Enem: Quando a UNE e a Ditadura Militar se abraçam

 Todo ano, costumeiramente, as entidades estudantis festejam o vestibular como festejam a tal “festa da democracia”. Como a festa, se apresenta e é, em essência, uma farsa, que se repete periodicamente. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é visto pela UNE e pelo “movimento” estudantil como “conquista” e “instrumento de democratização” da universidade quando, na realidade, representa o que há de mais excludente e retrógrado na luta estudantil latino-americana e no acesso aos muros da universidade.

 Um dos motivos pelos quais há tanta comemoração são as cotas sociais que, de fato, incluíram parte dos setores mais vulnerabilizadas da classe trabalhadora. No entanto, frente ao próprio quadro latino-americano, não se mostram suficientes como proposta à universalização da universidade, visto que apenas o fim do vestibular é capaz de incluir a massiva maioria da população no interior de suas estruturas.  Há que se promover um olhar atento que é apreendido há anos na militância da RB: os números de novos ingressantes nas universidades nos últimos anos não incorpora os que se mantiveram fora delas. E somado a isso, qual a solução final da educação básica num contexto de banalização de seu trágico presente diante da escalada da condensação do ensino e de sua adaptação aos interesses de mercado? São perguntas que, embora tenham respostas, são desviadas pelas entidades hegemônicas e, portanto, sequer se movem, por exemplo, orientadas à crítica à privatização do ensino que se consolida num horizonte de ensino remoto e proletarização estudantil.

 A ilusão começa, num descolamento da realidade concreta vivida pelo estudante brasileiro, quando crê que a universidade vai oferecer uma formação “crítica” ao estudante e que, a partir dela, numa interpretação de viés liberal do que é a universidade e para quê ela serve, se garantiria alguma ascensão individual via inserção no mercado de trabalho com diploma. Esquecem-se de mencionar – tanto por ingenuidade quanto por cumplicidade – que o desemprego e o subemprego no Brasil já atinge 92 milhões de pessoas no país (ILAESE), com destaque aos maiores índices de desemprego entre jovens de 17 e 29 anos. Ou seja, não basta o ensino não trazer essa “crítica” que juram tanto ver, expressa nos currículos alienante e voltados a uma lógica prático-mental funcional à reprodução da ideologia da dependência e do conhecimento metropolitano, mas a própria ascensão individual é obstruída, na medida em que se aumenta o grau de superexploração da classe trabalhadora. Classe essa que se vê num abismo típico da periferia capitalista, em que a proletarização avança sobre o tempo disposto para estudo e, neste cenário, sem alternativas, vê-se rendida aos oligopólios privados da educação, que fornecem um ensino ainda mais alienante e voltado a uma brutal preparação para altas taxas de exploração.

 Os oligopólios privados, por outro lado, voltam a ser debatidos na esfera da consciência ingênua, que realmente vê com tom de surpresa as escolhas promovidas pelo agora eleito presidente Lula: de Fernando Haddad a Aloizio Mercadante, liderando uma trupe que não se difere tanto da equipe econômica de transição chefiada por André Lara Rezende e Pérsio Arida. Pelo contrário, são semelhantes, na medida em que atuam na privatização de diferentes frentes: estes na riqueza nacional e nos remanescentes de nosso capitalismo industrial dependente e, aqueles, no avanço dos oligopólios privados sobre a matrícula e sobre as cartilhas de ensino. Pior, diga-se de passagem, são aqueles que, embora leitores de Marx que se autoproclamem “revolucionários”, se admirem com isso e, dramaticamente, admirem essas figuras. Inevitavelmente, se encontram no projeto petucano de defesa e financiamento do ensino privado, promotor do enfraquecimento da universidade pública, expresso não só nos quase 80% de matrículas efetivas nas universidades privadas (dados do Instituto Semesp), mas do poder que exercem, hoje, sobre o congresso, ditando os rumos da educação brasileira, a exemplo da votação e aprovação do Novo Ensino Médio, endossado desde a Fundação Roberto Marinho ao Instituto Ayrton Senna.

 As origens do vestibular e do ensino privado até podem se confundir em dado momento histórico de nossa república: foi, pasmem, na Ditadura Militar que o vestibular foi retomado, para não mais sair de cena, como canal de acesso à universidade, depois do regime liquidar com a UNE da época que ia às ruas reivindicar o fim do vestibular. A própria institucionalização do vestibular fez com que a classe trabalhadora se visse rendida aos cursos privados que, sem a mesma qualidade de ensino, cresciam sob a dialética desvantajosa para a universidade pública. Foram formados profissionais cada vez mais alienados e, como se diz no mercado de trabalho precarizado atual, “apertadores de botão”, passando por cursos ultra-especializantes, de pouca duração e ainda menos perspectiva de emprego digno. A atualização histórica desse investimento não se dá de outra maneira senão sob o véu do assistencialismo que, ao vender a ilusão do “sucesso”, que efetivamente se dará sob muitos seletos candidatos ao abandono de suas origens e causa de classe, impulsiona de forma irresponsável os lucros sobre esses conglomerados via FIES/ProUni, que em nada estão comprometidos com o fortalecimento do ensino público, mas, sim, a aplicar as cartilhas de ensino e currículo ao bel-prazer dessas empresas.

 Dados ainda do Instituto Semesp apontam que 18,1% dos jovens de 18 a 24 anos estão, hoje, matriculados na universidade no Brasil. Não é tarefa trivial comparar esses números com Austrália, Bélgica ou Japão. Então, simplesmente peguemos o caso da Argentina: 32,4% dos jovens da mesma faixa etária estavam matriculados no Ensino Superior argentino em 2016 baseados no site do Ministério da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia argentino. Como podem dois países latino-americanos dependentes e periféricos estarem com níveis tão discrepantes de matrícula no ensino superior? Ora, não há vestibular na Argentina, como não há no México, em Cuba ou no Uruguai. São países que, embora preservem suas contradições, muitas delas inerentes ao subdesenvolvimento latino-americano que partilham com nossa nação, superaram o maior instrumento de segregação da classe trabalhadora dos muros da universidade. O vestibular cumpre um papel bastante evidente: manter a universidade pública um privilégio, preparar ideologicamente seus estudantes para ancorarem em debates colonizados e mergulhar num mercado de trabalho hostil à superação da dependência e à reprodução de suas próprias condições de existência.

 Diante desse quadro, qual é o papel de uma entidade estudantil? Denunciar a ordem vigente que se impõe a partir do afunilamento estudantil conhecido como “vestibular”. Hoje, justamente, fazem o contrário, rememorando os golpistas que juram criticar. As entidades estudantis, dos CAs à UNE, em nada relembram a luta contra o vestibular vista nos anos 60. Pelo contrário, o oportunismo visto nesses espaços se fortalece à medida em que se decompõem suas bandeiras, se prestando à função de prolongamento da burocracia de partido, não formadora de novas lideranças no campo progressista e se expondo ao ridículo: defender a universidade e a classe professoral tais como se encontram, negligenciando o corte de classes da universidade se apresenta e os interesses a que ela serve. Essa postura comprova não só a renúncia da crítica, monopolizada hoje pela direita, como a verdadeira formação de novos parlamentares que as entidades estudantis hegemônicas ensaiam. Só à direita interessa um “movimento” estudantil como o que se encontra, que comemora as aparentes “vitórias” que ocultam o essencial: a fuga do debate político. Não à toa, se encontram em posição cômoda o suficiente para se assentarem nos cargos e distribuir casacos e festas, ao invés de propôr, na esteira dos eventos de novembro, um debate sólido sobre o racismo no Brasil e seus componentes estruturantes: a dependência, a divisão racial do trabalho e a ideologia do identitarismo, fundados segundo a história nacional.

 A tarefa primordial da luta estudantil hoje no quesito acesso à universidade, assim, é a tarefa que cumpre a Juventude pela Revolução Brasileira: o fim do vestibular, que não se dará de forma solitária, mas acompanhado pela luta por um rigoroso incremento ao ensino básico que, como discutimos arduamente em nossas teses, resoluções, discursos e debates, é comprometido à luz das maiores contribuições de Darcy Ribeiro a Anísio Teixeira. O papel de conscientização das massas estudantis se faz necessário, sem preservar a ilusão de transformar a Universidade só por dentro, mas contando com o protagonismo do movimento das massas de fora dela, denunciando a impostura das subservientes entidades estudantis que se interessam apenas a se perpetuarem em seus cargos e em sua influência sobre os instrumentos de luta dos estudantes, aparelhando-se como parasitas que necessitam extrair desses suas eternas ilusões. O festejo, que comemora os alguns poucos que adentraram à universidade, sonhando com o cobiçado diploma, e não ao papel que a universidade devia cumprir, deixa um rastro de sujeira que há de ser limpado pelos outros muitos…

 

André Oliveira

Militante da JRB do Rio de Janeiro

 

 

 

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