Na aparência, as contradições do governo Lula III estão à mostra. Na disputa pelo poder, não há disputa, senão uma hegemonia bem consolidada da classe dominante. No centro das decisões, uma galopante direita, comandada pelas mega-empresas, bancos e pelas potências imperialistas, torna a essência do governo não uma contradição, mas a homogeneidade de um poder central rentista. O governo Lula cada dia está mais à direita, com a cumplicidade da cúpula de bases sociais como a UNE e os DCEs. As entidades estudantis não demonstram ser capazes de responder à altura as investidas de Haddad ou os cortes de Camilo. No seu lugar, discussões menores, que não orientam a necessária radicalidade das pautas estudantis na reformulação de um outro ensino público, tampouco parecem ter capacidade de dar resposta à altura da ofensiva lulista contra a agenda da Universidade Necessária.
Nesse contexto, se inserem as lutas estudantis, cujas contradições internas se afloram nas últimas semanas de tal forma que nem antes conseguiram expressar com tanta dedicação sua impotência política e formativa. Os cortes de R$332 milhões não mobilizaram mais do que uma reação imediatista, cuja expressão máxima seja a incapacidade da luta contínua a partir de uma agenda propositiva, que coloque contra a parede os empresários que orquestram a sinfonia com o Ministério da Educação (MEC). Perguntada sobre as recentes matérias denunciando as funções estratégicas de Jorge Paulo Lehmann no MEC no programa Faixa Livre do dia 26/09/2023, a presidente da UNE, Manuella Mirella, por consciência ingênua ou, o mais provável, cumplicidade, desviou do tema e terceirizou a responsabilidade para a tal “frente ampla”, na qual ela faz parte. Ora, existe prova maior de servilismo e ensaio à política parlamentar?
Não existe, sobretudo com fatos que vêm ocorrendo em casos como da UERJ, em que o DCE é um prolongamento do gabinete do petista Ricardo Lodi e um silêncio a respeito das transações suspeitas para seus membros. É mais do que sabido que a UNE e as entidades que a compõem não costumam legitimar a reprodução de suas posições somente mediante a desmobilização estudantil, mas se utilizam de mecanismos até ilegais para compra de votos e censura de forças opostas. Na real, a UNE é cúmplice da decomposição da universidade e do ensino públicos desde seus mecanismos de poder às bandeiras políticas, que rastejam sobre a digestão moral da pobreza via orgulho de FIES e ProUni. É verdadeiramente escandaloso que realmente haja consciência ingênua de que a universidade, com Lula, finalmente se “democratizou”, com 12,8% dos jovens de 18 a 24 anos matriculados num curso universitário e sendo 92% de universidades privadas (dados do último CONEG). Não basta a miséria no número de matriculados, ainda são dispostos como reféns de um ensino ainda mais degradante e condensado que se aproveita da proletarização de sua considerável fatia.
Somente num cenário perpetrado pela esquerda petucana, que obstrui o afloramento do pensamento crítico a respeito das universidades, dos currículos e do mercado de trabalho, é que podem prevalecer quinquilharias ideológicas e identitárias como uma luta pequeno-burguesa pela nomeação de uma ministra negra no STF. Reféns da indústria do Netflix e da superexploração avançada do trabalho no cenário de precarização e (des)emprego juvenil é que uma entidade pode se permitir liderar uma bandeira tão esdrúxula a ponto de apostar suas convicções de que uma mulher negra no STF vai alterar seu conteúdo de classe. O identitarismo é, precisamente, uma das armas mais potentes de despolitização das bases estudantis, porque não deixa o poder ser questionado nem no interior de suas entidades, nem na ordem burguesa. Pelo contrário, reafirma a exploração capitalista, cooptando as bandeiras raciais e de gênero tentando trazer a ela um rosto humano, até que se transforme num imenso cemitério. O STF em nada representa as demandas estudantis, e sua natureza de representação do poder da classe dominante é intocado até que seja questionado enquanto instituição burguesa.
Na esteira da espetacularização das lutas estudantis, a UNE ainda comemora a chegada de Oxford ao Rio de Janeiro, enxergando como “vitória” mais uma frente de sequestro de talentos e, indiretamente, uma justificativa que se dá pela Direita de diminuir ainda mais o investimento na universidade pública. Os cachorros do imperialismo argumentam que se trata de uma “renomada” instituição, ao mesmo tempo que se esforçam, contraditório e fracamente, de atribuir alguma valorização ao que se produz na universidade pública. Não enxergam a disputa pela “Educação”, tanto que a atribuem como única e saem em defesa desta, de forma abstrata, removendo seu conteúdo de classes e a dinâmica do valor por trás de seus talentos e projetos de pesquisa que movimenta o interesse de oligopólios privados e universidades dos países centrais. Essa abstração envolve, não bastando, o resgate, de forma oportunista, no dia do aniversário de 70 anos da Petrobrás, da luta do “Petróleo é Nosso“, que em nada se assemelha com a extensão do petucanismo dentre as entidades estudantis, que compactuam com um governo diretamente responsável pelo entreguismo de seus ativos financeiros e da cadeia de produção da Petrobrás, a exemplo da venda da Libra e a Lei de Partilhas Dilma/Serra. A comemoração de seus lucros e a reprodução do bordão “o Brasil voltou” revelam sua mais profunda coerência na expressão da ignorância sobre os temas centrais que regem o Estado e a Economia no Brasil. Para a direção da UNE nada deve mudar, e tudo deve permanecer como está.
Na outra ponta, a limitada “oposição” tenta mesmo buscar algum contraponto às direções da UNE, reproduzindo boa parte de sua práxis política. O exemplo das eleições do DCE da UFRJ mostra, fundamentalmente, como as eleições geraram um caráter quase compulsório de participação dos estudantes, e somente pelo voto. A pedagogia política das eleições deste ano apresentou o real caráter dessas forças ditas de “oposição”: a desmobilização estudantil pela a cega fé de que existe mesmo algo concreto para além de seus discursos repetitivos e sua prática política quase inoperante. Não à toa, os números das eleições do DCE mostram que a participação dos estudantes foi uma das piores na história recente: no ano passado, foram pouco mais de 10 mil votantes em uma universidade com quase cerca de 70 mil estudantes. Neste ano, houve uma queda de 40% no número de votos totais, de acordo com uma das chapas derrotadas. Embora nos últimos anos tenham levantado bandeiras como o fim do vestibular, parece que a consciência ingênua destes não compreende nem o tamanho e nem os caminhos de superação da atual conjuntura, incapazes de compor uma ampla oposição ao governo Lula e que se conflua com sindicatos e outras bases sociais. Sem a presença estudantil, inclusive com importante função formativa, ocorrerão casos como da greve do Sindicato dos Profissionais de Educação do Estado do RJ (SEPE-RJ) em que os estudantes ignoraram de forma olímpica suas demandas e não foram capazes de enxergar a oportunidade de atuar juntamente com o sindicato. Pelo contrário, permanecem na práxis política rebaixada de disputar cargos de entidades repletas de burocratas, auxiliando a UNE na difusão da reprodução parlamentar da política e no sacrifício de suas bandeiras em prol da ilusão de que a UNE ainda seja um espaço de politização.
A JRB se posiciona na formulação de uma outra oposição, que não se sacrifique exclusivamente pela disputa de entidades, e sim que tenha potencial de formação de seus quadros numa práxis política revolucionária que diagnostique e atue sobre os problemas do subdesenvolvimento e da dependência. É mais do que evidente para nós que a UNE não é uma entidade que representa a possibilidade da formação de uma consciência revolucionária em contrapartida à consciência ingênua. Suas bandeiras, bem como sua prática política, permanecem sendo propagandistas da ordem vigente, não enxergando luta política para além dos limites circunscritos à democracia liberal.
André Oliveira
Estudante Militante da JRB – Rio de Janeiro