Na esteira da esterilização da crítica nas escolas e universidades e da proletarização estudantil, o Novo Ensino Médio inaugura um ano de aprofundamento da alienação e da subserviência a conglomerados privados de educação e ao mercado externo. Entretanto, nada que não seja tão cínico quanto o rebaixado discurso do liberalismo de esquerda, que se opõe à medida sem entender os problemas centrais do ensino médio atual com ou sem a reforma.
A tal “reforma” do novo ensino médio começa a ser pensada a partir do Projeto de Lei (PL) 6840 de 2013, encabeçada pelo Deputado Reginaldo Lopes do PT. Nele, já se pensava numa orientação formativa do estudante ao longo de seu ensino médio, criando vias para o que, outrora, já dominou as bandeiras da oposição parlamentar da esquerda: desaparecimento de disciplinas como Sociologia e Filosofia (“Hoje, o aluno do ensino médio tem 12 matérias, o que já é bastante excessivo” “o jovem do ensino médio não pode ficar com 12 matérias, incluindo nas 12 matérias filosofia e sociologia […] Um currículo com doze matérias não atrai o jovem” – Dilma Rousseff, 2014). Semelhante em nossa história, talvez, fosse a Reforma Capanema do Estado Novo varguista, que dividiu o então chamado ensino secundário colegial entre os estudantes que seguiriam carreiras das Ciências Humanas ou carreiras das Ciências Exatas e Biológicas.
Após pressões contra a PL, o projeto foi engavetado. Entretanto, foi trazido à tona novamente anos depois, inspirando a Medida Provisória (MP) 746 de 2016, já na gestão Temer, com o velho discurso de “modernização”. Não foi à toa proposta dessa forma: uma MP depende de muito menos burocracia pelo congresso e pela câmara do que uma PL. Uma “modernização” que põe a carroça na frente dos bois, na medida em que problemas mais urgentes do ensino básico são desviados, como infraestrutura, folha salarial de funcionários e professores e um ensino integral que mantenha o jovem durante todo o dia na escola. Na realidade, quanto ao salário dos professores, o Estado dependente brasileiro nem a isso exerce soberania, na medida em que a tomada dessa decisão é exercida pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), vinculado aos interesses do imperialismo Yankee como quase qualquer outra organização financeira em nome do “desenvolvimento” na teoria do sistema. Segundo o BID: “O investimento em materiais de ensino rende uma utilidade maior que o aumento do salário dos professores (…)”.
Além disso, a reforma compõe um importante papel na reprodução do capitalismo dependente rentístico brasileiro, na medida em que o ensino básico, pilar de formação de um estudante que assuma um posicionamento crítico diante de sua realidade e engajado em transformá-la pela luta política, com todos os defeitos que se apresentem no atual currículo do ensino médio, é gradualmente substituído por um ensino tecnocrático e positivista voltado para o mercado de trabalho, em especial do Primeiro Mundo. Não à toa, o interesse empresarial, bancário de universidades cativas da atração de cérebros e do empobrecimento intelectual do Terceiro Mundo mostra-se tão escancarado. Esse é o caso, por exemplo, do Presidente do Instituto de Co-responsabilidade pela Educação (ICE), organização bancada por Itaú, Natura, Jeep, Universidade de Oxford, etc. Marcos Magalhães, que repete os mesmos bordões rasteiros de seus defensores: a escola é “chata” , “desinteressante” e “desconexa com o mundo lá fora”. A escola, como será exposto adiante, de fato está desconexa, mas não em relação ao mundo, e sim em relação à realidade na qual se insere regional e nacionalmente. Em suma, esses termos ocultam suas reais intenções.
Assim, o “mundo lá fora” no qual se refere Magalhães é, justamente, o horizonte do mercado de trabalho europeu e norte-americano. Além disso, o que tornaria o ensino “interessante” a essas empresas seria, justamente, uma alienação escolar ainda mais implacável nas salas de aula, formando uma força de trabalho vinculada ao exército industrial de reserva que assimilasse, ideologicamente, com melhor efetividade, sua condição de superexplorada. No entanto, a discussão não se limita a essa esfera. O liberalismo de esquerda não compreende que a ausência do novo ensino médio não significa que o atual ensino não seja funcional para esses mesmos interesses, na medida em que o ensino médio esteja voltado para o “estudanticídio” do vestibular e traga um conteúdo crítico supérfluo e insuficiente para criar uma consciência crítica diante da realidade concreta de seu país e sobretudo a consciência da necessidade de atuar sobre ela em sua radical transformação.
Ademais, a MP é totalmente funcional aos grandes conglomerados privados da educação, cujos crescimentos se devem, há muito, pela gestão petucana. É papel dos empresários da Fundação Lehmann, Fundação Ayrton Senna, Fundação Bradesco, entre outros oligopólios, atrair escolas públicas e privadas para suas cartilhas, consultorias e planos pedagógicos, inclusive para as escolas públicas, com o intuito de melhorar suas classificações no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) , ensinando ao aluno a fazer sua prova, e não a melhorar a qualidade de seu ensino. Esses serviços concernem exclusivamente aos seus interesses, que incidem na orientação ideológica da classe trabalhadora em formação. Desde a gestão Lula, que tomou à frente do fortalecimento do serviço pedagógico e ensino privados através do fortalecimento da crença na possível “igualdade” no Enem via cotas, além de medidas como FIES e ProUni, esses conglomerados têm tido cada vez mais participação nas decisões essenciais quanto aos rumos da educação brasileira. Com a reforma do ensino médio, a atuação desses agentes tende a se expandir, haja visto que a parceria público-privada na concessão de profissionais e estruturas para o ensino técnico e profissionalizante não será exceção, mas regra à institucionalização da MP.
Quanto aos currículos, o Novo Ensino Médio é expressão cabal da importação mecânica senão a dos países centrais, na contramão de quaisquer princípios pedagógicos de Paulo Freire e de uma de suas principais inspirações, Álvaro Vieira Pinto. O discurso que vigora é que o Brasil estaria, agora, aproximando-se de uma Coreia do Sul ou de uma França em termos de educação, desconsiderando o fato de que países como a Alemanha gastam mais de 9 vezes mais por aluno anualmente em comparação ao Brasil. Mais do que isso, em nada se assemelha à inspiração de Darcy Ribeiro sobre a educação nos países centrais quando este institucionalizou o Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) durante o governo Brizola no Rio de Janeiro, visto que os fatores estruturais e sobretudo da consciência sobre a situação social em que o CIEP se inseria, na figura do agitador cultural (que trazia as demandas urgentes do espaço onde se situava a escola e as práticas culturais presentes nas mais sutis expressões daquele contexto) eram considerados. Além disso, a alteração curricular em nada toca sobre o ensino integral, cumprido por 11% das escolas públicas brasileiras segundo o Censo Escolar 2019, adotado pelos países que os defensores da reforma juram neles se espelhar. É nesse ponto que entra outro essencial aspecto: a proletarização estudantil, na medida em que a carga horária nas escolas mantêm-se insatisfatória para a retenção do aluno em seus espaços.
Esse fator abre margem para que o estudante passe a maior parte do dia fora do espaço escolar, o que pode causar dificuldades para sua subsistência e, portanto, ser necessário que divida seu dia entre o estudo e o trabalho, sendo o último prioritário dada a condição de miséria em que vive a massiva parte dos filhos da classe trabalhadora brasileira. Assim, a formação que era deficitária torna-se ainda mais rebaixada, podendo ainda ser induzido ao turno noturno, que tem a opção de ser ofertado remotamente. Dois problemas surgem a partir daí: durante o turno noturno, segundo a própria Fundação Ayrton Senna, o rendimento escolar do aluno é ainda mais pífio em comparação ao estudante diurno. Além disso, a aparente “conquista” do ensino remoto durante à noite não passa de uma banalização da sujeição do aluno à proletarização e à sua indução aos cursos técnicos teoricamente ofertados pelo novo ensino médio, que não os habilita profissionalmente e, principalmente, fazem com que o estudante escape de sua necessária formação política e de reflexão crítica. O segundo problema é atrelado ao ensino remoto, que condensa ainda mais a experiência já insuficiente de pedagogia, sendo uma novidade apenas no Brasil subdesenvolvido e traz uma ilusão de “acessibilidade” ao ensino, ocultando problemas centrais que induzem à sua condução como a falta de mobilidade urbana e intermunicipal, além da própria proletarização estudantil. Não nos iludamos: mesmo sem as alterações provocadas pelo novo ensino médio, a grade curricular como está não chega nem perto de produzir a doutrina do desenvolvimento nacional que orienta o estudante a superar o subdesenvolvimento e a dependência no Brasil.
É imprescindível de se mencionar ainda que, embora os defensores da reforma digam que a Sociologia e a Filosofia não irão desaparecer, na realidade irão, na medida em que, a partir do 2° ano do ensino médio, não haverá mais Sociologia, Filosofia, História, Geografia, Química, Física ou qualquer outra disciplina, e sim grandes grupos que expressam a condensação desse ensino e sua orientação voltada para o Enem: Ciências Humanas e suas Aplicações; Matemática e sua s Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e o Ensino Técnico e Profissionalizante, que compõem o chamado itinerário formativo. A ausência de obrigatoriedade dessas disciplinas e a redução de sua carga horária já vista nas escolas-piloto do Novo Ensino Médio isentam as áreas em questão de ter um objeto de estudo e de aguçar o aluno à reflexão crítica. Pelo contrário, a concepção que entrará em vigor é de uma juventude de classe trabalhadora ainda mais alienada e mecanicista. Como exemplo, não haverá mais o conteúdo “História do Brasil”. Agora, serão apenas “disciplinas aplicadas” e “habilidades”. Trocando em miúdos, buscará aplicar os conhecimentos de cada área em alguma utilidade para o mercado de trabalho , tornará o conhecimento de nossa própria história uma mera opção para um adolescente de 14 anos e promoverá ainda mais a escola como instrumento de ascensão social pessoal, e não um instrumento estratégico para o Estado e para a Revolução Brasileira, cuja utilidade se mostra na formação da consciência transformadora que Paulo Freire tanto conceituou e ainda não é seguido sequer pelo atual modelo educacional para superação da espoliação imperialista e do entreguismo científico e tecnológico. As próprias figuras que ascendem socialmente na contradição de sua origem humilde propagam a ilusão de que, com o ensino tal qual se apresenta, é possível chegar no grau de riqueza em que chegaram. Assim, o pouco interesse já norteado pelo atual modelo de ensino tenderá a se agravar com a MP.
A Língua Estrangeira Espanhol, por outro lado, é uma disciplina que deixará de ser obrigatória durante toda a formação do estudante na reforma do ensino médio, sendo apenas a Língua Estrangeira Inglês obrigatória a partir do Ensino Fundamental II. Apesar de um parágrafo constitucional que prevê a formação de uma comunidade latino-americana de nações, o Espanhol, que teve sua obrigatoriedade institucionalizada no ensino público há pouco, será, gradualmente, um privilégio novamente destinado ao ensino privado. A crise, que é um projeto, estimula a tirar ainda mais de cena a América Latina, já em quase nada abordada durante o ensino escolar, desmobilizando o Brasil na inacabada causa bolivariana da Pátria Grande, que desafia a hegemonia dos Estados Unidos e do capitalismo global diante da ameaça de sua orientação para o desenvolvimento interno e para a integração cultural de suas nações. Já é possível enxergar mais alguns resultados do novo ensino médio em escolas que já o implementaram. No Paraná, por exemplo, professores de Filosofia, Sociologia, Espanhol e Artes já começaram a ser demitidos, e suas áreas do conhecimento sofreram reduções de carga horária.
Quanto ao que se pode vislumbrar para o futuro são as desigualdade estrutural e regional ainda mais gritantes de municípios, bairros e escolas, na medida em que uma escola não será obrigada a ofertar todas as 5 novas grandes áreas do conhecimento, desnudando a falta de estrutura, de professores e de mobilidade urbana num país onde mais de 3 mil municípios só têm 1 escola em funcionamento. Além disso, em termos de escolas, segundo o Censo Escolar 2020, 35,8 mil escolas sequer têm coleta d e esgoto, 3,2% das escolas públicas não tinham banheiros e mais de 30 mil não possuíam internet de banda larga. Ou seja, os recursos não as mantêm para as necessidades básicas de utilização de seus espaços, quanto mais para abarcar a infraestrutura necessária para o Novo Ensino Médio. Outras disciplinas, como Empreendedorismo, que entrarão em substituição ao ensino da História ou da Química, não promoverão apenas um ensino tecnocrático, de concepção reprodutora das condições materiais dispostas em nossa realidade e voltado para o assentamento da dominação de classes e da ordem imperialista, mas tenderá a diminuir ainda mais o interesse por cursos das áreas mais específicas, como Física e Geografia, além da própria licenciatura, que perderá espaço para o novo currículo escolar tanto em termos de profissionais em atuação quanto na formação de novos professores, haja visto que a reforma não prevê, como no Empreendedorismo, uma eletiva ou um itinerário formativo orientado para os aspirantes ao magistrado, além de, no exemplo da figura do empreendedor, apagar qualquer rastro de vínculo empregatício, direitos trabalhistas e organização sindical pela ilusão de um “trabalhador dono de si próprio”.
Portanto, o novo ensino médio é a antítese da formação do intelectual público, que forma o programador que não nutre curiosidade pela leitura ou o engenheiro agrícola que lucra o agronegócio sobre sua ignorância quanto à questão da terra. A reforma do ensino médio surge como medida para fragmentar, condensar e apagar ainda mais os problemas reais do contexto brasileiro, mostrando-se funcional à lógica de reprodução de nossa dependência e de nosso subdesenvolvimento. Ainda que sua implementação aprofunde o abismo de classes no que tange ao acesso, à qualidade e à manutenção do ensino, a educação brasileira sempre manteve sua essencial função de banalização do capitalismo dependente rentístico e do imperialismo atuante na nossa dependência econômica e cultural, sendo necessário um ensino médio diferente de tudo que se apresenta no liberalismo tanto de esquerda quanto no de direita, além da abolição do principal fator de expulsão da classe trabalhadora dos muros da universidade: o vestibular. É precisamente a ausência da crítica sobre a educação privada e pública que fomenta os discursos conspiratórios de Bolsonaro quanto à “ideologia de gênero”, por exemplo, haja visto que há um vão em termos de crítica ao ensino básico brasileiro. Se hoje o petismo se mostra crítico à reforma, desconhece ele próprio a trajetória parlamentar de seus próprios políticos profissionais, além da guerra declarada ter partido do s interesses vampirescos que nasceram de suas alianças. Um novo ensino médio só se mostrará novo quando estiver, de fato, compromissado em dar as rédeas do destino de nossa nação às mãos do povo brasileiro, para que ele conduza os rumos sem que nenhum acadêmico alheio à nossa realidade dê pitacos quantos aos nossos rumos orientados para a elaboração de um escopo teórico autêntico no que concerne à nossa própria realidade.
André Ferreira
Militante da Juventude pela Revolução Brasileira