A aceleração da crise é a característica mais saliente da política brasileira. O sistema político atual já não é mais funcional à classe dominante e, em consequência, a coesão burguesa que ampara o governo do protofascista Bolsonaro opera no parlamento, na manufaturação da opinião pública e em Washington para a constituição de modalidade de estado policial ainda não plenamente configurado.
A política econômica orientada pelo ultraliberalismo conduzido por Paulo Guedes – com completo apoio das frações burguesas – avança na mesma medida em que produz efeitos negativos para a maioria da população. A superexploração da força de trabalho é o objetivo estratégico já conquistado em larga medida, afinal, metade da população economicamente ativa – aproximadamente 50 milhões de brasileiros – recebe até R$ 500 por mês.
O assalto ao Estado é pleno e, nessa batida, logrará em curto espaço de tempo todos os objetivos estratégicos que perseguem: da independência do BC até a privatização completa da Petrobrás. Na esteira desse assalto ao Estado, os governadores executam ajustes cujo resultado não será outro senão a ampliação da obra ultraliberal como também um aperto maior na corda que reduz suas próprias ambições. A hegemonia é liberal e possui duas almas: uma na direita, outra no progressismo. Ambas caminham juntas em ritmos diferentes.
A degradação do serviço público não se produz ao azar. O assalto ao Estado também implica na transformação de serviços públicos em espaço de acumulação de capital. A venda de segurança privada caminha par e passo com a degradação da chamada “segurança pública”. Assim como generais e altos oficiais tiveram suculento aumento de seus salários embutidos na reforma da previdência, os governadores remuneram a fidelidade de coronéis e oficiais superiores com religiosa parcimônia e bondade, enquanto punem a tropa com salários de fome que, via de regra, obrigam parte importante de policiais à venda de sua força de trabalho em serviços de segurança de natureza privada – não necessariamente criminosa – para manter condições mínimas de vida.
No Brasil, ao longo dos últimos 20 anos, cresceu de maneira acelerada o número de empresas de segurança privada, grande parte delas comandadas por ex-majores, coronéis e mesmo agentes com longos anos de atividade na área. Segundo informação recente, o número de trabalhadores na “segurança privada” ultrapassa 500 mil, cifra superior ao número de militares da ativa nas três forças (Marinha, Exército e Aeronáutica)
Na mesma medida, ocorre de maneira acelerada a politização das “forças de segurança” e, principalmente, das Forças Armadas. Um curioso e infantil suposto republicano pretende “deixar as Forças Armadas fora do mundo da política”, como se tal bordão fosse realizável. Ora, forças armadas e policiais sem orientação política e ideológica somente existem na cabeça do liberais de esquerda e/ou de acadêmicos lunáticos. No mundo real, as Forças Armadas e as forças complementares (caso das polícias estaduais) estão cada dia mais atuantes no mundo da política. Até o mais neófito socialista deveria observar o número de oficiais – sargentos, cabos, coronéis e majores – que se elegem deputados indicando de maneira clara o grau avançado de politização da tropa e, especialmente, de seu atual comando. Nas últimas duas décadas, o progressismo dominante – ala esquerda do liberalismo – cativo de ilusões republicanas, nada fez para politizar os militares no sentido do nacionalismo revolucionário e de um novo radicalismo político que cada dia se revela mais necessário e urgente! O progressismo não o fez e nem poderia! Atuam como guardiões morais de uma república apodrecida até a medula como se fosse possível com seu “bom senso” restaurar as virtudes de uma ordem que não tem mais salvação alguma!
Em consequência, o progressismo tenta eludir a situação clamando em duas direções. A primeira, acusando qualquer revolta, rebelião ou protesto de policiais como expressão de mero instrumento da direita – militares protofascistas, militar-deputado inescrupuloso, milicianos, etc. – como se não fosse inevitável que nesse “vazio republicano” alimentado durante duas décadas pelo liberalismo de esquerda, a direita não estivesse avançando em todos os terrenos da disputa. Em segundo, reconhecendo a extração de classe de milhares de soldados e policiais que, na sua maioria, trabalham em condições terríveis para fugir da miséria sob um regime de superexploração a que estão, de fato, condenados dentro do atual sistema. No entanto, esse reconhecimento de extração doutrinária não oferece uma real alternativa à ordem dominante.
Há, no Brasil, estreita relação entre as sucessivas greves de policiais dos estados e a degradação salarial e material da polícia no país. Ademais, a despeito da orientação geral assumida pelo progressismo sobre a “defesa dos direitos humanos e da cidadania”, a verdade é que além de boas intenções e pequenos projetos, muito pouco foi feito para a elaboração de uma doutrina de transição para outra situação em que o papel de “força auxiliar” das PMs às Forças Armadas despareça para sempre.
No Ceará, parte dessas contradições apareceram de maneira mais ou menos claras. O fim da divisão burguesa entre política e crime é uma característica marcante de nossa situação que os políticos da ordem tentam ignorar como se fosse possível fazê-lo sem colher consequências cada dia mais agudas.
Zema, governador de Minas, representante do capital comercial e liberal, não vacilou. Minas é outro estado assaltado pelos tucanos e petistas, todos submetidos aos ditames do Plano Real que produziu um governo disposto a levar até o fundo e o fim um ajuste contra o povo mineiro. No entanto, poucos dias antes da crise cearense, Zema enviou à Assembleia Legislativa um projeto que prevê aumento de 41,74% nos salários dos policiais. Ora, num estado sem recursos para pagar o décimo terceiro e ainda parcelando a folha de pagamento dos funcionários públicos, um reajuste à PM nesse momento é revelador da situação política do país. Também prosperou entre os mineiros – como de resto em todo o país – o voto que elege deputados estaduais e federais do Partido Policial.
Portanto, não existe uma excepcionalidade cearense, pois a bomba está armada em todo o território nacional pronta para explodir ao calor das conveniências políticas mais ou menos turbinadas pelas imensas necessidades materiais da tropa. A maioria dos policiais – impedidos de sindicalização – não tem alternativa senão buscar o refúgio das associações de policiais para suas reivindicações elementares. Mas todos sabemos que essas associações estão sob controle de coronéis que durante longos anos frequentam salões dos políticos burgueses sempre dispostos a colher votos e acumular força na numerosa família militar. Noutros tempos, quando as ilusões desesnvolvimentistas ainda não estavam enterradas pelo capitalismo rentístico, essa curiosa combinação não tinha adquirido o caráter letal que agora revela na plenitude para espanto do liberalismo de esquerda. Mas estava tudo aqui, há anos! O progressismo, julgando-se eterno, não praticou senão uma espécie de infantilismo da política apostando nos apelos à cidadania como se fossem suficientes para criar sob nossos pés um bom país. No entanto, não há caso algum no planeta e a História tampouco registra feito semelhante. Esta época, marcada pela consciência ingênua e dominada pelo cretinismo parlamentar concluiu, de maneira abrupta, com a metáfora da retroescavadeira.
Ciro Gomes há muito elegeu o petismo como seu adversário principal. É natural, pois o espólio do progressismo após o colapso do confortável sistema petucano está em disputa e não pode ser capturado por Haddad, um liberal da cabeça aos pés. Ciro captou há tempos que vivemos numa lógica de situações extremas e flerta – apenas flerta! – com o radicalismo político sem concessões verbais. Lula, afunda em sentido oposto, pois é o especialista vulgar do bom mocismo afirmando que torce para o governo Bolsonaro acertar porque, segundo o cinismo dominante, quem pagaria os custos do desastre seria o povo. Ciro, ao contrário, bate duro no protofascista Bolsonaro à direita e não poupa o petismo, alma do liberalismo de esquerda.
A ação de Cid Gomes, seu irmão, em Sobral, permitiu um degrau a mais na escalada para encabeçar a oposição a Bolsonaro. Ciro politiza de maneira restrita seu eleitorado por meio de um desenvolvimentismo de extração Pasqualiniana (Alberto Pasqualini), muito menos racional e radical que aquele simbolizado por Leonel Brizola e Jango.
O episódio de Sobral e a simpatia que a ação de Cid Gomes despertou em setores do progressismo não filiados ao PDT indica uma tendência em curso que já se manifestou nas bases eleitorais do PT e do PSOL na última eleição presidencial quando muita gente votou em Ciro ainda no primeiro turno supondo ser ele o único que poderia derrotar Bolsonaro. De lá pra cá, Ciro cresceu e, em consequência, precisa manter o Ceará sob controle político. Aproveitou a crise cearense para mandar um recado nacional claro em termos retóricos: os violadores da lei, especialmente os milicianos, encontrarão nele um defensor da lei e da ordem! Ademais, em Sobral, a atuação de parte dos policiais que não aceitaram o acordo da cúpula militar com Camilo Santana permitiu a ofensiva dos Ferreira Gomes, pois a operação destinada a fechar o comércio aparece para a população como aquilo que de fato é: um acinte contra seus interessses oferecida exatamente por aqueles que deveriam garantir a sua segurança!
A disputa nacional e local se articulava perfeitamente bem e os Ferreira Gomes atuaram em consequência. Os atos no Diario Oficial de 23 de fevereiro indicam que os adeptos do capitão fala mansa Wagner encontrarão agora os rigores da lei que em sua carreira aplicou contra a população. Além disso, o Cabo Sabino, ex-deputado federal, também encostará sua saliente barriga nas barras dos tribunais e, muito provavelmente, somente poderá recuperar sua condição na corporação nas instâncias superiores da justiça após longa disputa judicial.
Nesse contexto, a presença de uma deputada fluminense no Ceará dias antes da crise em Sobral, ao contrário do que diz Ciro Gomes, nada revela. É preciso reconhecer que o Partido Policial já estava pronto e atuando de maneira organizada há muito com pleno conhecimento e cumplicidade da maioria dos políticos. Agora, as corporações estarão ainda mais disputadas e o terreno da disputa se revela uma exigência para a esquerda revolucionária, pois somente ela poderá oferecer alternativa aos protofascistas e ao liberalismo de esquerda dominante. Até agora, a maioria dos policiais aprendeu uma lição inesperada, mas historicamente necessária: suas reivindicações não podem estar submetidas aos acordos de gabinete entre o capitão-deputado e o governo encabeçado pelo petista Camilo Santana em acordo com os Ferreira Gomes. Ademais, as condições de trabalho e especialmente os salários baixos não poderão ser recuperados sob o respeito à disciplina fiscal que Ciro defende como núcleo racional de uma política econômica “alternativa” que revela seus limites precisamente no Ceará. Não por acaso, em sua primeira entrevista, ao contrário do discurso que apresenta nacionalmente o Ceará como uma vitrine de modernidade num país em degradação quase completa, Ciro recordou que “esse que é um dos estados mais pobres do Brasil, ofereceu, numa ampla negociação, um salário mínimo para o policial jovem que começa a carreira de cinco salários mínimos, ok, isso é muito pouco, mas para um estado pobre como o Ceará, é mais do que se paga um professor...”. Ora, no marco da política econômica dominante – seja ela ultraliberal ou neodesenvolvimentista – não há alternativa possível para as classes subalternas.
No ajuste iniciado por Dilma Rousseff, aprofundado pelo liberal e corrupto Michel Temer e hiperbolizado pelo protofascista Bolsonaro, as demandas dos trabalhadores – e dos policiais – não poderão ser atendidas, exceto muito marginalmente. A lei e a ordem é mandamento supremo contra toda greve, rebelião ou revolta dos de baixo. A greve dos petroleiros que apenas concluiu, indicou o estreito limite operado pelo sindicalismo de extração cutista num setor estratégico da economia e da segurança nacional. As próximas greves ou ainda eventuais revoltas ou rebeliões de policiais terão o limite imposto pela decidida ação de Cid Gomes e da justiça cearense. A lei e a ordem, agora consideradas exemplares por setores do progressismo que apoiam Ciro em confronto com os aliados de Bolsonaro no Ceará, em breve poderão reconhecer os mesmos rigores aplicados contra seus interesses.
Os policiais que rechaçam a cúpula militar – no Ceará e nos demais estados – sempre disposta a fazer acordos com políticos ávidos por um lugar ao sol numa república que apodrece a olhos vistos, terão agora que avançar o sinal e buscar com autonomia e compromisso com o nacionalismo revolucionário uma nova práxis destinada a redimir não sua corporação, mas o país do beco do subdesenvolvimento e da dependência que condena todos nesse abismo social que parece não ter fim.
O liberalismo – de esquerda ou direita – em suas múltiplas variações, já não pode esconder a podridão da república burguesa e menos ainda garantir aos trabalhadores as virtudes republicanas anunciadas como ideologia pelos políticos vulgares. É hora da lei e da ordem! O liberalismo não vacilará em atuar com decisão.
Uma ótima análise da situação, os fatos do dia a dia mostram que o sistema não tem salvação nessa atual democracia. Vejo o desespero desse atual governo em aplicar um golpe que é característico da direita. A situação mostra que o povo não tem mais opção nesse sistema a não ser aderir a Revolução Brasileira.
Enfim um artigo sobre os acontecimentos no Ceará que vale a pena ser lido.
Nildo, a toupeira continua cavando seus túneis embaixo da terra. Sigamos ajudando-a a colocar sua cabeça e corpo na superfície. Forte abraço !
Parabéns camarada. Difícil acreditar que vc esteja nas fileiras light psolistas
Brilhante análise! Se não houver uma reação das camadas populares que sofrem sob a batuta do progressismo, do liberalismo e do ultraliberalismo, apoiado pelo partido militar que hora se apresenta, entraremos em um processo de acumulação jamais visto na história da república.
Ninguém melhor que o professor Nildo Ouriques para apontar as contradições da atual conjuntura política e identificar com clareza seus atores. Podemos não concordar com tudo que é exposto, mas é uma leitura obrigatória para fazer avançar as lutas que o campo da esquerda brasileira tem pela frente.
Além de tudo isto, existe um poder narcoevangélico se embrenhado na política nacional, sobretudo nas favelas cariocas…está associação cairá como uma bomba na vida brasileira.