Lula, finalmente, assumiu a presidência

 É costume nas filas da esquerda liberal inocentar Lula e culpar seus ministros pelos “erros” nas políticas públicas. A ilusão de que a vitória de Lula era condição para derrotar o “fascismo”, barrar o “neoliberalismo” (seja lá o que isso significa!), tomar um fôlego e retomar a iniciativa política foi perdendo aderência após 6 meses de governo. Naquele momento, o encanto e o oportunismo de todos aqueles que votaram em Lula mudaram de direção para não perder a linha: começou a fase do ataque aos ministros.

 Camilo Santana, por exemplo, foi o primeiro a ganhar a pecha de  office boy da Fundação Lehmman porque a sensibilidade da pequena burguesia universitária semi-militante tem certa influência nos sindicatos e partidos políticos, que, por sua vez, não produzem teoria. Em consequência, importam das universidades os bordões destinados a simular a luta e justificar a impotência do governo diante da classe dominante na forma de apelos morais completamente impotentes. Assim, o ministro da Educação segue sob fogo cruzado de todo universitário digno de ser chamado militante. O Programa Pé de Meia é menos que caridade católica, mas goza de simpatia silenciosa nas filas da esquerda liberal porque há que fazer algo para os pobres que abandonam a escola aqui e agora, dizem com aquela seriedade dos que carregam alguma culpa na alma.

 A despeito do perfil pra lá de baixo, a verdade é que Luciana Santos, ministra de Ciência e Tecnologia, não tem sido alvo da crítica, embora o raquitismo da pasta revele de maneira eloquente não somente a dependência científica e tecnológica do país, mas, sobretudo, a completa prostração do governo numa área estratégica para afirmação da soberania e melhoria das condições de trabalho do povo. Ocorre que a agência  Financiadora de Estudos e Projetos  (FINEP), por exemplo, é um órgão que sempre nutre esperanças de conseguir algum nesse deserto do real…

 De igual modo, a “crítica” também não alcançou outros personagens menos afeitos à condição de classe dos universitários, como por exemplo, Carlos Henrique Fávero, a quem Lula já considerou com toda razão, o “ministro mais feliz” de seu governo. Não há dúvidas a respeito, basta ver o financiamento do Banco do Brasil – o festejado Plano Safra – considerado pelo presidente como o mais vultuoso de nossa história. O ministro Fávero, representante do latifúndio sorri, mas não agradece, afinal não deixa de defender seus interesses de classe, ao contrário da esquerda liberal, para a qual, a consciência de classe sequer figura como um valor.

 Mauro Vieira, o titular de relações exteriores, tampouco foi objeto de acurada consideração porque nunca se sabe quando o Itamaraty abrirá as portas para um convescote ou seminário internacional sobre qualquer crise mundial ou viagem presidencial, exceto se for sobre o genocídio do povo palestino. Aqui, silêncio total quando se trata de tomar medidas concretas contra o sionismo assassino dominante em Israel.

 Esse período – marcado pelas críticas aos ministros – parece estar desaparecendo. Na semana passada, considerada pela imprensa burguesa como uma “semana ruim” para o governo, a consciência ingênua do lulista (com ou sem filiação partidária) parece viver uma sorte de mal estar. De fato, em algumas manifestações, o tom da crítica a Fernando Haddad ganhou alguns decibéis. É verdade que há algum tempo a maioria da esquerda liberal – veja o PSOL, por exemplo – rangeu os dentes contra o teto de gastos do Lula, orwellianamente apresentado como “arcabouço fiscal”.

 Entre os economistas, a boa nova foi recebida e saudada como insuficiente, mas muito melhor do que o teto de gastos do Temer de 2016 (Emenda Constitucional 95). Um passinho adiante, diziam. Haddad surfou na onda e ganhou tempo. Lula também. Alguns economistas, alertaram para as “contradições imanentes” do teto de gastos do PT, sabidamente filho bastardo do teto de gastos do Temer. Em consequência, primeiro com alguma timidez e mais tarde com energia comedida, elevaram o tom da crítica. A Auditoria Cidadã da Dívida, caiu de pau desde o primeiro dia mas erroneamente poupou o presidente Lula. A culpa seria do Haddad. De resto, todos os críticos malhavam Haddad mas poupavam Lula e o sentido considerado cada dia mais difuso de seu governo uma vez que o protofascista parecia controlado ou mesmo foragido da justiça e do xerife do bairro, o ministro Alexandre de Moraes.

 Porém, um antigo e sábio personagem shakespeariano afirmou com razão que “as ideias ruins somente se revelam totalmente ruins quando levadas à prática”. A promessa lulista do “melhor dos mundos possíveis” exibe seu sabor amargo e a antiga e aparentemente doce receita que lhe deu a vitória sobre o protofascista foi, finalmente, cedendo diante do teste definitivo do real. De fato, as condições de vida e trabalho da maioria do povo são terríveis e nenhum programa social do governo poderá mudar ou mesmo mitigar a desgraça. Ademais, a renúncia da luta ideológica por parte da esquerda liberal – que, de fato, confinou a luta pela Revolução Brasileira quando muito aos seminários acadêmicos – permitiu o terreno livre para a direita liberal afirmar todas as virtudes do capitalismo como um suposto reino da liberdade individual e do progresso civilizatório.

 O súbito e ainda sonolento despertar não é produto de convicção alguma. Não se iluda! Ocorre que as eleições municipais se avizinham e, como mandam as sacrossantas regras eleitorais do sistema político, a linha do governo é clara: isolar o “neofascismo”. É claro que nessa toada toda aliança esta permitida desde que os comitês para a disputa de 2026 ganhem alguma consistência agora ou pelo menos a aparência de consistência ao “isolar a direita”. Nem em pesadelo o cativo suspeita que ao fazer alianças à direita está fortalecendo… a direita! Ao contrário, julga que um candidato a prefeito do PT que conseguiu a façanha de atrair no seu município “ex-golpistas” ou “bolsonaristas decepcionados” está realmente minando o “fascismo”; jamais caminhando em direção à direita e, de fato, fortalecendo a hegemonia ultraliberal que diz ou pensa combater!

 Ontem, Lula saiu em defesa do ministro da economia e foi conclusivo: “Haddad jamais ficará enfraquecido enquanto eu for presidente“. Eu bem sei o quanto vale a palavra de Lula e o rapaz da USP/Insper deveria realmente se preocupar. A respeito, recordo que Carlos Lessa foi chamado ao Planalto e comunicado de sua demissão do BNDES por um assessor presidencial e Cristovam Buarque teve pior sorte pois foi enxotado do MEC por um… telefonema! Não é preciso malabarismo teórico para lembrar que o desenvolvimento capitalista na sua fase rentística não deixa margem de manobra alguma para os “desenvolvimentistas” e tanto o programa de Alckmin sobre a “nova industrialização” – que deixaria um antigo cepalino corado de vergonha – quanto as promessas irrealizáveis do PAC, não consegue nem mesmo ser uma pálida versão da primeira edição que, de fato, ajudou (e muito!) a nos trazer para onde estamos! Haddad é um homem dos banqueiros e não é de hoje! Mas quem poderia – senão ele – sentar naquela cadeira com a legitimidade de um fiel e disciplinado seguidor de Lula? Acaso o despertar ainda sonolento do petismo esqueceu que Haddad foi o candidato de Lula na derrota pra o protofascista?

 Na prática, diante da consciência ingênua, Lula assumiu a presidência e chamou para si a responsabilidade sobre a economia política do rentismo em curso desde sempre. Na mesma toada, “bateu” na imprensa e na taxa de juros mas era reclamo para inglês ver, destinado a alimentar as ilusões no lulista sempre à espera de um aceno de seu amado Lula. Portanto, a fase de crítica aos ministros esta concluída! Lula, de maneira clara e firme, assumiu a presidência! Agora é Lula! Em consequência, o desafio se aproxima da hora da verdade, ou seja, a posição diante do governo que todo sujeito atento a vida política deve tomar.

 Nem tudo está perdido embora o terreno siga  árido para o portador de ilusões. Há aqueles que alimentam as esperanças de que o desgaste das pesquisas (sempre elas!) levem finalmente o governo a rever a política econômica e mudar de rumo, tomando distância da “austeridade”, agora considerada como a mãe do fascismo por uma novidade italiana. Outros, subitamente, se definem “por princípio” na “oposição de esquerda”, apelando para uma fuga do real de natureza doutrinária embora não vacilem na piscadela generosa para a agenda dos ministros identitários (Silvio Almeida, Anielle Franco, Cida Gonçalves…) mas antecipam que estarão prontos para apoiar o governo em caso de necessidade extrema. No polo oposto, há também aquele militante pragmático que, exibindo de maneira involuntária uma profunda crise existencial, segue acreditando que o “governo esta em disputa” porque, se não for o caso, o que restaria? Um membro do Diretório Nacional do PT deu uma resposta bem clara no Programa Faixa Livre do dia 12 de junho: o governo estaria em disputa porque caso contrário a resposta possível diferente seria “apertem os cintos, o piloto sumiu! Eu não vou aceitar essa resposta! Veja, operacionalmente, ela leva ao que? A nada, ao desespero, a desistir; então não vou aceitar essa resposta. Essa resposta é desastrosa. Então a única resposta possível é: o governo segue em disputa; nós estamos perdendo a disputa, é preciso mudar a linha política para poder ganhar a disputa”. Não é mesmo genial? Afinal, quais as contradições e antagonismos necessários para Lula comandar a virada? Acaso não existem tais condições ou ainda será necessário piorar um pouco mais para o presidente sentir a necessidade?

 A história recente indica que o PT morreu abraçado à economia política do rentismo na destituição de Dilma, uma queda sem sequer oferecer a necessária resistência. A volta de Lula reafirmou a mesma lógica de maneira ferrenha. A iniciativa política do governo  quando existe – especialmente de Lula – pretende sempre a conquista da base eleitoral da direita e, portanto, não há a menor indicação de que se moverá por algo distinto. Aos incrédulos, bastaria observar, por exemplo, o trato dispensado às greves nas universidades; sua declaração pessoal contra o aborto; os sucessivos apelos religiosos ao seu deus e as visitas ao Vaticano; as “ameaças” aos pisos constitucionais em saúde e educação; o massivo apoio dos deputados do PT à securitização da dívida pública; o acelerado processo de privatização via “parceria publico privada” turbinada pelo BNDES; o fortalecimento da fração agrária com o último Plano Safra; as reuniões “secretas” com os banqueiros e a prioridade do pagamento religioso da dívida pública e uma lista interminável de medidas cotidianas de enfadonha repetição.

 Diante dos olhos marejados do petista de coração e de toda a esquerda liberal, Lula não deixou dúvidas: Haddad é seu delfim!! Portanto, a responsabilidade pela política econômica é mesmo sua! Ao mesmo tempo, o petista, mesmo aquele ingênuo, aprendeu por experiência que as convicções de Lula são como as moscas: um dia de inverno e elas morrem. As oscilações de Lula – entre uma medida concreta à direita e uma declaração à esquerda – são logo identificadas como o espaço necessário para afirmar que o governo está em disputa. Afinal, se o lulismo é nosso horizonte político possível, por que deveríamos afirmar o fim da História?

 

Nildo Ouriques
Professor e militante pela Revolução Brasileira
Revisão: Junia Zaidan

 

 

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