O Brasil abaixo de todos: A política externa de Ernesto Araújo

Sempre que perguntado sobre a postura que seu governo teria nas Relações Internacionais, Jair Bolsonaro afirmava: “Precisamos de uma política externa que não seja orientada pelo viés ideológico”. O escolhido para cumprir esta missão foi Ernesto Henrique Fraga Araújo, diplomata experiente, com 27 de seus 51 anos de vida dedicados ao Itamaraty. A discrição sempre foi a marca da diplomacia brasileira, tradicionalmente elitista e afastada do debate público. Ainda assim, Ernesto Araújo pode ser considerado um “discreto entre os discretos”, pois, mesmo no interior do Itamaraty, nunca foi um quadro de grande destaque [i]. É preciso compreender, portanto, como ele se tornou o chanceler de Bolsonaro e o que se pode esperar do Itamaraty sob sua condução.

 

Conexões Diplomáticas

 

Em agosto de 2017, Ernesto Araújo publicou nos Cadernos de Política Exterior do Itamaraty o texto intitulado Trump e o Ocidente. A tese central do artigo é de que o Presidente dos EUA possui o mérito de trazer à tona um projeto de política externa que se oponha ao “globalismo”, em defesa da preservação da civilização ocidental. Em sua definição, o globalismo seria entendido como a prática de padrões liberais antinacionais e antitradicionais na vida social e do mercado globalizado sem fronteiras na vida econômica. Mais adiante, Ernesto Araújo associa o globalismo ao “marxismo cultural”, afirmando:

 

[..] não por acaso o marxismo cultural globalista dos dias atuais promove ao mesmo tempo a diluição do gênero e a diluição do sentimento nacional: querem um mundo de pessoas “de gênero fluido” e cosmopolitas sem pátria, negando o fato biológico do nascimento de cada pessoa em determinado gênero e em determinada comunidade.

 

Desta forma, chamou a atenção do guru intelectual do governo Bolsonaro, Olavo de Carvalho, e foi indicado ao Ministério das Relações Exteriores.

Na realidade, o “marxismo cultural” atacado por Ernesto Araújo é resultado de um malabarismo teórico que vincula os autores da chamada Escola de Frankfurt [ii] às correntes de pensamento da pós-modernidade. Não é exagerado afirmar, portanto, que a crítica ideológica de Ernesto Araújo ao “marxismo cultural” direciona-se, especificamente, à pós-modernidade, como se pode perceber nos dois trechos a seguir:

 

O que há é uma ideologia manipuladora que cria uma histeria permanente sobre justiça social e minorias, sem fazer absolutamente nada concreto nem pelas minorias nem pela maioria, sem nenhum compromisso em melhorar a vida real de ninguém, e que veste o manto da justiça social para roubar e tentar sair com o produto do roubo, desrespeitando tanto a justiça social quanto a justiça propriamente dita. Essa ideologia faz de tudo para destruir qualquer poder mobilizador autêntico que ela não controle, e por isso dedica-se a sufocar o desejo de grandeza associado ao sentimento nacional. [iii]

A cultura pós-moderna em que vivemos padece de um terrível literalismo. Muitas pessoas vão perdendo a capacidade de compreender o símbolo ou a metáfora, a ironia ou a piada, não conseguem transitar entre diferentes níveis de discurso, não percebem as figuras de linguagem, consequentemente não discernem o senso de humor nem decifram o pensamento sugestivo. Tornam-se incapazes do raciocínio abstrato, baseado em conceitos ou em universais: limitam-se aos particulares, à repetição tautológica de casos específicos. Acham que toda elocução é descritiva, não distinguem a função evocativa da fala. [iv]

 

Globalismo, marxismo cultural e pós modernidade: assim estaria formada ideologicamente a coalizão que destroi a Civilização Ocidental e ameaça a sua liderança no mundo. A inspiração de fundo para este raciocínio repousa na obra de Samuel Huntington, para quem o Ocidente teria sido a primeira civilização a adentrar o reino da modernidade, cujo desenvolvimento das forças produtivas teria se identificado com os valores cristãos do catolicismo e do protestantismo. O multiculturalismo do sistema internacional contemporâneo, criticado pelos ideólogos de Trump nos EUA e importado por Ernesto Araújo para o Brasil, nada mais é que a expressão do Choque de Civilizações [v]. A manutenção não só dos valores do Ocidente, mas também de sua história, seus heróis e mártires, neste caso, só pode existir como negação dos valores das outras civilizações, tratadas por Huntington como tradicionais e, por consequência, bárbaras e atrasadas. A consequência prática é que a ameaça aos valores Ocidentais deve ser combatida, neste caso, com guerras e eliminação.

 

Não obstante a inspiração, há uma diferença sensível entre a tese de Samuel Huntington e os projetos atuais de Estados Unidos e Brasil: o despertar do nacionalismo de extrema-direita, com recorte necessariamente xenófobo e ufanista. Nos EUA, a fórmula se manifesta nos pesados ataques aos países de maioria muçulmana, como quando da posse. Naquele momento, Trump decretou veto à entrada de cidadãos de sete países [vi]; no Brasil, assume a forma da demonização da América Latina, sobretudo Cuba e Venezuela.

 

O que Ernesto Araújo faz na prática é emprestar dos EUA a crítica ao sistema de instituições internacionais estruturado após a Segunda Guerra Mundial e que sustentou o regime de dominação estadunidense desde então. A crise econômica de 2008 colocou em cheque a ordem liberal de governança global e as alternativas propostas por suas instituições – do Sistema ONU à União Europeia – se mostraram absolutamente incapazes de reconstituir a ordem. A impostura intelectual que sustenta a explicação de um problema concreto: este é o ponto chave que conecta a diplomacia das extremas-direitas estadunidense e brasileira.

 

Um Brasil docilmente ativo e altivo

 

No Brasil, o ataque à ordem liberal de Ernesto Araújo ocupa um espaço que os governos petistas no Brasil simplesmente não fizeram, ganhando audiência conforme a crise se acentua. Aliás, não só não houve crítica como houve reforço desta institucionalidade. Qual a agenda de Lula e Dilma para as Nações Unidas, por exemplo? Adquirir um assento permanente no Conselho de Segurança. Como? Cumprindo a agenda da ordem liberal, assumindo a Direção-Geral da OMC e da FAO. Isto sem contar os 13 anos de invasão do Haiti, numa operação vergonhosa que projetou politicamente setores militares que são os principais porta-vozes do antipetismo no novo governo Bolsonaro.

 

A crença de que o Brasil poderia pertencer a um clube de nações poderosas que dita os rumos da política global por bom comportamento é o principal disparate da política externa ativa e altiva, propalada aos quatro ventos como auto-exaltação por Celso Amorim e pelos ideólogos petistas. Só quem magnifica sem rigor analítico a política externa brasileira da década passada não consegue compreender a velocidade com a qual o Brasil some do mapa de discussão da política internacional assim que a ideologia do “país emergente” se depara com a realidade da dependência e do subdesenvolvimento. Não por outra razão, Celso Amorim classifica a nomeação de Ernesto Araújo como “um retorno à Idade Média”, expresso numa sensação de “perplexidade e piedade”[vii]. Não há análise, só sentimento. Manifestação completa de impotência e incompreensão da realidade.

 

A defesa da institucionalidade, do multilateralismo, do multiculturalismo e dos regimes internacionais hoje em dia é sinônimo da defesa do caos na política internacional. Exatamente por isso a população do Reino Unido vota pela saída da União Europeia, tomada como uma horda de burocratas incapazes de lidar com os problemas reais da população do Velho Continente. Aqui no Brasil, a defesa da ordem, da cooperação, da tolerância, dos regimes e das instituições internacionais vai sendo feita pela esquerda liberal, enquanto a extrema-direita fica com o monopólio da crítica e arrebata a aversão que se cultivou ao sistema político nos últimos tempos. Ao não realizar a crítica à ordem liberal, a esquerda e o pensamento progressista no Brasil abriram espaço para um discurso conservador da extrema-direita que agora passa a dirigir o Itamaraty.

 

A mudança que não ocorrerá

 

Ao assumir, Michel Temer já dizia que queria uma política externa sem ideologia. Portanto, nada de novo no binômio Bolsonaro/Araújo. Quando nos despimos da aparência e passamos a observar a essência da política externa brasileira, percebemos que Ernesto Araújo precisa ocultar não só o governo de Michel Temer, mas também os últimos 6 anos da diplomacia brasileira, porque desde 2012 o Brasil só faz experimentar ostracismo no plano internacional. A crise brasileira já inviabiliza há tempos os empréstimos internacionais do BNDES, já não há destaque brasileiro nos fóruns internacionais, o papel do Brasil nos BRICS arrefece, ou seja, a diplomacia brasileira acompanha a crise e dissipa a ideologia barata do “Brasil potência”.

 

Ainda sob a condução de Dilma, o Brasil realiza em 2013 o criminoso leilão do campo de Libra, que possui uma quantidade de petróleo na camada do pré-sal equivalente a tudo o que o Brasil já extraiu em sua história. A primeira viagem internacional do segundo mandato de Dilma em 2015 é para os EUA, onde se reúne com empresários que estejam interessados em investir no Brasil na esteira do Programa de Investimento em Logística (PIL), um projeto acelerado de desnacionalização do que resta da infraestrutura nacional. Após o impeachment, José Serra e Aloysio Nunes buscaram desesperadamente investidores estrangeiros para tentar reerguer a economia brasileira. Portanto, Ernesto Araújo precisará de mais do que requentar a crítica da ideologização petista da política externa e procurar relação especial com os EUA para dar uma resposta à desbotada presença internacional do Brasil.

 

A negação da ordem liberal nos EUA choca frontalmente com as aspirações da classe dominante brasileira, cuja saída apontada para a crise é a intensificação da guerra de classes (com a retirada de diretos sociais) e a venda do patrimônio nacional para os países centrais. A Civilização Ocidental evocada por Samuel Huntington não comporta a América Latina. A Europa, em crise, não se mostra disposta a aprofundar as relações com o Brasil. Por esta razão, a despeito da retórica hostil do novo governo, a diplomacia brasileira terá que manter relações próximas da China, pois é o dinheiro chinês que poderá sustentar minimamente a combalida economia brasileira no curto prazo e satisfazer os anseios imediatos da classe dominante. Eis o aparente desafio de Ernesto Araújo: equilibrar a retórica próxima aos EUA e Europa com o pragmatismo da presença cada vez mais marcante da China no país.

 

O desafio é aparente porque em nenhuma das alternativas disponíveis haverá saída definitiva para o Brasil. Como nação periférica, a ruptura com a ordem liberal só pode se concretizar se vier acompanhada de uma ruptura com seu fieis depositários: os Estados Unidos e o sistema capitalista. Nem o bilateralismo entreguista, nem o multilateralismo cosmopolita são capazes de redefinir a presença brasileira no mundo. O caminho redentor da diplomacia brasileira só pode ser o do anti-imperialismo. Uma política externa orientada pela crítica contundente ao sistema, combinada a um projeto revolucionário em parceria com as demais nações da América Latina. Ernesto Araújo e Jair Bolsonaro não reúnem as mínimas condições para fazê-lo. Por esta razão, a política externa brasileira continuará sendo sinônimo de servilhismo e subordinação. O Brasil ficará abaixo de todos.

 


[i] Como quadro diplomático brasileiro, Ernesto Araújo foi chefe da Divisão de União Europeia e Negociações Extra-regionais do Mercosul. Serviu em Berlim e Bonn (Alemanha) e Ottawa (Canadá). Além disso, foi diretor do Departamento Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos. Sua posição mais avançada no exterior foi como vice-chefe de missão na embaixada brasileira em Washington, na época em que Mauro Vieira era o embaixador (2010-2015). Durante estas duas últimas posições, coordenou as negociações comerciais entre Brasil e Estados Unidos nos contenciosos do algodão e do etanol.

 

 

 

[ii] Max Horkheimer, Theodor Adorno, Hebert Marcuse, entre outros.

[iii] ARAÚJO, Ernesto. Metapolítica 17. Querer grandeza.

[iv] ARAÚJO, Ernesto. Metapolítica 17. Objetos voadores não ideológicos.

[v] HUNTINGTON, Samuel. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. São Paulo: Objetiva, 1997. 437pp.

[vi] Numa primeira versão, estavam vetados Iraque, Irã, Somália, Iêmen, Líbia, Síria e Sudão. Uma segunda versão excluiu o Iraque da lista. Numa terceira iniciativa, Trump excluiu o Sudão e incluiu Coreia do Norte e Venezuela (válido apenas funcionários do governo venezuelano). A medida foi referendada pela Suprema Corte dos EUA em junho de 2018.

[vii] BRASIL DE FATO. Celso Amorim sobre novo chanceler: “O debate será impossível“.

 

 

 


Sobre o autor:

DANIEL CORRÊA DA SILVA, Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professor do curso de Relações Internacionais da Univali.

 

 

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