas se negam a fornecer às fábricas controladas pelos trabalhadores.

b – Produção espraiada pelo globo. Hoje é comum partes virem de fábricas da mesma empresa de todos os continentes. Nesse caso a dependência aparece claramente. As partes de maior conteúdo tecnológico são feitas nas fábricas da matriz, no caso, toda a parte eletrônica.

 

Na distribuição

c – Veículos novos são distribuídos por lei através de rede de concessionárias. É proibida a venda direta da fábrica para compradores ou para revendedores independentes, desta forma, a venda direta das fábricas controladas pelos trabalhadores para o público estaria vetada. Caso as revendedoras se interessassem em vender os carros da Ford dos trabalhadores, a Ford matriz ameaçaria deixar os revendedores sem receber os carros que a companhia vai exportar para venda em nosso país.

 

No financiamento

d – No Brasil, 80% dos carros novos são vendidos através de financiamento, ou seja, via capital financeiro, portanto teria que haver o interesse desse capital em financiar os Ford dos trabalhadores

   Por último, invocar a experiência da Cipla, em 2002, uma companhia produtora de peças de plástico injetado e ocupada pelos trabalhadores, apresentada no texto da Esquerda Marxista, não resolve porque compararíamos uma empresa, cuja tecnologia remonta às décadas de 1930 e 1940, utilizando um processo que pouco se alterou até hoje. Já no caso da Ford, temos processos tipicamente do século XXI, e sabemos que a dinâmica do sistema é dada pela sua ponta mais avançada e não o contrário.

  Para cada uma das objeções acima há soluções, mas nenhuma fácil ou imediata. Para não ficarmos apenas na crítica, sempre cômoda, retomamos a ideia presente em Lenin da ampliação da socialização da produção nesta etapa do capitalismo, como evidência de que as experiências de conselhos operários só poderão frutificar com o Estado sob o controle dos trabalhadores. É claro que no caso de empresas de menor porte e complexidade, como a Cipla e algumas experiências na Argentina, são possíveis de sobrevivência, apesar de não haver um desenvolvimento significativo. Mas no caso de filiais de transnacionais com necessidade de grandes investimentos e de ordenamento jurídico que lhes permitam enfrentar o garrote das antigas matrizes, apenas o controle do Estado lhes dará capacidade de existência.

 

Fonte: Como era feita a injeção de plásticos no passado? Disponível em: https://www.injecaodeplasticos.com.br/comoera-feita-a-injecao-de-plasticos-no-passado/#:~:text=Conhecendo%20a%20inje%C3%A7%C3%A3o%20de%20pl %C3%A1stico%20no%20passado&text=Sendo%20assim%2C%20n%C3%A3o%20%C3%A

 

Heitor Silva

Professor universitário
Militante pela Revolução Brasileira – RJ

 

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Comentários

  1. Olaaaa
    Interessante texto e analise
    Eu participei da invasão de fabrica da Cipla em 2002 em Joinville SC, ao lado de Serge Goulart e outros camaradas.
    Eu gostaria de conversar mais sobre o assunto
    Há a Flasko também

  2. O capital deixa tudo muito bem amarrado. Apontamentos necessários para superar-mos a crítica pela crítica. Abraço ao camarada Heitor! ???

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