A solidão de Ciro Gomes e o trabalhismo

 O resultado eleitoral da última disputa presidencial foi um golpe duro para as pretensões políticas de Ciro Gomes. É inegável seu retrocesso quando comparado com o desempenho no primeiro turno de 2018, razão pela qual, após a vitória de Lula, o candidato do PDT foi para um curto retiro reflexivo. A volta recente num debate realizado em Portugal despertou antigas ilusões e criou novas expectativas que se defrontam com a dura realidade brasileira e a crise do sistema político dominante.

 Há um contraste evidente que passa sem registro no raso debate nacional: enquanto Ciro amarga sua solidão política e no ensaio de retorno à disputa eleitoral renova antigas críticas a Lula e ao PT, o partido ao qual está filiado (PDT) participa orgulhosamente do governo Lula na presença do ministro da previdência social Carlos Lupi, também presidente da sigla.

 No debate em Lisboa, Ciro afirmou categoricamente que não representa mais uma corrente de opinião (“eu não represento uma corrente de opinião mais“). É um claro recado para os governistas do PDT que constituem a maioria dos diretórios e acumulam pequenas ambições eleitorais espalhados por todo o território nacional. É também, provavelmente, o anúncio de que ele está livre para buscar outro partido ou atuar na cena política como livre pensador. É uma ruptura sutil, mas é, antes de mais nada, uma ruptura.

 O PDT é um partido que sofreu grave regressão programática na qual Ciro cumpriu papel relevante. A atualização da doutrina trabalhista explícita no seu último livro e campanha, foi orientada, segundo suas próprias palavras, pela imaginação do professor de Harvard, Roberto Mangabeira Unger. Na prática, aquela operação representou uma ruptura radical com o trabalhismo de Vargas, Jango e Brizola e, embora o diagnóstico apresentado por ele tenha apenas roçado problemas graves da economia e do Estado, não foi suficiente para mobilizar votos nem tampouco capaz de anunciar um novo horizonte para a antiga tradição trabalhista. Na memória recente, não é exagero afirmar que Ciro apenas simula as críticas de Brizola e a saudável desconfiança do gaúcho em relação ao sistema político dominante em crise. Mas, ainda assim, assinala e condena mais os sintomas da doença no lugar de oferecer uma saída para os crescentes impasses da luta de classes.

 Ninguém deveria se espantar com o fracasso político de Ciro na disputa presidencial. O pífio resultado eleitoral não deriva da orientação de sua campanha na qual tanto Lula quanto Bolsonaro eram alvos igualmente importantes, ainda que de sinais contrários. A política é conflito e, nas condições nacionais, conflito de alta intensidade; portanto, a linha de sua campanha era correta embora com elevada carga de superficialidade. É verdade elementar – ainda que a esquerda liberal negue com os dois pés juntos, as mãos e olhar elevados ao céu – que Bolsonaro e Lula são os dois lados da mesma moeda. Até mesmo os mais ingênuos e devotos lulistas já afirmam à boca pequena que a continuidade da economia política do rentismo conduzida por Lula pode trazer Bolsonaro – ou outro representante da direita – de volta à cena nas eleições de 2026… Ademais, ainda que de maneira dissimulada, já aparecem figuras indicando que Bolsonaro não emergiu na cena política como um raio em céu azul, mas foi resultado necessário das transformações operadas em longos 14 anos de petismo… É pouco, mas já é uma demonstração de que as exigências da realidade estão corroendo o oportunismo político.

 Portanto, a linha supostamente “raivosa” de Ciro não foi responsável pelo desastroso resultado eleitoral. Ocorre que tanto Ciro quanto o PDT fomentaram por mais de uma década o polo petista do sistema petucano (oposição entre petistas e tucanos). A ruptura de Ciro foi tardia e era incapaz de produzir um espaço à esquerda quando o petucanismo esgotou suas energias mobilizadoras com a ascensão do governo Temer e a posterior aparição de Bolsonaro. Ademais, não se deve esquecer que Ciro permaneceu fiel ao bloco da esquerda liberal encabeçada por Lula e Dilma até a destituição desta última em agosto de 2016. De resto, no segundo turno das eleições entre Haddad e Bolsonaro, Ciro cravou no petista sem vacilação alguma a despeito das calúnias e mentiras produzidas pela esquerda liberal contra sua reputação. Os movimentos eleitorais relativamente bruscos não são capazes de produzir alteração na correlação de forças entre as classes sociais, especialmente quando todos os partidos se filiam à economia política do rentismo e também por isso não desfrutam da confiança do povo. Portanto, o caminho eleitoral de Ciro estava fechado antes mesmo de a disputa começar, não obstante erros reais ou imaginários na condução da campanha e nos alvos escolhidos.

 Os obstáculos que Ciro amargou ontem quando pretendia representar o trabalhismo são exatamente os mesmos que enfrentará a partir de hoje como livre pensador: os limites objetivos da esquerda liberal no labirinto da crise do sistema político e da emergência do capitalismo dependente rentístico. A propósito, não há uma fase neoliberal do capitalismo que, com imaginação e pragmatismo, poderia ser substituída por algo distinto que ainda atende pelo teimoso nome de “desenvolvimentismo ou neo-desenvolvimentismo”. As transformações na economia mundial determinaram a atual posição do país na divisão internacional do trabalho reduzida à condição de mero exportador de produtos agrícolas e minerais cuja origem foi a hegemonia do capital financeiro na implantação do Plano Real em junho de 1994.

 Nesse contexto, não basta a crítica aos “juros escorchantes” denunciados por Antonio, o abnegado comerciante diante de Shilock, o judeu agiota, insensível e avarento criado por Sheakespeare no século XVI. No desenvolvimento capitalista rentístico, a simples denúncia dos juros funciona, na prática, como ideologia destinada a garantir a hegemonia financeira antes de criar consciência crítica para a ruptura com o “modelo neoliberal”. De resto, quem senão Lula está no comando da denúncia retórica dos juros enquanto garante vida longa ao rentismo? Ciro chega tarde, uma vez mais… e terá que arar em terras que já possuem proprietário.

 A presença do PDT no governo deixa Ciro na mais absoluta solidão pois as críticas apresentadas desde Lisboa não arranham a convicção do partido no sentido de romper com Lula/Alckmin, a mais perfeita tradução do petucanismo. O vice Alckmin – ministro fictício da Indústria e Comércio – é menos que uma caricatura da impotência do capital industrial paulista, o epicentro burguês do país. A tradição trabalhista está esgotada historicamente e devo reconhecer, sem conceder nobreza na escolha do PDT, que não haverá um movimento na direção de uma aliança entre capital e trabalho rumo à retomada da industrialização. O pragmatismo pedetista é, finalmente, feito do mesmo barro que o pragmatismo petista, pecedobista, psolista e outros tantos: a mera auto-reprodução parlamentar no interior de um sistema político da república burguesa apodrecida em seus cimentos. Por fim, a industrialização é caminho vetado há décadas! Morreu com Geisel e sua ditadura de classe no final do “milagre brasileiro” em 1975.

 A Carta de Lisboa foi uma cartada de Leonel Brizola às vésperas de seu retorno à cena política nacional. O gaúcho amargara o exílio mais longo entre todos os políticos brasileiros: 15 anos não são 15 meses, carajo! Ademais, o estigma de radical acompanhou Briza desde sempre e foi renovado pela classe dominante quando ele pisou em solo nacional naquele final de tarde do dia 6 de setembro de 1979. Temperado pela experiência de lutas cruciais em seu tempo – da genial e heróica luta pela legalidade, o posterior flerte e renúncia da luta armada e, finalmente, o compromisso com o socialismo renovado pela adesão à Internacional Socialista –  a verdade é que Briza errou ao apoiar Lula nas disputas eleitorais e filiar a tradição trabalhista no altar do Vaticano e do Partido Democrata dos Estados Unidos que sempre orientaram as decisões de Lula e o do PT.

 No entanto, a astúcia e o talento político de Brizola não foram suficientes para enfrentar a direitização do ocidente, que liquidou o socialismo soviético, produziu a socialdemocratização dos antigos partidos comunistas no velho continente e a precoce adesão da socialdemocracia às teses liberais. Quando conquistei meu primeiro emprego após deixar os bancos escolares na UFSC em 1984 – na FESP do primeiro governo Brizola no Rio – meu mestre e amigo Ruy Mauro Marini certa vez me alertou que gostava do Brizola porque ele colocava pimenta na insossa política nacional. Não foi suficiente, sabemos. No entanto, Marini jamais aderiu ao trabalhismo, ao contrário de Vania e Theotonio, que escreveu “O caminho brasileiro ao socialismo” como livro de ingresso nas filas do Brizola. Eu recebi o livro das mãos do autor e a despeito de minha recusa às teses ali expostas, sempre reconheci a honestidade intelectual de Theo, que rompia com o núcleo duro da teoria marxista da dependência no terreno da tática e estratégia socialista… Bueno, Theo estava em Lisboa com Betinho, Moniz Bandeira, etc…

 A verdade é que o PT e Lula ocuparam o antigo espaço do trabalhismo na luta política. A trama é longa, merece reflexão mais apurada mas basta recordar que a derrota do nacional reformismo expresso na destituição de Jango pelo golpe militar de 1964, produziu efeitos de longa duração. A História é, de fato, cruel! Brizola sofreu 15 anos de exílio e, no seu retorno, encontrou uma terra difícil de arar. Os antigos líderes sindicais trabalhistas já não existiam e em seu lugar apareceu o “novo sindicalismo” apoiado pela igreja católica, a esquerda revolucionária que sobreviveu ao terror de estado e as lideranças sindicais moderadas encabeçadas por Lula e os sindicalistas combativos contra o peleguismo da estrutura sindical da ditadura. Até onde minha memória registra, o mais importante líder sindical do PDT estava no Rio, mais precisamente em Volta Redonda, no comando do poderoso sindicato dos metalúrgicos capaz de paralisar a CSN. Entretanto, a atuação de Juarez Antunes – que contava com assessores da talha de Colombo e Luiz Arnaldo Campos – foi interrompida por acidente fatal quando ele tinha apenas 55 anos…

 À luz da perspectiva histórica, a solidão de Ciro não é, portanto, um fato novo; nem por isso é menos grave. Na campanha eleitoral eu alertei “ciristas” próximos que o sobralense de adoção deveria ter atuado como uma caixa de ressonância contra a interdição da crítica produzida pela esquerda liberal, mas ele optou por um pragmatismo raso, que reduziu sua autoridade política, ainda que a vida esteja confirmando algumas de suas previsões. Na verdade, Ciro não tinha opção na disputa eleitoral anterior: deveria ter criado uma tribuna para todos os desterrados, aqueles que sofriam o exilio em seu próprio país, todos os náufragos da derrota histórica do petismo e especialmente para nós que lutávamos contra a hegemonia detestável da esquerda liberal… Entretanto, ele optou por um caminho animado por ilusões de extração eleitoral, sem jamais perceber que a república burguesa estava (e segue!) apodrecida em seus cimentos! Creio que, no essencial, Ciro repete a dose pois não há indicação na sua longa intervenção lisboeta de que pretenda romper de fato com as formas políticas e a “estratégia” da esquerda liberal que esmaga o povo sob a administração petucana. O teto de gastos que Lula validou antes de recusá-lo por completo, representa apenas mais uma demonstração do apego da esquerda liberal à ordem burguesa e a crítica a questões tão elementares não isenta ninguém de cumplicidade com o atual governo. A luta nos marcos da ordem e contra a ordem burguesa é problema ausente no seu discurso de retorno.

 A tentativa de combinar pragmatismo com utopia nunca produziu bons resultados! Na campanha, Ciro pretendeu oferecer uma alternativa racional aos extremos em disputa (Lula e Bolsonaro) omitindo que a polarização nada tinha de artificial, mas, ao contrário, era a própria manifestação eleitoral da lógica de situações extremas da qual não teremos possibilidade de sair sob a hegemonia do liberalismo de esquerda no campo popular. O fiasco da tentativa de figurar como o “espírito crítico” da esquerda liberal pode ser visto no precoce colapso do PSOL, mas também no silêncio cúmplice dos demais partidos – PDT incluído! – que calam sobre as misérias do atual governo em nome do combate ao ilusório “neofacismo”.

 É comovente observar a saudade juvenil que Brizola desperta na Juventude Socialista e em milhares de militantes independentes sem qualquer filiação ou mesmo fidelidade eleitoral ao PDT. O apelo ao caudilho do sul é tão expressivo, que até mesmo Lula afirma cinicamente ter “saudades do Brizola”!! Entretanto, se os trabalhistas pretendem, de fato, honrar a memória e o legado de Brizola, deveriam trilhar o caminho da recusa à hegemonia liberal da esquerda encabeçada pelo petucanismo e o governo Lula. Nesse contexto, a presença de um ministro do PDT no governo conservador de Lula/Alckmin não faz menos que eternizar a tutela petista no interior das forças que justificam sua existência na luta contra o “neofascismo”. O próprio Brizola sucumbiu – por circunstâncias e constrangimentos muito mais dramáticos do que os atuais – ao figurar como vice e depois apoiar Lula nas disputas presidenciais. Mas ninguém pode esquecer que o último recado da consciência rebelde do gaúcho apareceu precisamente nas homenagens populares em seu velório no Rio: quando Lula, então presidente, apareceu para prestar a última homenagem ao caudilho do sul, recebeu uma sonora vaia nunca antes vista numa cerimônia semelhante. Naquele distante junho de 2004, o atual presidente estava acompanhado de vários ministros – Dirceu, Pallocci, Amorim – e… Ciro Gomes (ministro da Integração Nacional). A imprensa registra a força do protesto obrigando a delegação oficial a permanecer breves cinco minutos e se retirar pela porta dos fundos do Palácio Guanabara. Ao contrário dos petistas, apenas Ciro permaneceu e, de quebra, condenou o merecido e espontâneo protesto da base brizolista.

 A vitória eleitoral da chapa petucana polarizou ainda mais a situação política nacional. Não há novidade no fenômeno pois a “política de ódio” instaurada pela ofensiva burguesa não poderia ser combatida pela “política do amor” destinada a “acolher” os miseráveis e “pacificar o país”. Não podemos considerar a polarização atual como um artificio que poderia ser superado por políticas públicas rebaixadas, historicamente incapazes de tocar no nervo da miséria e exploração de nosso povo; tampouco é possível alimentar ilusões sobre a capacidade de auto regeneração do sistema político da república burguesa! A vã tentativa de “pacificar” o país é apenas expressão da impotência da esquerda liberal diante da ofensiva burguesa, pois as exigências materiais, políticas e culturais da guerra de classes aberta que sofremos na atualidade é muito mais do que uma simples “fase neoliberal” do desenvolvimento capitalista do Brasil. Na verdade, é produto do desenvolvimento capitalista dependente rentístico que veio para ficar e não pode ser superado pela administração democrática da ordem burguesa. É uma encruzilhada histórica! Aqui, nesse solo incerto e exigente, necessariamente instável, poderemos,  finalmente, ver de fato a estatura dos homens que pretendem representar o povo. Afinal, o destino dos alertas e críticas realizados por Ciro na exposição de Lisboa servirão para alimentar o impotente e miserável “espírito crítico do petismo” ou reforçarão a oposição de esquerda aberta ao governo conservador de Lula e Alckmin?

 

Nildo Ouriques

Militante pela Revolução Brasileira

Revisão: Zunia Zaidan

 

 

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Comentários

  1. Ciro deu outra palestra, agota em Fortaleza. Me pareceu muito lúcido sobre as causa reais de nossos problemas. No entanto, não apontou soluções. Não creio que seja um “morto politico” ainda, pois suas criticas são, dentre aqueles que ainda tem algum cacife politico, a mais coerente de todas. Vamos aguardar.

  2. Parei de ler no momento que igualou Lula e Bolsonaro, pura desonestidade intelectual. É tão fácil escrever e falar pra convertidos? Cria a ilusão que tem alguma razão nas baboseiras que escreve.

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