O momento exige que o Presidente da República assuma o comando supremo das Forças Armadas

 O episódio de 08/01/2023 em Brasília, em que pese ser lamentável e de extrema gravidade, ao contrário do que está sendo alardeado pela esquerda liberal, pela grande imprensa e fração da direita brasileira, não foi um atentado terrorista ou tentativa de golpe de Estado, mas um passo a mais na ascensão da extrema direita brasileira. Por isso mesmo, adjetivar vândalos e arruaceiros que fizeram aquela lamentável depredação como terroristas é um equívoco sem precedente e terá, possivelmente, consequência para a esquerda e para os movimentos populares no futuro próximo.

 Sempre é bom lembrar que golpe não se realiza anunciando aos quatro ventos. Ele é uma construção pormenorizada, uma conspiração meticulosa e, acima de tudo, com ausência de vestígios. Para um golpe ocorrer, é imprescindível a presença dos aparelhos de forças do Estado, porém, não basta apenas força militar, é necessário outros elementos, dentre os quais: uma coesão burguesa interna e externa, respaldo da sociedade, forte presença dos aparelhos privados de hegemonia, apoio da grande imprensa e respaldo internacional, principalmente dos EUA (verdadeiros patrões do alto comando das Forças Armadas Brasileiras). Pelo que me consta, não havia a presença da maioria desses elementos.

 A esse respeito, é importante ressaltar que enquanto a esquerda liberal e a grande imprensa tratarem sujeitos secundários como principais e esconder os sujeitos principais como secundários, não contribuirá em nada sobre a reflexão/análise deste triste e lamentável episódio do dia 08 de janeiro de 2023. De tal ordem, tratando os fatos dessa maneira, denota no mínimo uma ingenuidade enorme, para não falar de um possível mau-caratismo, no intuito de não enfrentar o problema como ele merece.

 Isso não quer dizer que esses vândalos que depredaram a sede dos três poderes não devam ser rigorosamente punidos, no entanto, enquanto se prende, pune e bloqueia o perfil em diversas plataformas digitais desses arruaceiros, os verdadeiros responsáveis e operadores do projeto de poder militar que levou Bolsonaro à presidência da república e por esse lamentável e grave episódio, estão muito confortáveis sem serem incomodados. Desse modo, a responsabilidade central é das cúpulas hierárquicas das três Forças Armadas, principalmente do Exército.

 Foram elas que permitiram, incentivaram e deram guarida aos acampamentos em frente aos quartéis e nas unidades de Tiro de Guerra. Isso precisa ficar bem claro se quisermos ir no cerne da questão.

 

 Basta ter um mínimo de capacidade reflexiva para compreender a proteção que as Forças Amadas fizeram aos acampamentos. Para melhor compreendermos, vamos a alguns fatos: no dia 11/11/2022, Marinha, Exército e Aeronáutica, por meio de seus comandantes, assinaram e divulgaram uma nota alegando que eram segundo eles, “manifestações populares” e pacíficas.  Na ocasião, para sustentar tal absurdo e mau-caratismo, interpretaram de forma vil e covarde um trecho da Constituição Federal para respaldar seus argumentos. Não precisa ser um especialista nos estudos miliares para saber que um documento dessa natureza não se veicula sem autorização do alto-comando das três forças.

 De forma sincronizada, em 14/02/2022, o general da reserva Mourão e senador eleito pelo Rio Grande do Sul, postou em seu Twitter a seguinte mensagem: “O clamor das manifestações a que assistimos desde a proclamação do resultado das urnas, que permaneceram sem o voto impresso e auditável, é legítimo, por mais que muitos tenham tentando classifica-lo de ‘antidemocrático’”. Um dia após a postagem de Mourão, o general da reserva Villas Bôas, também postou uma nota em seu Twitter, reforçando seu apoio aos acampamentos em frente aos quartéis, alegando que eram pessoas de diferentes idades e identificados orgulhosamente com o verde a amarelo, afirmando que eram pessoas lutando contra os atentados à democracia, “à independência dos poderes, ameaças à liberdade e as dúvidas sobre o processo eleitoral”. Aproveitou para comentar, segundo ele, a indiferença da grande imprensa de tais atos, dizendo que embora, “jornalistas acreditem que ignorando a movimentação de milhões de pessoas elas desaparecerão. Não se apercebem eles que ao tentar isolar as manifestações podem estar criando mais um fator de insatisfação”. Também em sua nota, há um questionamento ao resultado eleitoral, declarando que os votos não foram auditáveis. Infelizmente, ao mesmo tempo que falta a Villas Bôas ótima condições de saúde, sobra de sua parte cristianismo e desrespeito ao povo trabalhador brasileiro.

 Sempre é bom lembrar que os militares são exímios em dissimulação. Uma de suas essências é a camuflagem e, não por acaso, a esquerda liberal e boa parte do jornalismo brasileiro compra muito fácil a ideia de que há militares profissionais e militares ideológicos, não fazendo com isso uma análise do forte espírito de corpo e da forte coesão de doutrina que rege as Forças Armadas, atributos esses inerentes a toda a corporação fechada e totalizante. As cúpulas hierárquicas adoram a falta de conhecimento sobre suas corporações, porque assim fica mais fácil sua dissimulação, exercendo dessa forma, o bônus do poder sem o ônus de ser governo.

 Nesse momento, por exemplo, há um esforço enorme por parte de alguns generais alegando que Bolsonaro manipulou e politizou os militares e com isso, arrastou-os para a política. Por favor, generais, espera-se que pelo menos uma vez na vida vocês tenham dignidade. Os militares não estão na política por culpa de Bolsonaro, eles sempre estiveram na política. Bolsonaro não os arrastou para a política, foram as altas cúpulas da hierarquia militar que o arrastaram ao Palácio do Planalto. Os generais querem nos convencer que um capitão inepto, que não consegue formular uma frase com dez palavras de forma coerente manipulou os generais? Esses generais poderiam poupar a inteligência do povo brasileiro desse maucaratismo e dessas mentiras deslavadas. Bolsonaro foi construído por esses generais para um projeto de poder político dos militares à mando da burguesia brasileira, comandada aqui na América Latina pelo Comando Sul do imperialismo. Ele é o boneco de ventríloquo dos interesses corporativo das Forças Armadas. Bolsonaro é a maior expressão do pensamento reacionário, anti-povo, oligárquico e escravagista das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas.

 O protagonismo político das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas brasileiras, em especial do Exército, não é novidade. ,Ela se estende desde o período imperial, como bem demonstrou a grande historiadora Adriana Barreto de Souza em suas pesquisas sobre a relação dos militares e a política no Brasil Imperial, em particular, em suas obras “O Exército na consolidação do Império: um estudo sobre a política militar conservadora (1831 – 1850)” e “Duque de Caxias: o homem por trás do monumento”.

 No que concerne ao período republicano, há inúmeras obras fundamentais para compreender a relação dos militares e a política, dentre elas “Dever militar e política partidária”, do general Estevão Leitão de Carvalho, escrita em 1959; “Forças Armadas e política no Brasil”, de José Murilo de Carvalho, “A política nos quartéis: revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira”, de Maud Chirio; “Os militares e a República: um estudo sobre a cultura e ação política”, de Celso Castro e “Militares e militância: uma relação dialeticamente conflituosa”, de Paulo Ribeiro da Cunha.

 Portanto, não precisa ser especialista nos estudos militares brasileiros para saber disso, basta ter dois neurônios que se conectem para perceber esse protagonismo. Quando esse protagonismo não aparece, não significa que ele não existe, ele está apenas velado. A esse respeito Marx já nos ensinou no século XIX dizendo: “Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária”.

 O grave e triste episódio do dia 08/01 foi planejado com antecedência e teve apoio financeiro e logístico, por isso, como escrevi anteriormente, a responsabilidade não deve ser atribuída apenas a sujeitos secundários (embora esses devam ser responsabilizados). A tão vocalizada “família militar” foi fundamental nesses atos de vandalismo, não por acaso, os quartéis deram guarida para os acampamentos por cerca de dois meses. Militares da reserva, inclusive muitos coronéis juntamente com suas famílias se fizeram presentes nas manifestações e postaram em suas redes sociais.  Nesse sentido, a pergunta que precisa ser feita é: há alguém da dita “família militar” preso? Algum oficial superior ou oficial general preso? Seus parentes, esposas (como a esposa do Villas Bôas) serão presos, julgados e condenados por seus crimes? Houve acordo por cima entre o governo e os militares para ninguém da “família militar” ser preso e punido por seus crimes?

 Só existe um caminho para o presidente da república: enquadrar e exercer o comando supremo das Forças Armadas. Entretanto, ao que tudo indica, Lula continuará contemporizando com as cúpulas hierárquicas das Forças Armadas, não assumindo o comando das Forças Armadas. Não porque não queira, mas porque não tem competência para agir em consequência no que concerne as suas prerrogativas constitucionais. Não há outro caminho: ou Lula assume e comanda ou será comandado, ou enquadra os militares ou será enquadrado por eles. Na noite do dia 08, abriu-se uma ótima janela de oportunidade para Lula agir em consequência e tocar nos elementos centrais da questão militar. Várias eram as condições que possibilitaram Lula a agir, dentre as quais: grande legitimidade política em função de estar nos primeiros dias de seu governo, uma grande comoção nacional diante das lamentáveis imagens de vandalismo e a grande repercussão internacional.

 Lula literalmente abdicou de assumir o comando em chefe das Forças Armadas por não tomar medidas imediatas a partir dos fatos do dia 08/01/2023. Mas quais eram as principais medidas que Lula deveria ter tomado? Demissão imediata do Ministro da Defesa, troca imediata do Comandante do Batalhão da Guarda presidencial, demissão do Chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), exoneração de todos os generais comandantes das regiões e brigadas militares que permitiram e deram guarida para os criminosos acamparem em frente aos quartéis e apuração de forma pormenorizada da responsabilidade de todos esses comandantes. Mais duas medidas devem ser imediatas: a desmilitarização da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e extinção do GSI, visto que a finalidade desse órgão é a tutela do poder militar sobre o poder civil – o que o GSI faz que a ABIN não pode fazer? Essa é pergunta que precisa ser respondida – e o fim da justiça militar.

 Em relação às medidas não necessariamente imediatas, mas urgentes e acima de tudo estratégicas que o governo Lula precisa ter a coragem de encarar são:

  1. a) Atribuir missão às Forças Armadas na execução de um programa de superação da dependência científica e tecnológica na área de defesa, ou seja, um projeto de desenvolvimento no complexo industrial de defesa que supere a dependência em relação às potências hegemônicas no que diz respeito a Defesa Nacional;
  2. b) construir um grupo envolvendo cientistas de diversas áreas do conhecimento, abarcando civis e militares na construção de um projeto estratégico de Defesa Nacional, tendo como eixo central a superação da dependência científica e tecnológica brasileira, mencionada acima;
  3. c) alterar profundamente a doutrina militar que tem como base a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), onde o povo ao invés de ser considerado um aliado na Defesa Nacional, é visto como inimigo pelos militares;
  4. d) tirar os militares brasileiros da influência do Comando Sul dos Estados Unidos da América.

 Porém, para que seja possível a solução dos problemas mencionados acima, o presidente precisa assumir o comando supremo das Forças Armadas, agir em consequência ao que o momento exige. Isso não significa que o Presidente da República não deve dialogar com as Forças Armadas, entretanto, ele é o comandante e não o comandado, ou ele enquadra ou será enquadrado pelos militares, mas até agora ele não assumiu o comando, de tal maneira que é impossível a estabilidade sem esse enquadramento e esse comando, sob o risco de Lula não finalizar o mandato.

 

Leomar Rippel
Militante pela Revolução Brasileira

 

 

 

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