Fé cega, faca amolada: o oportunismo, o voto e a crise brasileira

Agora não pergunto mais aonde vai a estrada
Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter de ser
Vai ser faca amolada
O brilho cego de paixão e fé
Faca amolada
Milton Nascimento

 

 Para os povos de organização regular – dizia um grande pensador nacional – o problema político de nossos dias está todo em saber se, na conquista das liberdades teóricas, pelo caminho das ideias e das fórmulas jurídicas, as aparências não iludiram os espíritos, substituindo o predomínio da tradição e do sangue, pelo predomínio da especulação e do dinheiro, as castas aristocráticas, com seus títulos militares e suas virtudes marciais, arrogantes de sua honra e de sua bravura, por essa outra classe de senhores improvisados, selecionados nos corredores das bolsas e no pano verde das roletas, cujos caprichos e aventuras pesam sobre a sorte de milhões, em seus países e no estrangeiro, mais efetiva e poderosamente que os caprichos e aventuras de muitos reis de outrora.

 

 No Brasil pós-ditadura, a conquista de liberdades teóricas, consumada sobretudo com o simulacro de democracia gestado após a longa noite ditatorial, não somente fez com que a aparência da realidade iludisse os espíritos, como conseguiu promover uma dupla façanha.

 

 A primeira, confinar o debate sobre as alternativas políticas concretas ao destino da nação aos limites da institucionalidade burguesa e, especialmente, ao calendário eleitoral. A segunda, esvaziar o conteúdo e o significado das lutas históricas por emancipação e libertação do nosso povo. O que, em última instância, significou banir o horizonte revolucionário de superação da dependência, e do subdesenvolvimento, do debate nacional.

 

 Em outras palavras, a Nova República, inaugurada em 1985, já nasceu sob o signo do abandono da luta contra a dominação imperialista – afirmada internamente na perpetuação daquela condição dependente – e da proscrição da Revolução Brasileira.

 

 Contraditoriamente, embora o texto constitucional, promulgado em 1988, trouxesse elementos novos à conjuntura nacional, como a possibilidade do exercício direto do poder pelo povo, portador, em tese, da titularidade do poder, a verdade é que a sucessão dos fatos políticos e econômicos na realidade nacional não fizera senão distanciar o povo brasileiro do exercício do poder de fato. Por outro lado, as classes dominantes, que retomavam a reitoria do processo econômico e político após confiarem preventivamente sua gestão às forças armadas, parecem, ironicamente, não ter vivido período mais favorável à preservação dos seus interesses e à manutenção do seu domínio de classe que o “período democrático”, erigido com a Carta Constitucional.

 

 Com efeito, refletindo o monolitismo dessa condição histórica, a vida política nacional passou a ser, de um lado, expressão inegável de superficialidades, carreirismos e ambições. Por outro, como não poderia deixar de ser, começou a revelar-se, aos olhos de milhões, como um mecanismo a mais de exibição da miséria do nosso tempo, no qual a fraqueza ideológica e a incoerência política das figuras eleitorais são remediadas com a excitação de paixões e ambições, erguidas como estímulo quase exclusivo das lutas partidárias.

 

 Já o funcionamento significativo da nação, movido nas suas estruturas mais profundas, incólumes à estéril alternância de governos, permanece, por sua vez, estranho aquele espetáculo farsesco.

 

 Assim, as eleições, de um modo geral, e o voto, de forma específica, só ganham vida nesse cenário quando ordenados pela lógica do rito da comunhão, em que, na oração pela paz, suplicam os sacerdotes políticos: não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima Vossa Igreja.

 

 A Santa Trindade evocada na prece não é, porém, aquela universalmente conhecida. Antes, se afirma na tríade oportunismo, voto e consciência ingênua: o Pai, o Filho, e o Espírito Santo da vida política nacional.

 

 Nossa heresia, exposta nas linhas que se seguem, decorre precisamente do sacrilégio de pôr em dúvida a imagem sacrossanta conferida ao voto, às eleições e a seus sumo-pontífices, justamente na hora crucial que afirmam vir deles o único caminho viável à remissão de nossos males.

 

 

I – O OPORTUNISMO

 As contradições e os graves problemas que atingem nossa sociedade hoje, ao contrário do que informa a propaganda deseducadora daqueles que hegemonizam a atenção do nosso povo, não decorrem de um acidente de percurso. Tampouco se originam da maldade ou da incompetência de governos ou governantes.

 

 Antes, emanam do próprio desenvolvimento capitalista brasileiro e das transformações operadas sob a base de nossa estrutura econômica, política, social e cultural.

 

 A profundidade dessas transformações e o caráter que esse capitalismo foi assumindo, divorciando, contínua e progressivamente, sua estrutura produtiva da sorte do nosso povo, são, de uma forma ou de outra, o ponto de partida para qualquer exame da presente conjuntura histórica que se queira honesto com a gravidade do momento vivido.

 

 A cor dessa verdade, no entanto, não sensibiliza maioria entre nós. Ao contrário.

 

 O país, visto como um colosso em desintegração, parecer dividir-se em duas fantasias: uma, que advoga que a crise atual é ainda resquício da chaga petista ao passar pela presidência da República; outra, antítese daquela, que propagandeia que a presente crise é consequência justamente da deposição do petismo da presidência da República.

 

 Em comum, além do caráter ordinário e oportunista que anima as duas correntes, a ideia de que foram projetadas muito mais para dialogar com o indefeso público a que se endereçam, que para construir consciência sobre a crise brasileira e o momento histórico da nação.

 

 Imersa sob este ponto de vista de dois olhos cegos, a vida política nacional, praticamente confinada aos estreitos limites do calendário eleitoral, ao afirmar seu metabolismo na busca pueril por conquistas e manutenção de assentos na ordem burguesa, não faz senão chancelar, na consciência de milhões, ora o repúdio completo à classe política e aos seus partidos, ora a aguçada intuição de que, desses espaços de “representação”, certamente não surgirá horizonte concreto de transformação à nação e ao povo trabalhador que a edifica.

 

 Alheios a essa sinalização, porém, o oportunismo de uns, somado ao carreirismo de outros, parecem concorrer para que outras duas determinações desfilem desinibidas nessa conjuntura histórica. A primeira, que impede que a repulsa de nosso povo ao sistema político seja convertida num verdadeiro processo de tomada de consciência, esclarecedor das relações de poder que nos mantém acorrentados à dependência e ao subdesenvolvimento, e combustível, portanto, para construção de uma luta uníssona contra as forças, nacionais e estrangeiras, que, ainda hoje, nos privam da guarda e da disposição de nossas riquezas em favor de um projeto realmente soberano de nação.

 

 A ausência de uma vanguarda política à altura do desafio histórico e a alma liberal tatuada nos setores hegemônicos da esquerda nacional, neste sentido, também concorrem pesadamente para que a agreste paisagem política e social continue viva entre nós.

 

 A segunda determinação, por sua vez, é informada pela atuação daqueles que agem precisamente para ocultar ou deformar o dado central da atual crise brasileira, isto é, as profundas transformações ocorridas na estrutura econômica, no Estado nacional e nas frações de classe que exercem o poder político nesta conjuntura histórica, em decorrência dos câmbios operados no desenvolvimento capitalista brasileiro e na própria dinâmica da economia capitalista mundial.

 

 Sabendo, contudo, não ser tarefa simples ocultar acontecimentos dessa grandeza da consciência popular, a classe política, especialmente aquele progressismo de alma liberal, buscando manter parcelas significativas do nosso povo na indigência e orfandade política, recorre à uma fábula que, numa mistura de oportunismo e apelo moral, procura dar outra interpretação ao momento atual da nação.

 

 A fábula, miserável do começo ao fim, é a do país que havia encontrado, enfim, e pela primeira vez na sua história, o caminho da felicidade. O caminho que nos levaria, afinal, a bom porto, ao lado das nações mais desenvolvidas do mundo, algumas das quais, inclusive, já havíamos superado em termos de quantificação de riqueza produzida, um valioso termômetro para medir o acerto do caminho trilhado.

 

 Não fosse a malévola arquitetura de um golpe, tomado como um raio vindo dum céu sem nuvens, o país não assistiria à crise que assiste – contam os escribas da fábula. Ou, na pior das hipóteses, não assistiria com a dimensão que assiste – complementam seus fiéis e, por vezes, inconfessos escoteiros.

 

 Como a realidade, porém, é mais dura que a fantasia, a encalacrada que o país se encontra, muito por obra também desses propagandistas da fábula, ultrapassa o discurso apologético do conto repetido à exaustão. Em decorrência, a crise atual da República não parece mais ter possibilidade de superação nos marcos da ordem burguesa e nos retraídos limites de um capitalismo dependente, fatalmente condenado a reproduzir a nação como uma imensa e intributável fazenda exportadora de produtos agrícolas e minerais.

 

 Posição, aliás, indispensável à própria engrenagem da economia capitalista mundial, como a história já cuidou de atestar desde a nervura de uma Revolução Industrial, em meados do século XVIII, quando os países da América Latina, em vias de conquistar sua independência jurídico-formal, passavam a gravitar em torno da Inglaterra, atendendo e suprindo suas demandas vitais.

 

 Ao lado daquele museu de grandes novidades, todavia, como expressão do moderno, para não dizer que tudo diante de nós é passado, emergiu uma arrojada estrutura de acumulação rentística do capital. Em torno dela, reúne-se uma coesão burguesa que, traduzindo as mudanças na dinâmica da economia capitalista mundial e seus reflexos interiorizados, nunca de forma mecânica, no capitalismo dependente, alterou, qualitativa e quantitativamente, tanto a correlação de forças no país, como as possibilidades políticas no interior da ordem burguesa.

 

 Exemplo categórico dessa profunda transformação, assistimos, atônitos, encantados com migalhas e dispersos com ideologias deseducadoras de um consumo erguido no endividamento junto ao sistema financeiro mais usurário do planeta, à classe vinculada ao setor latifundiário-exportador tomar centralidade na vida política, econômica e cultural da nação talvez só equiparável ao período anterior à Revolução de 1930.

 

 Com efeito, se um fenômeno como Getúlio é, em grande medida, decorrência do confronto pela titularidade do poder no interior das frações burguesas vinculadas ao mercado interno e ao mercado externo; e se Juscelino é expressão da vitória da burguesia industrial no desaguadouro daquele conflito intra-burguês – que, de resto, operou sob a base de um estado de compromisso; Bolsonaro, por sua vez, não é obra de uma onda conservadora, evangélica e neofascista, como querem os sacerdotes do progressismo. É, ao contrário, expressão de uma reconfiguração profunda no sistema político, na economia nacional, nas classes sociais e na própria cultura do país, ordenada – insistimos – pelo caráter e pela forma que o desenvolvimento capitalista brasileiro assumiu nessa quadra histórica.

 

 Olvidar a dimensão dessas transformações, localizando em Bolsonaro a causa dos males da nação, é tática útil à perpetuação daqueles que não tem compromisso senão com a reprodução de seus mandatos, sempre anunciados sob o invólucro do interesse nacional. Porém, como entre o descontentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia – para lembrar Guimarães – a trapaça ainda ganha maior fraude quando, por agitação e conveniência eleitoral, tributam ao presidente lesa-pátria o anúncio e a personificação, por voluntarismo individual, de uma suposta ameaça fascista.

 

 Eis o script que autoriza, hoje, todo tipo de acordo que, ontem, denunciavam.

 

Ocorre que a tática rasteira, como de resto tudo na vida, tem sempre dois lados. Se do ponto de vista do apelo moral e do ganho eleitoral, aquele recurso parece render valiosos frutos, especialmente àqueles que, sem pudor, se somam à revoada em direção à árvore mais frondosa – Lula; do ponto de vista da luta política, porém, a estratégia se revela tão débil e contraproducente quanto a fábula que a justifica.

 

 

II – O VOTO 

Enquanto a espera aumenta
O mundo se faz esquecido
Na terra dos homens de luzes coloridas

Enquanto a família reza alguém
Segue a novena
No abismo de preces repetidas
No sossego de uma agonia
Sem fim
Geraldo Azevedo

 

 Diante do panorama descrito, a espera pelas eleições se converteu basicamente no abismo de preces repetidas musicado pelo poeta pernambucano, na fase áurea de sua criação. Paralelamente, no voto e nas eleições são depositadas todas as esperanças de remissão ou condenação definitiva da pátria.

 

 O combustível inflacionário dessa postura situacionista, uma profunda regressão teórica, política, intelectual e programática, aliada ao oportunismo condecorado como regra na vida partidária nacional, induz um processo de despolitização do nosso povo que é tão mais grave quanto maior é o apelo para que este povo se converta, de fato, num mero espectador do próprio destino.

 

 Ao início do século passado, quando atravessámos outra crise de profundas dimensões, a conclamação lúcida era para que confiássemos no critério, no patriotismo e na energia do povo brasileiro, esperando que, por entre as fraquezas e indecisões, a desordem e a desorientação daquela triste hora, a lucidez deste povo viesse a iluminar o quadro daquele momento histórico, mostrando o caminho a seguir. Hoje, no entanto, a história foi invertida. A súplica, soprada aos quatro cantos, é para que o povo confie no critério e na prudência da cúpula dirigente do processo eleitoral, portadora, em tese, dos instrumentos necessários à superação dos graves e regulares problemas da nação. A tática, diria Vieiro Pinto, é fazer crer que essa cúpula eleitoral pensa mais nos dramas e sofrimentos do povo trabalhador que em si própria.

 

 Com efeito, tocado pelo cinismo ecoado dessa lógica, nosso povo oscila entre os milhões que ainda esperam dos líderes eleitorais e do rito burguês alguma redenção, e outros tantos milhões que já não fazem senão nutrir por ambos a desconfiança e o desprezo completo. Obviamente, tais sentimentos, pela própria ausência de uma vanguarda que os vocalize e os ilumine, se manifestam basicamente sob a forma de um ceticismo profundo em relação aos partidos e agentes políticos, aliado à uma repulsa, difusa e desorientada, em relação ao sistema político.

 

 A dubiedade do fenômeno, porém, não anula a sua existência. Há, no Brasil de hoje, um contingente significativo do nosso povo que não guarda mais ilusões em relação ao sistema político, não depositando nele, ou nos seus prepostos, quaisquer expectativas de resolução dos graves e profundos problemas que implicam a nação e o nosso povo trabalhador.

 

 Ocorre, contudo, que a ideologia dominante, apegada a seus avarentos interesses, traduz este fenômeno como expressão de um processo de despolitização, não como uma tímida e confusa tomada de consciência. É assim que os detentores da atenção nacional, especialmente da esquerda liberal, identificam aqueles contingentes como indecisos ou desencantados com a política. Isso quando, por autoabsolvição, não os titulam como culpados pela vitória eleitoral de forças conservadoras. Ou, ainda, quando não estão ocupados tributando a composição sempre majoritariamente patronal dos parlamentos, não à sua própria natureza e inclinação classe, mas ao povo que, segundo eles, não sabe ou deixa de votar.

 

 Seja como for, resta colocado, de toda forma, independentemente da confusão que se faça, um dos elementos centrais da disputa política hoje, que não poderá ser equacionado numa replicação mecânica e abstrata de teses sobre o papel do voto e a importância da participação revolucionária nas disputas no interior da ordem burguesa.

 

 Aos apressados que, com Lenin debaixo do braço, queiram dissertar sobre o tema, restringimo-nos a lembrar o ensinamento do principal teórico da Revolução Russa, quando sintetizava o que é o método primado por Marx e Engels: análise concreta de situações concretas. Com efeito, o sociologismo de quem queira nos lembrar da importância da participação nas eleições e da luta nas tribunas parlamentares, como método de disputa e educação da classe trabalhadora, especialmente seus setores mais atrasados, é tão conhecido quanto dispensável ao caso concreto.

 

 Dispensável não por ter caducado tal primado. Antes, pelo fato de que sua interiorização é tão certa entre nós quanto o postulado da luta na ordem, contra a ordem, que sintetiza aquele primado e norteia a atuação política da Revolução Brasileira.

 

 Quem parece não interiorizar o primeiro primado, entretanto, são aqueles que professam o horizonte revolucionário, a adscrição a Lenin, a Trotsky, a Rosa, a Marx e a Engels, ao mesmo tempo que se quedam diante de Lula, das veleidades do Partido dos Trabalhadores e da sua política funcional à dominação burguesa no país.

 

 E quando nos referimos à política funcional à dominação burguesa não estamos querendo, com isso, avançar numa crítica ao horizonte conciliatório e reformista comumente tributado a Lula e seu partido. Tampouco pretendemos, como fazem a maioria de seus pseudo-críticos, quase sempre inconfessos serviçais, indicar os “erros” do Partido naquilo que ele deixou de fazer, e não naquilo que fez, que é onde seu julgamento deve ser severo e sereno.

 

 Na verdade, somente aquela regressão teórica, política e intelectual, indicada anteriormente, somada ao oportunismo reinante, permite, hoje, atribuir ao lulismo alguma natureza reformista. Quem assim procede, o faz já deturpando o significado do conceito, em benefício de uma política que, na melhor das hipóteses, pode ser classificada como um crescimentismo ou um “desenvolvimentismo às avessas”, como denunciavam, com razão, e contra correnteza da década dourada petista, os teóricos neodesenvolvimentistas – dos quais não guardamos outra concordância.

 

 Estamos nos referindo, diversamente, ao aprofundamento da dominação imperialista, que, num país ordenado pela dependência, se dá na afirmação dessa condição histórico-estrutural.

 

 É desse modo que, como continuidade histórica, conveniente e necessária, da ortodoxia liberal de FHC, o petismo colocou em marcha, sem paralelo na história recente da nação, duas determinações estruturais que dariam, tempos mais tarde, forma à terceira determinação, verificada com mais nitidez ao final de seu último mandato na presidência, com Dilma Rousseff. A primeira determinação, portanto, diz respeito a um processo monumental de internacionalização da nossa estrutura produtiva, verificado especialmente com o aporte de capitais estrangeiros, sob a forma de investimento estrangeiro direto, alocados na economia nacional. A segunda, por sua vez, decorrência em algum modo daquela, é traduzida na drenagem sistemática de um valor produzido no Brasil e apropriado nas economias centrais. A terceira, finalmente, compêndio das demais, e signo da condição dependente, traduz-se no regime da superexploração da força de trabalho. Este, como indicado, se pôde ser minorado na aparência durante os anos dourados do petismo, não pode mais ser ocultado hoje, quando da maturação do projeto mutilado e dependente de nação que o mesmo ajudou a dar musculatura.

 

 Assim, quando o petismo apostava todas as suas fichas no setor latifundiário-exportador, como instrumento de obtenção de divisas conveniente para adiar o vendaval esperado com a continuidade cirúrgica do arcabouço econômico herdado do governo anterior, concebia, no silêncio da lobotomia coletiva, o impulso imprudente a uma fração da burguesia cujo negócio, por ser realizado fora do país, não guarda nenhuma relação com a ventura da nação e a sorte do povo brasileiro. Como se não bastasse, aliado à musculatura e à centralidade conferida à classe latifundiária na vida nacional, a política funcional à dominação burguesa conseguiu, ainda, coesionar as demais frações da burguesia em torno do assalto ao Estado, nomeadamente através do sistema da dívida pública, coroado como fonte comum da acumulação capitalista no país.

 

 Por essas razões, os problemas vitais que atravessam a vida do nosso povo trabalhador hoje – a fome, o desemprego aberto, a miséria, o imposto inflacionário, a perda do poder de compra, a superexploração do trabalho, etc. – só podem começar a ser entendidos se colocados à luz da centralidade que essas frações de classe, e seus interesses imediatos, tomaram na vida econômica, política, social e cultural do país. Consequência, lembremos sempre, da transformação capitalista operada ao longo das últimas três ou quatro décadas no Brasil.

 

 Seja como for, de qualquer ângulo que se observe, a conclusão parece óbvia: Lula e o PT, há tempos, tornaram-se peças funcionais à ordem e à dominação burguesa. Nesse sentido, a presença de um protofascista na presidência da República, embora anime contradições que é preciso enfrentar com rigor, não deveria, em hipótese alguma, servir, como tem servido, de pretexto para o silenciamento da história e o abandono do exercício da crítica – armas, ademais, sempre no coldre daqueles que não procuram senão afiançar seu carreirismo e oportunismo, obviamente disfarçados sob a túnica dos mais nobres interesses.

 

 Se o aprendizado histórico nos serve como bússola, convém, em linhas conclusivas, recordar as vitórias eleitorais que, ontem, aqueciam o coração do progressismo brasileiro e eram anunciadas, à consciência ingênua, como prelúdio de bons ventos na América Latina.

 

 Aqueles triunfos, embora soldados em linhas programáticas amplamente mais audaciosas que as que se ensaiam por aqui, alguns ordenados inclusive por profundos e violentos processos de luta popular, paralisam, hoje, diante da crise capitalista mundial e dos limites objetivos da via institucional para superação dos males típicos de nações ordenadas pela dependência e o subdesenvolvimento. Não por acaso, os pastores da consciência ingênua são levados a ocultar aqueles casos com a mesma velocidade que os festejavam.

 

 Desse modo, o cenário nacional, orquestrado pelo grande pacto nacional em torno de Lula, fundido com notórios representantes da burguesia e intragáveis inimigos da classe trabalhadora, não apenas deixa de apontar possibilidade de destino mais favorável que aquele já entregue aos demais países de nuestra América – caso reste vitorioso eleitoralmente – como já denota um retrocesso profundo à consciência política do nosso povo, confrontado com as vísceras mais putrefatas da vida política nacional e com o oportunismo que nela é coroado como virtude.

 

 

Pedro Araújo
Militante pela Revolução Brasileira

 

 

 

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