Darcy Ribeiro: cem fracassos

“Não temos o bom senso de repelir os grosseiros e megatérios ideais americanos e ficar nós mesmos. O mundo não é sempre o mesmo, embora sua substância possa ser uma e única; e os homens, portanto, não podem ser e devem variar com ele.
Substituir o ideal coletivo que é espontaneamente o nosso, por um outro que vai de encontro à nossa mentalidade e ao nosso temperamento, é suicidar-nos.”
– Fragmento de “O Nosso Ianquismo” (Lima Barreto)

 

“Derrota após derrota até a vitória final”
– Ernesto “Che” Guevara

 

Darcy Ribeiro foi um dos maiores intelectuais públicos e militantes fabricados no Terceiro Mundo. Intelectual porque, embora tenha se tornado influente acadêmico, inclusive no terreno internacional, entregou-se à tarefa de gerações que é entender o Brasil e a América Latina. Militante, porque, ao esmiuçar suas profundas contradições, a partir de sua invejável formação teórica e empírica, optou por jamais se resignar, mesmo que se valesse a errar, se arrebentando. Dos quase 10 anos de vivência com os povos indígenas na Amazônia a Ministro da Casa civil de João Goulart, passando pela utopia fazível da Universidade Necessária materializada na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade Estadual Norte-Fluminense (UENF), senador pelo Rio de Janeiro, criador dos Centros Integrados de Educação Públicas (CIEP’s), conhecidos como Brizolões, com Leonel Brizola e Oscar Niemeyer no Rio de Janeiro, escritor de romances e clássicos da antropologia, da pedagogia e das ciências sociais, Darcy Ribeiro, como gostava de se declarar, usou várias ”peles de cobra”, percorrendo uma vida inteira dedicada a estudar os problemas da nossa realidade, fundamentada numa práxis política intensa e em constante contato com os fatos históricos determinados pelo movimento das classes. Porém, mesmo dedicando cada momento de sua vida a antropologar, politicar ou a educar, nunca estiveram essas apartadas umas das outras. Em especial, no projeto de país expresso em seus planos educacionais: os CIEP’s e a Universidade Necessária.

O CIEP, por um lado, foi um dos mais avançados projetos de educação pública básica concretizados no Brasil. Inspirado na sua importante aliança no passado com Anísio Teixeira e seu antigo projeto da Escolas Parque, o CIEP era, como Darcy gostava de dizer, a “escola do mundo civilizado”. Um modelo qualitativo de escola que reproduzia o que era costumeiro nos países centrais em termos de estrutura como França, Japão e Estados Unidos: de tempo integral, com as 3 refeições do dia e diversas atividades extracurriculares, como a educação física, as artes e, para o Ensino Médio, o ensino técnico e profissionalizante. No entanto, não era resultado de simples reprodução do modelo educacional dos países centrais. O CIEP incentivou, desde seu princípio, a busca pelo conhecimento local e regional, cujos exemplos mais eloquentes foram as bibliotecas abertas à comunidade que o Brizolão se inseria e a figura do agitador cultural, que trazia para dentro de suas salas tanto os gestos e suas manias de ser, como as demandas e as reinvindicações daquele círculo social para a escola frente ao governo. Convém se acrescentar ainda que o ensino técnico propagado pelo CIEP, leia-se como jamais substitutivo ao currículo básico, diferentemente do projeto privatista do Novo Ensino Médio. O CIEP foi o que se legitima chamar de educação para si, e não para formação do que chamava de proletários externos. Foi, porque já não o é mais, pelo menos desde a morte de Darcy.

A Universidade Necessária, por outro lado, foi uma de suas mais árduas lutas travadas, por tocar nos interesses de uma classe professoral vinculada às cartilhas de transnacionais privatistas e aos seus próprios interesses de reprodução de seus cargos sedimentados no verdadeiro fracasso da atual universidade. Desta forma, Darcy Ribeiro tentou, a todo modo, implantar um modelo de universidade que correspondesse às nossas necessidades mais urgentes, sendo ela motor de nosso desenvolvimento, e não resultado deste. Era de seu plano fundar uma universidade autônoma, que pensasse não unicamente a realidade que se inseria, mas a si mesma, com esforços orientados na crítica às suas metodologias científicas e objetos de pesquisa. Esse modelo universitário só seria possível, no entanto, mediante uma reforma universitária, levada a cabo por um intenso processo de convulsão social, haja vista que, não somente ele, como o filósofo Álvaro Vieira Pinto, no qual se inspira em sua trajetória acadêmica, a universidade só conseguiria ser alterada pelo movimento das massas. Em outros termos, uma transformação de fora para dentro. Esse é um papel central que a Revolução Brasileira exerce na luta estudantil: a propaganda da Universidade Necessária, como projeto maior para um ensino superior comprometido com a superação da dependência e do subdesenvolvimento que, a partir daí, geram suas consequências moleculares, como as acentuadas desigualdades e a superexploração. Ademais, a Universidade Necessária só pode ser pensada num ensino 100% público, independentemente de financiamento externo e privado, uma vez que esta preserva um vínculo umbilical com a ideologia de seus financiadores, expressas nas suas cartilhas curriculares que, muitas vezes, atuam na formação de uma classe trabalhadora descompromissada com a luta política e com a orientação de pesquisa e de mercado de trabalho voltada às demandas concretas da classe trabalhadora brasileira e latino-americana. Além disso, o financiamento alimenta a própria ilusão de uma universidade que não consiga andar com suas próprias pernas. Destituídas de sua tarefa primordial de guiar nosso próprio destino enquanto nação. Embora sejam tratados, em especial os CIEP’s, como “revolucionários”, não são capazes de se consolidar senão na estratégia revolucionária, como qualquer outro projeto educacional que efetivamente esteja comprometido com um projeto de nação. Essa seria a grande razão por trás de seus fracassos. Fracassos esses que nunca foram perdoados por Darcy Ribeiro, mesmo diante de uma nomeação como doutor Honoris Causa em uma das universidades que mais condenava como inspiração para as universidades latino-americanas: a Sorbonne. Mas fracassos que nos foram herdados como uma missão inacabada do professor e antropólogo que, apesar de conservar ilusões desenvolvimentistas, nunca deixou de reivindicar a revolução social e autêntica como principal mobilizadora de projetos encabeçados por sua própria figura proveniente do longínquo e ancestral trabalhismo.

Darcy, ao reconhecer as falhas tanto de uma quanto de outra, soube diagnosticar o desinteresse e a apatia da classe dominante brasileira de tocá-los à frente, como expressão máxima de sua domesticação frente à burguesia internacional e da incompatibilidade de um ensino e pesquisa voltados para a realidade ao seu redor pelo próprio papel econômico e geopolítico a que fomos condenados a cumprir frente à acumulação capitalista em seus principais centros e à reprodução ampliada da dependência. Não à toa, optou por resistir ao golpe empresarial-militar de 1964, somente recuando com a desautorização de João Goulart. Não à toa, um profundo admirador da Revolução Cubana, como exemplo maior de processo autóctone, único e emancipador de socialismo na periferia capitalista. Talvez seja esse o legado de Darcy Ribeiro: seus fracassos, que ele mesmo fez questão de relembrar para não cair na resignação de elogiar um projeto universitário que jamais poderia dar certo na periferia capitalista, como a Sorbonne, ou a antropologia lá vista, em defesa de sua antropologia banhada segundo nossa história nacional. Mas, também, que os fez sustentar, em certa medida, ilusões num projeto de desenvolvimento da classe dominante brasileira. Nenhum deles, entretanto, que ele, com otimismo, mas com uma humildade que nos faz marejar os olhos até hoje, afirmava categoricamente: “mais vale errar se arrebentando do que poupar-se para nada”. Suas bandeiras, hoje, são empunhadas pela RB e pela Juventude pela Revolução Brasileira (JRB), dos CIEPs à Universidade Necessária, da causa indigenista ao nacionalismo revolucionário, porque, mais perigoso do que o contexto dos fracassos de Darcy Ribeiro, somente o atual: o de esquecimento deles. Sua solidão, fruto de sua marginalização na vida intelectual e política brasileira de seus últimos anos até os dias de hoje, é um fracasso definitivo, que jamais faria o Brasil dar certo. Que nos faz crer que realmente está morto.

 

André Oliveira
Militante da JRB-RJ

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