“Let us begin and carry up this corpse,
Singing together.”
“Comecemos e carreguemos esse corpo,
Cantando juntos.”
– Robert Browning, A Grammarian’s Funeral.
Preâmbulo: Um filme é um filme, segundo o marxismo cultural
(por Lindberg Campos Filho)
Um filme é uma elaboração cerebral dentro de um conjunto de relações sociais reais. Porém, ele não fica só na cabeça individual que o construiu. Ele é voluntariamente colocado na esfera pública e portanto passa a ter uma função, caso o(s) produtor(es), digamos assim, mais diretos estejam cientes ou não disso. Toda e qualquer intervenção na esfera pública tem uma consequência política independentemente de certas vontades individuais -, dito de outro modo, a obra individual ganha uma espécie de semi-autonomia em relação aos seus produtores mais diretos. Contudo, ela não deixa de estar igualmente constrangida pelas relações reais de produção e de distribuição desses trabalhos de elaboração, a um só tempo, física e mental. Principalmente levando em consideração um país em que não há democratização (agenda liberal) ou tampouco a socialização dos meios de produção e de distribuição cultural – laboratórios, universidades, escolas, teatros, museus, galerias, salas de cinema e de espetáculos em geral, estúdios de rádio e tv, editoras, etc. Isto interessa porque este dado objetivamente impacta um aspecto político fundamental: a propriedade dos meios de produção cultural é determinante justamente em termos de alcance, de circulação e de provável exibição (consumo), o que é, sem sombra de dúvida, também bastante crucial para a política dentro da esfera pública. Então, é evidente que as relações de produção e de distribuição são só aparentemente dados externos ao filme; só, a bem da verdade, no reino da fantasia dos padres e homens santos modernos. Ainda mais tendo em vista o abismo que existe entre a produção e circulação independentes e aquelas que contam com os aparelhos oligopolizados da nossa indústria cultural dita nacional. Além disso, não se pode perder de vista as relações mais propriamente políticas, que somente o cinema independente – com todas as suas limitações e impossibilidades – pode se dar ao luxo de não ter hoje em dia e principalmente levando em consideração a realidade prática de um país como o nosso.
Para não reduzirmos a arte e a cultura apenas ao supérfluo, para não tratá-las como meros arroubos emocionais, subjetivos e aleatório com o qual não se deve esperar aprender nada devido à sua espontaneidade e desconexão com os outros e com o mundo: a régua, a expectativa tem que ser no mínimo equivalente àquela que utilizamos para pensar e para julgar a política. Vale, por fim, recordar que o mito da autonomização estética completa é outra cara da autonomia dessa coisa gracinha que é o indivíduo.
1. O Brasil no espelho de Bacurau
O que é Bacurau no contexto da realidade brasileira? O que Bacurau tem a nos dizer sobre as crises e os desafios postos pelo presente histórico no Brasil? Qual é o caminho que nos indica Bacurau? Mas, também… qual é o caminho que nos leva até Bacurau.
Bacurau é um documento do nosso tempo, mas não pelos motivos intentados pelos diretores Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Aquilo que Bacurau revela, enquanto documento, é o modo como uma parcela ainda dominante da esquerda encara os problemas e conflitos da realidade social e a resposta que hegemonicamente – até o momento – está sendo dada para o acirramento e aprofundamento da crise brasileira. O enredo de Bacurau é uma tentativa franca de representar e apontar soluções, cujos méritos entraremos posteriormente, o conflito fundamental da sociedade brasileira. Mas tal representação vai além do conflito central do filme e muito do universo conceitual e ideológico que o filme representa transparece nos detalhes.
O início do filme nos indica que a ação se desdobra em um futuro não muito distante do Brasil. Acompanhamos dois personagens (Teresa e Erivaldo) que nos revelam alguns dados fundamentais para o desenvolvimento posterior da narrativa: a água que mantém viva as comunidades locais está represada e privatizada pela burguesia local, o que faz com que Erivaldo tenha de levar água diariamente para abastecer a cidadezinha de Bacurau. Em Bacurau propriamente vemos o enterro de Carmelita, a matriarca da comunidade, morta aos 94 anos. Toda a comunidade se encontra reunida para se despedirem dessa figura central na vida de Bacurau. Em um discurso laudatório improvisada seu filho, Plínio, nos informa que Carmelita teve muitos e muitos filhos, de pedreiros à advogados e médicos, putas e michês, que moram em todos os cantos do Brasil e em diversos países no exterior. A procissão que se segue mostra a unidade inquebrantável da comunidade, e, em um momento onírico, Teresa vê água jorrando do caixão de Carmelita. Logo na sequência, Teresa anuncia para sua irmã: “hoje eu vi dois mortos”.
Nesse momento já se delineia um elemento fundamental do mundo ideo-conceitual de Bacurau. A morte de Carmelita representa o fim de uma geração, mais propriamente, o fim de uma era naquela comunidade, um prenúncio da crise que se seguirá. Não apenas isso mas a visão de Teresa da água que sai do caixão nos revela outro elemento importante: a presença de Carmelita era, ainda que de forma simbólica, uma forma de estabilidade e conciliar o conflito revelado anteriormente: a falta de água. A alegoria é a forma artística que baliza a figuração estética do filme como um todo – mas sobre a questão da forma alegórica e seu significado histórico no contexto da crise brasileira presente falaremos mais adiante – e a alegoria aqui é mais sutil do que aquela que se encontra no centro do conflito. A morte de Carmelita representa, enquanto transição de uma era, o fim dos governos petistas e da harmonia relativa que eles comportavam: a harmonia entre os tantos filhos de Carmelita e suas diferentes ocupações e destinos, que perseveravam e prosperavam apesar das dificuldades. A definição da comunidade tal como ela é figurada é a da harmonia interna. De fato, a própria existência da comunidade não é de nenhum modo isenta de conflitos, mas estes são todos apresentados como sendo essencialmente de ordem externa à comunidade e à sua vontade conjunta (seja a privatização da água, seja o prefeito vulgar e tacanho – ainda que seja revelado que ele mesmo era originalmente da comunidade, mas logo traiu aquela mesma harmonia). Tal harmonia é reforçada constantemente e de forma artisticamente hábil: seja na familiaridade jocosa com que os personagens tratam uns aos outros, na formidável capacidade de organização, na partilha democrática dos mantimentos dados de modo cínico pelo prefeito Tony Jr. etc.
O intento de Bacurau no seu primeiro ato não é nenhum outro que o de capturar o espírito e a realidade dos anos lulistas que antecedem a crise. A morte de Carmelita representa, essencialmente, o fim do período lulista no Brasil em geral, mas no Nordeste em particular. A unidade harmônica da comunidade, cujo centro organizador era Carmelita, não é mais do que a imagem idealizada dos anos lulistas; os filhos de Carmelita, agora espalhados pelo Brasil e pelo mundo são alegorias para o êxodo social que se deu no Nordeste durante tal período, o florescimento do nordeste propriamente. O primeiro ato opera como um elogio cuidadosamente construído do legado lulista para o Brasil e para o Nordeste. Mas o conteúdo que transparece é essencialmente de outra ordem. Bacurau nos revela de fato a ilusão alimentada pelas parcelas hegemônicas da esquerda brasileira e nos presenteia com uma vívida imagem dos limites absolutos da consciência ingênua que informa o liberalismo de esquerda: a construção do mito de uma harmonia entre a sociedade em todos os seus níveis, uma compreensão cativa e simplória da realidade brasileira, incapaz de apreender as reais articulações internas que engendraram a crise que vivemos; incompreensão esta que encontrará o seu ápice no na revelação e no desdobramento do conflito central.
Como este é bem conhecido o leitor nos perdoará a brevidade. Após o primeiro ato, é revelado que a cidade de Bacurau está na mira de um grupo de estrangeiros (liderados por um alemão radicado nos Estados Unidos – o fascismo migrou, entendeu?) que com o apoio serviçal do prefeito Tony Jr. e de uma dupla de sulistas que não consideram os habitantes da cidade de Bacurau como “sua gente” ou “seus iguais”, planejam caçar os habitantes da cidade por esporte e pura diversão e apagar a cidade do mapa, para que o massacre passe simplesmente despercebido. Aqui surge o outro elemento da alegoria que o enredo de Bacurau se propõe a representar: o “inimigo” é concebido como uma força essencialmente externa e alheia à realidade dos moradores de Bacurau, a crise que se desdobra é pintada como um raio em um céu azul, como o resultado puro da malevolência dessa força alheia e distante, uma força literalmente alienígena (pense-se no drone em formato de disco voador).
Longe de se remeter a Glauber Rocha – como sugerem alguns incautos – Bacurau busca sua referência em filmes e temas particularmente estrangeiros para dar corpo à imagem que deseja construir. O conflito central não é mais do que uma readaptação de um motivo recorrente no cinema norte-americano desde 1932, quando aparece a adaptação em longa-metragem do livro The Most Dangerous Game. Tal motivo, trocando em miúdos, é o de um protagonista ou um grupo de personagens com os quais o espectador se identifica (em geral pela filiação de classe) sendo caçados por esporte pela caricatura farsesca da classe dominante. Tão recorrente é o motivo no cinema norte-americano que somente esse ano não apenas um mais dois filmes com esse mesmíssimo tema apareceram nos Estados Unidos: The Hunt de Craig Zobel (cuja estreia foi adiada após o presidente Donald Trump ter um chilique no twitter) e Ready of Not de Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett.
Logo se vê a fragilidade da compreensão da realidade brasileira exprimida pelo filme, que se pauta na vulgar “narrativa do golpe”, no conto de fadas segundo o qual a sociedade brasileira estava essencialmente no rumo correto (à despeito de alguns problemas aqui e acolá) até o fatídico golpe – entendido novamente como o resultado de maquinações de estrangeiros, sem qualquer enraizamento na sociedade brasileira. Sabemos, no entanto, que a realidade é mais complicada. Os realizadores ignoram ou simplesmente desconhecem o caráter endógeno da crise brasileira, lastreado no modo de acumulação capitalista dependente, cuja fase rentística – a do plano real – foi conduzida diligentemente do mesmo modo servil por todos os governos desde Fernando Henrique Cardoso; ignoram o apodrecimento interno do regime político cujas primeiras fortes contrações foram as manifestações de Junho de 2013; ignoram o esgotamento absoluto da política conciliatória do petismo que ruiu sob o peso das contradições do sistema econômico que os governos petistas comandaram e levou à guerra de classes; ignoram o fracasso rotundo da tentativa de “inclusão” social pela via do consumo e do endividamento que a longo prazo produziu uma enorme massa de trabalhadores super-explorados, sem qualquer perspectiva de futuro e cujos financiamentos (de casa, plano de saúde, universidade) “inclusivos” agora se enrolam em seu pescoço como uma sucuri – os mesmos trabalhadores que em massa rejeitaram o PT nas urnas e votaram contra o sistema petucano e em Bolsonaro, não meramente por conta de fake news ou qualquer ingerência externa, mas sim com a expectativa de uma mudança radical no rumo das coisas. Ignoram, sobretudo, a necessidade do fracasso dessa política, necessidade enraizada no modo de acumulação dependente e na ampla dominação, da agronegócio e do setor financeiro e rentista que dominam com base nos títulos da dívida pública (que cresceu de modo desmesurado nos governos petistas). Por fim, ignoram a profunda continuidade no que diz respeito à política econômica entre todos os governos desde 1994, quer dizer, ignoram o aprofundamento da dependência como a razão fundamental da crise social e da guerra de classes que toma conta do Brasil hoje.
O filme tem seu clímax no momento em que a população de Bacurau se organiza e com a herança simbólica e as armas literais do cangaço, tomadas do museu histórico de Bacurau (que acena para a importância da cultura e da história – história essa que jamais é explorada em qualquer detalhe), massacram os inimigos estrangeiros e se vingam do prefeito corrupto. É uma imagem catártica de exaltação da coragem e bravura demonstrada pela população de Bacurau em sua resistência contra o inimigo externo. É impossível não encontrar uma certa ironia quando a bravura e iracúndia retratada no filme é comparada com a completa ausência de qualquer coragem na análise dos problemas do Brasil promovida por Bacurau e na ainda mais patética militância e práxis política oferecida pelos arautos da “resistência”, incapazes de pensar em qualquer alternativa concreta para o Brasil senão um impossível retorno à um passado mistificado, pela via do mais vil cretinismo político – sem compreender que justamente no seio de tal passado o presente foi, pouco a pouco, engendrado.
Essa é a imagem da realidade e do conflito brasileiro apresentada por Bacurau, um reflexo pintado em belas cores de todas as ilusões da esquerda liberal. Mas devemos nos indagar sobre outras questões ainda, mais especificamente, sobre a forma sob o qual essa imagem da realidade Brasil é apresentada. Tal forma é a alegoria e devemos nos debruçar sobre esse elemento mais detidamente para então entender as razões específicas de tal forma.
2. Alegoria e Mito
Bacurau é uma alegoria política, isso todos sabem, de um jeito ou de outro. A palavra alegoria hoje em dia se encontra em disseminada em todos os lugares, “alegorias disso”, “alegorias daquilo” etc. Mas o que isso significa realmente? Qual o sentido do uso da alegorização enquanto modo específico de dação de de forma artística?
A alegoria enquanto princípio de conformação estética é sempre revelador de um ponto de vista histórico, pois expressa uma certa tendência que tende a se repetir ao longo do desenvolvimento social, seu emprego é – como não poderia ser diferente – determinado por certas condições sociais e históricas específicas.
É verdade que a conformação alegórica é tão antiga quanto a arte propriamente e foi por longos períodos históricos a principal forma de conformação estética (durante todo o período bizantino e na alta idade média, assim como teve prevalência no Barroco e no Rococó), mas a sua formulação enquanto princípio geral teve seu momento mais alto durante o final do século XVIII e início do século XIX, com as debates estéticos entre a filosofia clássica alemã (em especial Goethe e Hegel) e os primeiros românticos (encabeçados por Friedrich Schlegel, mas com destaque também para Novalis e Schelling). Tais debates não tem absolutamente nada de casual ou acadêmico, mas antes giram em torno da questão de qual seria o método adequado com o qual a arte deveria enfrentar a crise do seu tempo: a crise social e histórica desencadeada pela Revolução Francesa, com avanço do modo de produção capitalista e a luta entre a burguesia revolucionária e a aristocracia feudal. O modo específico de responder à essa crise no nível político e intelectual condicionava por sua vez a formulação estética à respeito dessa questão. Não podemos nem de forma resumida entrar nos detalhes desse debate (de absoluta importância para todos que se pretendem um pensamento sério sobre a função social da arte), nos basta apenas apontar que o centro deste girava em torno da oposição entre dois princípios de conformação artística: o simbólico (defendido pelo classicismo e particularmente por Goethe) e o alegórico (defendido pelos românticos) – voltaremos novamente à essa oposição.
O princípio fundamental da alegoria é a transcendência do conteúdo em relação à forma. A alegoria sempre assume a aparência de uma dualidade incontornável entre conteúdo e forma, na medida em que o conteúdo jamais se deixa transparecer exclusivamente pela figuração artística e esta deve necessariamente apontar para um conteúdo que se coloca como um além daquilo efetivamente figurado, deve sempre buscar indicar um conteúdo que a transcenda. A consequência necessária de tal posicionamento estético é um relativo empobrecimento da própria figuração, já que sua função é em última instância o de indicar um conteúdo que não se deixa de modo algum expressar pela própria figuração, pelos objetos, personagens, eventos e ações que se desdobram, de modo que, ignorado esse conteúdo, a representação deva assumir um caráter relativamente casual, desprovido de profundidade e organicidade interna, incapaz de conformar-se em um mundo autônomo e vivo em si mesmo, fazendo com que aquilo que é representado deve permanecer meramente como um índice de um conteúdo que lhe é essencialmente exterior. O jovem Schlegel assim descreve essa característica fundamental da alegoria:
“Todos os jogos sagrados da arte são apenas simulacros distantes do jogo infinito do mundo, da eterna obra de arte que se forma a si mesma” (Conversas sobre a Poesia, p. 58)
Portanto, o interesse fundamental de uma obra alegórica é sempre esse conteúdo transcendente ao qual a figuração deve remeter. Goethe descreve o procedimento alegórico nos seguintes termos:
“as obras alegóricas […] destroem igualmente o interesse na representação mesma e impelem, por assim dizer, o espírito de volta a si mesmo e retiram de seu olhar o que é de fato representado. O alegórico se distingue do simbólico, no sentido de que este designa diretamente, aquele indiretamente.” (Escritos sobre Arte, p. 85-86)
Entende-se, assim, que o modo de conformação alegórico raramente se presta à apreensão artística da realidade, ao tipo de realismo que consiste em desvelar as estruturas e tendências reais do mundo humano, já que tal apreensão se realiza a partir da articulação interna da representação, quer dizer, através da composição artística, da figuração de personagens, eventos, conflitos e colisões, tragédias e vitórias, que expressam em si mesmos os movimentos e determinações essenciais da realidade. Segundo Goethe, tal modo de conformação é o simbólico:
“Os objetos representados dessa maneira parecem existir meramente por si mesmos e são, todavia, profundamente significativos, e isso devido ao ideal, que sempre implica uma universalidade. Se o simbólico, além da representação, ainda testemunha algo, isso sempre ocorrerá de modo indireto.” (Escritos sobre Arte, p. 85)
Essa riqueza de conteúdo, repousando sobre si mesma, capaz de capturar de modo evocador as dimensões essenciais da realidade para além da aparência imediata dos fenômenos, que se expressa e se deixa apreender pela própria composição, é em princípio impossível na conformação alegórica, que submete a composição e a figuração a uma dependência em relação a um além, ao conteúdo transcendente cujo conhecimento prévio é exigido e para o qual a composição atua como um índice. De tal modo, incapaz de apreender a dimensão essencial da realidade, das articulações internas e causas, tendências e movimentos que circunscrevem os fenômenos, a alegoria deve ater-se aferradamente à superfície da realidade, a qual deve capturar exclusivamente sob a forma de um indicativo de um além. Esse movimento de capturar aquela superfície, aquela singularidade e imediatamente torná-la um signo de um conteúdo que a transcende tem por consequência uma fetichização dessa mesma singularidade, sua eternização enquanto indicador de um outro conteúdo. Desprovida da concretude e da auto-suficiência de um mundo artístico conformado de modo simbólico e realista, em cujos conteúdos – enquanto expressões e tentativas conscientes de apreensão da realidade – repousam sobre si próprios e sobre sua própria articulação interna, a alegoria tende necessariamente para a abstração, para uma forma de ordem conceitual.
Isso não quer dizer, evidentemente, que a alegoria não se presta de nenhum modo à conformação realista na arte. Em muitas obras a alegoria é utilizada como técnica para apreender determinações da realidade. Pensemos, por exemplo, nas alegorias de algumas passagens do Fausto de Goethe, mas cuja utilização busca expressa o caráter de “interregno” do mundo de Fausto, da nova realidade humana que surge das entranhas do feudalismo, na qual as figuras fantasmagóricas da obra representam tanto uma realidade que aos poucos deixa de existir quanto apontam para uma nova realidade que ainda não se impôs, a alegoria indica nesse caso o elemento de “não mais” e “ainda não” que dão o tom geral da obra. Outros exemplos a se aduzirem são as obras de Brecht, na qual a alegoria é utilizada como instrumento de desmistificação da aparência superficial da realidade, ou mesmo nos filmes de Glauber Rocha (que no essencial, são de conformação simbólica – mas esse não o espaço para adentrar nessa discussão, da falsificação acadêmica da obra de Glauber) no qual a alegoria se presta principalmente para expor o elemento religioso retratado em seus filmes (especialmente em Deus e o Diabo na Terra do Sol).
No entanto, enquanto modo principal de conformação artística, a alegoria se apresenta conscientemente como uma renúncia de uma tentativa ampla e consciente de apreender artisticamente a realidade objetiva do mundo humano. Deste dado já começamos a entender as razões que impeliram os realizadores de Bacurau à adotar a alegoria como modo de conformação artístico de sua obra. Mas há ainda outros elementos importantes a serem detalhados, o que nos faz retornar aos nossos amigos alemães.
Trocando em miúdos, a oposição fundamental entre, de um lado, Goethe e a conformação simbólica, do outro, Schlegel e a alegoria se dá, como dissemos, a respeito do modo como a arte deve responder à crise que assolava a Europa. Goethe reconhecia a necessidade daquela crise, engendrada pelo desenvolvimento do capitalismo, pela ascensão da burguesia e pelo desencadeamento da Revolução Francesa. Goethe esses eventos como momentos no progresso geral da humanidade (o que por sua vez nunca o fizeram ocultar o caráter contraditório e os elementos aviltantes desse processo) e sua posição era de que a arte deveria se aprofundar na realidade de tal desenvolvimento, para compreender efetivamente esse momento histórico, captar suas determinações fundamentais expressando o sentido humano desse processo, representado os destinos humanos que emergiam dessa crise. Schlegel, por sua vez, acreditava que a crise de seu tempo se dava em função da perda da mitologia como elemento central e a aglutinador da cultura humana (uma obvia reação contra o caráter “ateu” e prosaico da realidade capitalista que se anunciava) e que a única solução seria a construção de uma nova mitologia através da alegoria – que aqui não se refere exclusivamente à arte, mas ao conjunto das atividades e objetivações humanas, inclusive a linguagem – de tal modo que Schlegel de fato propõe a dissolução completa da realidade objetiva em nome da construção alegórica e da criação de mitos. Entende-se então que em Schlegel se articula uma reação contra a realidade objetiva de seu tempo, contra o próprio desenvolvimento histórico enquanto tal e a alegoria se apresenta como um refúgio de tal realidade, que na sua concepção só pode ser confrontada através da articulação de novos mitos.
Os realizadores de Bacurau encontram-se numa posição análoga a do romântico. Bacurau exprime a completa incapacidade da parte de seus realizadores em apreender o movimento real das contradições internas do capitalismo dependente, do modelo específico de acumulação na periferia do capitalismo que levou o Brasil à crise que presenciamos hoje e suas reverberações na cultura e nas formas ideológicas, nos modos de vida e de auto-compreensão do povo brasileiro. Há, então, em Bacurau uma explícita renúncia do intento de compreender a realidade brasileira como ela é de forma aprofundada e livre de preconceitos, de buscar as estruturas e forças sociais essenciais que produzem o fenômeno da guerra de classes no seio da nação. A alternativa é fugir dessa realidade para o porto-seguro da alegoria, da abstração e da construção de mitos. Em Bacurau a construção mitológica assume todos os acentos de uma visão religiosa, delineiam-se os mitos de um passado dourado de plena harmonia interna, de unidade de interesses e ausência de conflitos no interior da comunidade; de um inimigo puramente externo e alheio à comunidade, movido única e exclusivamente por um desejo assassino, carente de qualquer outra determinação; e, finalmente, o mito de uma herança de um cangaço, descolado de seu ser-propriamente-assim, do solo histórico social que o engendrou, para se tornar uma alegoria vazia de uma “eterna” resistência (ignorando as origens do cangaço e do banditismo social como uma reação às contradições internas e históricas de um país, como produto da totalidade do desenvolvimento da nação). Em Bacurau a complexidade da realidade brasileira é degradada ao nível de uma abstração pueril, que se sustenta unicamente em seu apelo emocional, em seu acenar para a realidade da crise brasileira – a qual o filme, longe de buscar esclarecer e compreender, se entrega deliberadamente à mais tacanha mistificação e à distorção completa da realidade para construir os mitos que ainda mantém respirando aquela parcela hegemônica da esquerda liberal – o filme atua como um afago na consciência cativa da esquerda liberal, um elogio do grande valor de sua “luta” e “resistência”, cuja realidade é a de crescentes derrotas acachapantes.
Dissemos anteriormente que a dualidade entre forma e conteúdo na alegoria imprime um caráter casual à representação artística. Em Bacurau isso não poderia ser nenhum modo diferente. As motivações das personagens, quando simplesmente inexistentes, são simplesmente espúrias e caricaturais. A própria montagem do filme e as escolhas estéticas sofrem do mesmo caráter casual e a obra como um todo é incapaz de conformar uma linguagem própria, de elaborar uma forma adequada para um conteúdo específico. As transições de wipe e crossfade e dissolve aparecem como carentes de qualquer outra consequência que o puro floreio estético arbitrário, típico de filmes de TCC no qual o estudante tenta enfiar todas as referências visuais possíveis para seu próprio deleite. A trilha sonora e as sequências musicais carecem de impacto – uma das sequências mais reveladoras de tal caráter disforme do filme é uma na qual os personagens jogam capoeira acompanhados de uma trilha diegética do som de berimbaus e canto é subitamente interrompida pela faixa eletrônica “Night” de John Carpenter, o resultado da sequência é menos o de uma acentuação da tensão e mais uma indiferença monótona e distanciamento (e, no máximo, um leve sentimento de auto-satisfação para os cinéfilos que reconhecem a faixa).
O resultado é um filme amorfo, sem ritmo ou unidade formal e que mesmo em seu clímax não consegue desencadear qualquer impacto por si mesmo ou atingir uma verdadeira catarse no sentido da culminação das contradições que colocam o espectador em íntimo contato com os problemas da realidade objetiva, que conecta o indivíduo receptor com o destino dos personagens representados e, consequentemente, com o destino da nação como um todo; em Bacurau a catarse é apenas pontuada pela extrema violência contra a caricatura dos “opressores”, cujo resultado é um delírio de auto-satisfação momentânea logo seguido pelo marasmo da completa indiferença. A incapacidade de conformar um mundo autônomo e pleno de significado, a ausência de um conteúdo organicamente vinculado com os destinos humanos representados, implica a impossibilidade de configurar uma forma adequada que traduza e expresse esse conteúdo. Por isso Bacurau tem que lançar mão de técnicas diversas, copiadas e coladas de outros filmes, transformando-o em uma colcha de retalhos de referências que jamais podem conformar num todo orgânico e dinâmico (diferente, por exemplo, dos filmes de Glauber, no qual os elementos tomados de outros filmes e cineastas coagulavam em uma identidade formal absolutamente original e adequada para expressar o conteúdo dos filmes). Essa carência de forma do filme é ainda mais chocante quando comparado com a relativa perfeição formal dos filmes anteriores de Kléber, dos quais falaremos à seguir.
Já falamos do conteúdo social que o enredo do filme expressa e discutimos o caráter alegórico do filme. Resta entender o efetivamente o por quê de Bacurau, a necessidade histórica que condicionou sua realização, as razões de sua existência e significado.
3. A elegia da esquerda liberal
Kléber Mendonça Filho é um grande artista e um grande cineasta, disso não pode haver qualquer dúvida. Seus filmes anteriores e em especial seu longa de estréia O Som ao Redor possuem uma qualidade mesmo profética, tamanha sua capacidade de capturar o sentido geral da sociedade brasileira, o movimento imanente dos conflitos e contradições escondidos sob a superfície de uma normalidade fictícia, de uma conciliação ilusória e artificial. O Som ao Redor trata de eventos que se desenrolam numa mesma rua de classe média na zona sul de Recife, cuja maioria das propriedades – assim como a posse original da terra – pertencem a uma mesma família – que o filme indica ser uma família centenária – e em especial ao patriarca desta, Francisco (que também é dono de outras propriedades e um “engenho” onde passa a maior parte de seu tempo). Com a chegada de uma milícia oferecendo fazer a segurança na rua, os conflitos e contradições escondidos sob a aparente normalidade começam a subir à tona, como as primeiras bolhas numa panela fervendo. Vemos nos pequenos momentos da vida cotidiana, num café da manhã casual, numa reunião de condomínio, numa discussão entre parentes, o desconforto crescente da convivência entre personagens de classes e interesses antagônicos, acentuado pela presença da milícia, e que escondem uma profunda tensão social entre a classe trabalhadora e as classes proprietárias, com a classe média no centro desse conflito. Talvez o elemento mais instigante do filme seja uma clara compreensão da historicidade imanente aos conflitos que o filme representa. Não se trata, aqui, meramente de um conflito de “perspectivas” ou “caráter”, uma “política de afetos”, mas sim de contradições profundamente vinculadas, enraizadas, na próprio solo histórico do Brasil em geral e na de Pernambuco em particular: na propriedade da terra, no poder político e social que essa propriedade atribui e na descendência desse poder pelas gerações. Talvez uma das mensagens centrais do filme possa ser com a espirituosa expressão de Shakespeare: “os pecados dos pais serão herdados pelos filhos”. Nesse sentido uma das cenas mais interessantes se desenrola perto do final, na qual a antiga empregada doméstica que trabalha com a família de João (neto do proprietário Francisco) há muitas décadas, é substituída pela própria filha, que prontamente recebe as instruções de como deve se portar daqui em diante. Mas talvez a cena mais impactante do filme se dá no momento em que João e a namorada, Sofia, vão visitar o sr. Francisco em seu “engenho”, que ainda mantém elementos arquitetônicos do seu passado colonial, e no momento em que neto e avô banham-se em uma cachoeira da propriedade, por um breve instante a água torna-se vermelha com o sangue das gerações sacrificadas e exploradas na construção daquela riqueza e daquele poder, como o fluxo das lutas e da violência que desemboca nas águas do presente. O antagonismo incontornável, surgido das entranhas do próprio desenvolvimento social do país incorpora-se nos destinos pessoais dos personagens e os eleva ao nível de símbolos do próprio destino da nação. Na base de um conteúdo articulado com tamanho cuidado e atenção surge uma forma narrativa que beira à perfeição: o ritmo da montagem e o enredo articulam-se como um filme de terror, pontuado por cortes rápidos para eventos aparentemente insignificantes mas que compõe o universo do cotidiano acentuam a sensação de inquietação, no qual apenas gradualmente o quadro geral vai se revelando, e cujo suspense crescente reflete o aprofundamento das tensões e contradições sociais que pouco à pouco chegam ao ponto de não poderem mais ser contidas e irrompem à superfície com uma violência simbólica que as palavras não podem fazer justiça (ninguém esquecerá os últimos minutos do filme, no qual o som de tiros confunde-se com o som de bombinhas e refletem de modo magistral o tema central do filme: a contradição e o conflito irreconciliável que formam o sustentáculo da vida cotidiana). Olhando em retrospecto, o filme parece ainda melhor por seu pelo profundo realismo que consegue capturar a tendência geral de toda uma época, pelo seu poder de antecipação do mundo que vivemos hoje, na qual o antagonismo que até então ainda estava escondido sob o véu da conciliação explodiu numa verdadeira guerra de classes que domina todos os aspectos da vida nacional.
Do mesmo modo – ainda que sem o mesmo frescor e brilhantismo – Aquarius tocou nesses conflitos fundamentais, mas tomando a clara perspectiva de Clara, a última moradora do antigo edifício Aquarius, situado numa área valorizada de Recife e que se vê assediada pelos representantes de uma empreiteira que pretende demolir o edifico para construir um maior e mais moderno. Para além das falsificações que pretendem associar a personagem de Clara à presidente Dilma Roussef, o quê de fato o filme retrata é o avanço desenfreado do capitalismo que agora passa por cima das classes médias ao mesmo tempo em que revela que o passado que Clara luta por manter é um passado construído sob a exploração da classe trabalhadora, sob o mesmo antagonismo tão bem delineado em O Som ao Redor – ainda que em outra chave. Justamente esse elemento de uma historicidade concreta, que toma o passado como a pré-história do presente, que entende a história não como eventos aleatórios situados no passado, como uma coleção de curiosidades que podem ser interpretados à vontade, mas determinante do mundo e a dimensão vital no qual os personagens devem agir, se encontra completamente ausente em Bacurau, degradado a um mero fato – a herança do cangaço – que serve como inspiração para a “resistência” contra os “fascistas”.
Ambos os primeiros filmes de Kléber tem como ponto focal o desnudamento das contradições imanentes da sociedade brasileira, contradições estas que não se referem à chegada de qualquer inimigo externo, mas tem suas raízes profundas na história do país, na dimensão material da vida humana, que surgem do interior do desenvolvimento social como um todo. Como então, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (que trabalhou nos dois longas anteriores de Kléber) caíram ao nível da vazia alegoria abstrata de Bacurau? Essa mudança não deve ser entendida como um puro arbítrio casual, como um deslize meramente de ordem pessoal e individual, mas sim como refletindo um processo ideológico de grande amplitude que acomete grandes parcelas da intelectualidade brasileira.
Se até 2016 um grande número de intelectuais e artistas ainda conseguiam capturar determinações importantes ou, em alguns casos, um quadro geral e amplo da realidade nacional, a partir do acirramento da luta de classes que começa com o estelionato eleitoral de Dilma Roussef e sua ampla aplicação de medidas de austeridade contra o povo, que resultam eventualmente na sua deposição, na ascenção de Michel Temer ao cargo de presidente da república, na intensificação – que segue até os dias de hoje – do ataque sistemático à classe trabalhadora, iniciado por Dilma, e no recrudescimento social como um todo, em determinação reflexiva com o aprofundamento da dependência (o camarada Nildo Ouriques está há tempos alertando para a necessidade da burguesia de instaurar um novo tipo de ordem política em conformidade com as exigências da acumulação de capital na periferia), tal nível de compreensão se tornou impossível. O acirramento da luta de classes que nos dias atuais se transmutou numa verdadeira guerra coloca na ordem do dia a necessidade da superação da dependência e da superexploração da força de trabalho, quer dizer, implica a atualidade e a necessidade da revolução brasileira. Essa necessidade não se configura num postulado moral, num imperativo categórico a priori, mas sim num imperativo material decorrente da análise da economia política específica do Brasil, implica que o desenvolvimento da acumulação dependente chegou à um patamar inédito e irreversível e que medidas drásticas devem ser tomadas em ambos os lados do espectro político. O reconhecimento desse momento decisivo na vida nacional exige a ruptura com todas as ilusões quanto a manutenção da ordem anterior, exige a superação da consciência ingênua que ainda alimenta esperanças na possibilidade de uma conciliação entre as classes, ou mesmo na concepção de que reformas de ordem políticas – como uma ampliação da democracia direta – sem as reformas de ordem social correspondentes, seriam suficientes para cauterizar as veias abertas da realidade nacional. O não reconhecimento dessa necessidade implica, de forma geral, na impossibilidade de compreender a realidade dos processos sociais-materiais que desencadearam a atual crise e a mantém nos níveis que presenciamos. Tal impossibilidade de compreensão se caracteriza como um processo de decadência ideológica (tal como apontado por Marx e formulado de modo definitivo por Lukács).
Assim, impossibilitados de uma apreensão concreta da realidade material, das leis e tendências imanentes do modo de produção capitalista-dependente, a intelectualidade liberal deve ser remetida à esfera dos fenômenos e das formas ideológicas, descoladas do seu enraizamento social e do substrato material que é sua condição de possibilidade. Então vemos, por exemplo, Vladimir Safatle que em 2013 conseguia ver com clareza a falsa dicotomia entre PT e PSDB e a unidade essencial em seus projetos de governo, hoje afirmar que a raiz da crise se encontra num suposto esgotamento de um “horizonte histórico” entendido em termos exclusivamente políticos e na “trama” das elites para impedir a emergência de “novos atores” no campo da política, quer dizer, Safatle crê encontrar a raiz do problema meramente numa mera antipatia das classes dominantes com relação à “inclusão” das classes trabalhadoras, numa política determinada exclusivamente pelos afetos. Hoje, Safatle proclama uma “ruptura”, o fim de qualquer tentativa de “diálogo”, mas jamais consegue enunciar com o quê se deve romper, com quem deve-se encerrar o diálogo. Safatle, embora honesto em seu sentimento, jamais consegue apontar para onde a raiva e a aparente radicalidade devem se direcionar. Termina, assim, como um leão sem dentes ou garras, um profeta desarmado.
Paulo Arantes, por sua vez, que era capaz de rejeitar plenamente a narrativa do “golpe” e por algum tempo apontar a continuidade entre Dilma e Temer, criticando a defesa cega do petismo como a construção de um “horizonte de expectativas decrescentes”, encontra-se hoje rejeitando rotundamente uma explicação materialista da crise (a qual ele – como um bom liberal – rotula de “economicismo”) se vê relegado à importar teorias da academia européia (da França, mais especificamente), buscando explicar os dilemas nacionais com base na teoria do “reconhecimento”, vendo na emergência da direita a expressão de uma classe média que não se sente “reconhecida” pelas elites e cuja revolta acarreta em uma “implosão da ordem social”. Ausente a compreensão material das questões em jogo, Arantes chega à conclusão lógica de tal análise: “perdemos”, ele diz resolutamente. É certo que tal conclusão teórica já estava contida nas premissas e princípios que norteiam a análise. Não obstante, a fraqueza desses princípios ainda não era tão evidente como se tornou hoje e, à despeito destas fraquezas, durante um certo período de “estabilidade relativa”, tais princípios e premissas ainda não bloqueavam completamente a captura e compreensão de certos elos importantes que organizam a sociedade brasileira. Não mais. Esse é o beco sem saída ao qual leva um tipo de análise idealista e culturalista, que não tem a atualidade da revolução brasileira como núcleo organizador da compreensão da realidade brasileira e da práxis política.
Em geral o campo artístico, por suas particularidades intrínsecas, possui uma maior espaço de manobra do que as formulações de ordem conceitual e filosófica, conseguindo com maior facilidade superar as limitações das perspectivas particulares de seus autores – basta se pensar no clássico marxista da “vitória do realismo” em autores como Balzac, que em muito suplanta a sua perspectiva monarquista e vai na contra-mão de seus desejos e esperanças mais íntimas, ao retratar de modo autêntico e realista, a sociedade francesa da Restauração ou Tolstói, em cujas obras Lenin via o “espelho da revolução” à despeito da oposição resoluta de Tolstói à revolução proletária. O mesmo pode ser dito de Kléber Mendonça Filho, ao menos em seus dois primeiros longas. É sabido que em sua vida pessoal Kléber jamais abandonou as esperanças no projeto petista, jamais rompeu com a consciência ingênua da possibilidade permanente da conciliação de classes. No entanto, ainda no período de uma “estabilização relativa” da sociedade brasileira durante o lulismo em seu auge, sua honestidade e talento artístico o permitiram se elevar acima dos limites de sua estreita perspectiva pessoal e retratar de modo direto e sem preconceitos a realidade brasileira, capturando os elos essenciais dessa realidade e incorporando-os em destinos humanos retratados em seus filmes, que serão por muito tempo um farol de auto-compreensão humana da nossa própria realidade nacional. Entretanto, para parafrasear Marx, o destino resultou no naufrágio no gênio cinematográfico nas águas turbulentas “das lutas históricas que se tornaram agudas”. Turvada sua visão crítica, incapaz de capturar a realidade, Kléber teve de se refugiar na abstração e na alegoria que conformam Bacurau. O caso de Kléber não deve ser visto como exceção, mas como regra, como um caso típico de um processo geral da decadência ideológica da esquerda liberal. A título de exemplo, mencionemos apenas Marcelo Pedroso, cujo filme Brasil S/A (precedido pelo excepcional curta-metragem Em Trânsito) é uma condenação ao mesmo tempo ampla e precisa, do modelo do desenvolvimento dependente capitaneado pelos governos petistas e do seu fracasso iminente – numa das sequências mais poderosas Brasil S/A ainda consegue mostrar de um modo sutil e emocionante o modo como a falta de perspectivas reais implicadas por esse modelo leva a população brasileira para os braços da religião organizada (no caso da Igreja Evangélica). O mesmo Marcelo Pedroso, em uma exibição do filme em São Paulo, 2015, basicamente renunciou publicamente a mensagem geral do filme e proclamou a importância da unidade para impedir o “golpe” em curso, desde então sua carreira como cineasta desde então não produziu nenhum fruto, seu último filme, Por Trás da Linha de Escudos – uma tentativa de “humanizar” a polícia militar de Pernambuco – teve uma recepção amplamente negativa e até hoje não circulou fora de festivais.
À despeito de todo o seu verniz de radicalidade e agressividade, Bacurau revela muito antes a profunda covardia e impotência da esquerda liberal. Num contexto de violento acirramento da luta de classes e na iminência de um recrudescimento político nos moldes de um estado policial como o da Colombia, Bacurau, incapaz de conformar artisticamente a realidade da crise brasileira e de propor uma solução que supere definitivamente essa crise, se reduz à pregar uma ruptura e a resistência violenta contra um inimigo imaginário e abstrato e propondo como solução um mero retorno às condições de normalidade e harmonia de um passado idealizado – as mesmíssima aparência de normalidade e harmonia que o próprio Kléber desmascarou em seus filmes anteriores! É ainda mais patético quando vemos grandes parcelas da esquerda baterem no peito inspirados por Bacurau para no momento seguinte depositarem suas esperanças na mais tacanha política de alianças que tanto caracterizou o cretinismo eleitoral do PT nos últimos 16 anos.
A poesia épica que Bacurau pretende ser, se traduz na realidade brasileira como uma triste elegia, uma canção fúnebre das ilusões espúrias de uma classe intelectual que perdeu o rumo e recolhem-se à esperança de um milagre divino que os encaminhe de volta para o paraíso perdido ou, em alguns casos, apenas esperem sentados o dia do apocalipse final. O que era para ser um grito de guerra soa apenas como um lamento, como um suspiro que detona a mais gritante impotência. As determinações tornam-se seu oposto, como diria o velho Hegel.
Se os artistas e arte têm (e devem ter) um papel nas lutas que se seguem, sua produção deve manter sua mirada firme na realidade objetiva, na tentativa de apreender as contradições do movimento real e conformá-los em destinos e conflitos humanos, que simbolizem e evoquem nossos dilemas e apontam para a saída necessária e não em alegorias vazias, que apenas mistificam e confundem. Que as palavras do jovem Marx sejam uma fonte de inspiração para os artistas nesse momento de acirramento da luta de classes, de guerra aberta contra o nosso povo que anseia por um novo radicalismo político e estético.
“Para que a humanidade consiga o perdão dos seus pecados, ela só precisa declará-los pelo que são.” (carta à Ruge, 1843)
Texto* de Francisco Cannalonga
Militante pela Revolução Brasileira
Graduado em Filosofia
*Os textos e artigos publicados pelos Militantes pela Revolução Brasileira não exprimem necessariamente opinião da Coordenação Nacional da Organização.
uma vez, o grande Érico Verissimo recebeu a visita de uma leitora de seus livros, a qual disse gostar muito, mas de que as histórias deveriam exprimir a realidade não como ela é, mas como deveria ser
“O intento de Bacurau no seu primeiro ato não é nenhum outro que o de capturar o espírito e a realidade dos anos lulistas que antecedem a crise. A morte de Carmelita representa, essencialmente, o fim do período lulista no Brasil em geral, mas no Nordeste em particular”
Meu deus, isso não pode ser sério.
Pensei o mesmo…não pode e não é. Fetiche sendo revelado. E todo o resto da “resenha” assim está contaminada…mas pensar é livre…ou o não pensar também. O grande problema é que uma parcela importante de quem não é nordestino é entender Bacurau.
Que inteligente colocar uma citação do texto entre aspas e rebater dizendo “isso não pode ser sério”. Se quiser rir, siga o link: https://www.youtube.com/watch?v=4Iesu-HBTTA
Mais um excelente texto.
Esse filme é uma ofensa a toda leva de conceitos cinematográficos que ele aplica a esmo sem nenhum olhar crítico. Parece que foi feito por dois adolescentes que, além de terem estudado cinema no youtube, estudaram política no twitter. É lastimável essa produção! portanto, têm grandes chances de chegar próxima e até ganhar o que desde o início era o objetivo: o Oscar. Um elogio a conciliação de classes é realmente de deixar qualquer um maluco.
Voce realmente assistiu o filme? O maior recado do filme é o apelo a auto organização do povo que busca inclusive romper com a conciliação através da violência revolucionária. Não faz sentido algum o que vc escreveu. Quem deve estar sob efeito de psicotrópicos é o autor deste delírio em forma de texto.
Violência revolucionária? Eles sequer tinham programa político algum, eram apolíticos, aceitavam a submissão aos políticos do coronelismo, aceitam a conciliação de classe, viviam sobre a distribuição da miséria, eram divididos em classes, onde mesmo havia a exploração sexual de mulheres, e homens homossexuais, e além disso, se deixavam levar pela política imposto de cima para baixo, aceitando o cerceamento até da água, coisa essencial à vida!!! Ou seja, só quando o inimigo externo vem e liquida de vez, dando assim aos gringos pelo menos uma maior honestidade, pois vinham para matar mesmo, ao contrário do que faziam os sulistas e mesmo os políticos locais, portanto o filme prega uma conciliação de classes para com o inimigo externo, como se de fato, ali fosse o paraíso, e o passado glorioso (bem romântico!) é o que os norteia à luta. O filme apela ao clichê barato, totalmente óbvio, sem contar que a extrema violência, às vezes intercalando com cenas de sexo, é tão apelativa, que sequer faz o efeito desejado, na verdade torna-se vergonhoso, pois quer ser polêmico, maduro, mas não deixa de ser algo como uma cópia patética do Tarantino, e diretor este que já acho bem ruim todos os filmes.
O filme é da Globo filmes, feito com um dos diretores do Porta dos Fundos, e com o Kléber tem um quê de autoral, mas não é nada que daqui a alguns anos seja lembrado, os tempos pediram este filme, como que para o deleite da esquerda, que coloca sua revanche no filme, e tem seu ápice quase sexual – como se pode constatar pela reação do público – quando os vilões são pegos, é como se sentissem compensados pela realidade não lhes dar esse direito – e dever – de poderem se sentirem realizados, e o inimigo não é de dentro deles mesmo, mas externo, o inferno são os outros…