Guerra de classes no Rio de Janeiro: um programa revolucionário para a disputa da prefeitura

   O Brasil vive hoje um acirramento da guerra de classes.

 O governo Bolsonaro vem atuando com eficiência para intensificar a superexploração da força de trabalho do nosso povo e aprofundar o subdesenvolvimento e a dependência do nosso país ante as potências imperialistas. Em um contexto como este, as disputas políticas regionais se encontram radicalmente condicionadas pela conjuntura nacional e internacional. É por isso que nas eleições municipais deste ano, qualquer candidato de esquerda que prometa atacar a raiz dos problemas da sua cidade, deve ter consciência de que não poderá fazê-lo senão por intermédio do confronto com os grandes problemas da nação.

   Na cidade do Rio de Janeiro, além disso, as eleições municipais têm por si só uma importância política nacional. O Rio é a segunda maior metrópole do Brasil. Suas contradições internas, longe de serem peculiaridades locais, se confundem com os antagonismos centrais que dividem toda a sociedade brasileira. Sua elite local é uma burguesia cosmopolita. O que faz da prefeitura do Rio e de sua câmara de vereadores um dos mais cotados balcões de negócios do Brasil.

   Do longo período de conciliação de classes promovida pelos governos petucanos, emergiu sob a hegemonia do capital financeiro uma sólida coesão burguesa que, de agora em diante, não mais necessita de petistas e tucanos, ou da conciliação de classes, para seguir espoliando a classe trabalhadora. A ofensiva feroz que é lançada contra o povo brasileiro a partir da destituição de Dilma instaura uma nova fase da guerra de classes no Brasil. Inicia-se então um período de radicalidade na política. Cientes da corrupção generalizada nos aparelhos do Estado, e estrangulados pela crescente crise econômica, os trabalhadores não tardam a compreender que a principal causa dos seus problemas reside na totalidade do sistema, e que seus inimigos são precisamente aqueles que defendem “tudo o que está aí”. A transitória popularidade do bolsonarismo é explicada, em última instância, pela adesão de grande parte da classe trabalhadora ao único discurso antissistema que até então lhe fora apresentado. No campo da esquerda, abre-se uma lacuna a ser preenchida por uma vanguarda revolucionária. É neste momento que, enquanto a esquerda liberal insiste na “defesa das instituições democráticas” e na “resistência ao fascismo”, os marxistas voltam a colocar na ordem do dia a Revolução Brasileira.

   As eleições representam um importante momento das lutas de classes. É nesse momento que os revolucionários têm acesso às melhores oportunidades para difundir o seu programa às massas trabalhadoras, e acesso aos melhores meios para medir o crescimento e a força política do seu partido. Diante disso, em que consiste uma candidatura pela Revolução Brasileira nas eleições para a prefeitura do Rio neste ano? Em primeiro lugar, consiste na capacidade de compreender como as lutas de classes se manifestam nas disputas partidárias do município; e, em segundo lugar, em posse dessa compreensão, na capacidade de apresentar um programa revolucionário às massas trabalhadoras. É neste sentido que o presente documento pretende (1) realizar uma análise das condições históricas que resultaram na atual crise que assola o Brasil e, particularmente, a cidade do Rio de Janeiro; e (2) apresentar ao PSOL e aos trabalhadores cariocas um programa político capaz de fazer avançar a Revolução Brasileira.

 

 

As origens da atual crise do Rio de Janeiro

   A cidade do Rio de Janeiro, o estado do Rio de Janeiro e o Brasil, passam por uma grave crise que se iniciou o fim do ciclo econômico que vai de 2003 a 2013 [1], quando os preços de produtos primários (como petróleo, minerais, e alimentos) subiram de forma constante graças à demanda de economias emergentes como a China e a Índia. O quadro foi comum à toda a América Latina. Com uma intensa entrada de divisas, e com a ampliação da produção e exportação de produtos primários em maior grau que o observado em décadas anteriores, este período foi marcado por uma maior especialização produtiva orientada pela demanda externa.

   Nesse cenário, o caso brasileiro se mostrou um dos mais emblemáticos. O país, com sua ampla e diversificada matriz produtiva, esteve no rol das nações mais diretamente conectadas à dinâmica internacional, profundamente marcada pela expansão da economia chinesa, que determinou a alta observada nos preços (e volume físico produzido mundialmente) dos bens agrícolas e minerais. No território nacional, os rebatimentos foram claros; todas as regiões do país foram de alguma forma afetadas por essa dinâmica. Da agropecuária do Centro-Oeste à extração de petróleo e gás no litoral do Sudeste, as atividades que comandaram o desempenho nacional durante o período tiveram sua trajetória determinada pelo vigor da demanda internacional por produtos básicos pela China. O mesmo efeito de aumento dos preços se fez sentir no petróleo.

   O estado do Rio de Janeiro produz 76% do petróleo nacional e 56% do gás [2]. Este período de bonança acabou criando uma dependência do estado pelos resultados do setor petrolífero, muito embora ele não tenha controle sobre os preços. Nesta época, entre os mais importantes produtos básicos, o petróleo se destacou em termos de recordes no nível dos seus preços. Entretanto, de 2011 para 2016, o petróleo teve uma queda no preço de aproximadamente 120 dólares americanos para aproximadamente 40 dólares americanos. Ou seja, uma perda de aproximadamente 67% [3]; sendo que em 2014 a indústria extrativa da qual o petróleo faz parte representava 15% do PIB do estado [4]. A queda do preço do petróleo rebateu inevitavelmente nas finanças da prefeitura do Rio e de todos os cariocas.

   Mas há também fatores dinâmicos internos que contribuíram para agravar o quadro de crise. O ajuste fiscal produzido pela presidenta Dilma, e a drástica redução dos investimentos da Petrobrás por conta das investigações da operação Lava-jato, afetaram a região metropolitana como um todo e, no caso da cidade do Rio de Janeiro, impactaram profundamente as empresas prestadoras de serviço da Petrobrás, notadamente Itaboraí, por ser a sede do COMPERJ. Além disso, a regulamentação que permitiu que fossem compradas no exterior as plataformas petrolíferas deixou os estaleiros do estado sem encomendas, o que afetou sobremaneira Niterói, Angra dos Reis e a cidade do Rio de Janeiro.

   Por fim, não devemos esquecer que o funcionamento normal do Estado em uma sociedade capitalista é servir como balcão de negócios da burguesia. É o que vemos, por exemplo, com as concessões de escandalosos benefícios fiscais [5] que, entre 2008 e 2013, foram de aproximadamente 139 bilhões de reais. Em 2015, quando as contas fluminenses já ruíam, o estado ofereceu aos capitalistas incentivos na ordem de R$ 36 bilhões, valor que equivalia a 71,6% da receita corrente líquida do Rio, de aproximadamente R$ 50,3 bilhões [6]. É o que vemos também nas parcerias pública-privadas (PPP), nos contratos milionários sem licitação, e nos escândalos de desvio de verba pública. Todos esses fatores contribuíram para uma crise cuja gravidade pode ser medida pelo crescimento do desemprego. Em 2015, a taxa de desemprego do estado do Rio de Janeiro era de 8,5%; já no segundo trimestre de 2019, fechamos com uma taxa de 15,1%, ou seja, um aumento de quase 80% de trabalhadores desempregados neste período.

   Entretanto, neste quadro mais geral não está presente a forma específica como a burguesia brasileira e seus burocratas organizaram a nação para chegarmos a este momento. O processo determinante é o rentismo, e tem início na presidência de Collor.

 

 

A república rentista e a decadência da burguesia industrial

O Brasil hoje é uma república rentista.
O início desse processo remonta à eleição de Collor de Melo. Sintetizado na infame peça publicitária que o apresentava como o “caçador de marajás”, o discurso do combate à corrupção e aos “privilégios” do topo do serviço público encontrou suficiente apoio em meio às camadas populares. Por sua vez, ao apoiar o candidato que lhes prometia expor a indústria nacional à concorrência estrangeira, a burguesia nacional evidenciou mais uma vez a sua vocação para ser uma burguesia dominada. O argumento de Collor era de que a proteção à indústria brasileira havia levado os empresários a se descuidarem da qualidade e do preço do produto nacional, chegando a comparar os carros brasileiros a carroças. Mas diante de concorrentes que produziam em escala global e com sedes em países com ciência e tecnologia de ponta, o reflexo da abertura da economia do país não podia ser outro senão o fechamento de empresas nacionais e a venda das restantes para grandes concorrentes estrangeiras.

   O fator econômico determinante nesse período foi a inflação estratosférica, que só iria encontrar solução com o Plano Real (1994). O sucesso do controle inflacionário deveu-se em larga medida à elevadíssima taxa de juros e ao superendividamento estatal. Em perspectiva, podemos observar com certa clareza que o desenvolvimento capitalista assumiu um caráter rentístico inédito. Antes de 1994, as formas de acumulação de caráter fictício existiam e eram bastante suculentas. O sistema bancário, por exemplo, cresceu com elevadas taxas de inflação (esta modalidade bastante eficaz de extrair uma massa de mais valia dos trabalhadores). Agora, no entanto, podemos ver que a modalidade de estabilização inflacionária pode também representar um meio infalível de extrair uma quota adicional de exploração dos trabalhadores produtivos. Enfim, os banqueiros aprenderam a acumular riqueza e poder nos tempos de inflação elevada e comandar a orquestra nas épocas de baixa inflação. Conclusão: a superexploração da força de trabalho é a norma em qualquer conjuntura.

   A partir de então, a dívida estatal – externa e, principalmente, a interna – passa a ser o meio mais eficiente da burguesia acumular riqueza. A existência de mecanismos de reprodução da dívida garantiu, ademais, confortável coesão entre as distintas frações do capital. Por sua vez, os governos tucanos e petistas conseguiram por um tempo assegurar as posições subalternas para as classes populares via programas sociais ou ganhos passageiros aos fundos de pensão. Era o melhor dos mundos aos olhos do PT: a burguesia enriquecendo como nunca, e a classe trabalhadora podendo comer três refeições ao dia. Contudo, como qualquer um pode ver, a festa acabou. O rentismo impôs seu limite de maneira implacável à antiga conciliação de classes iniciada em 1994 e reforçada em 2003 com a vitória de Lula nas eleições presidenciais. Disso temos que o desenvolvimento capitalista brasileiro hoje favorece a acumulação com a expansão da renda da terra, a superexploração da força de trabalho, os super lucros comerciais e todas as formas de rentismo possível. Este foi o processo que levou o Brasil, um país com um parque industrial complexo, onde a indústria chegou a representar 25% do Produto Interno Bruto (PIB), para uma flutuação na casa de 10%.

   Esse processo que ambiguamente é chamado de “desindustrialização” não pode ser entendido como o refreamento da industrialização; pelo contrário, como podemos ver na evolução da agroindústria e a na crescente ampliação do setor de serviços, a lógica industrial segue avançado por todos os setores da economia nacional. O que está deixando existir no Brasil é sim uma burguesia industrial com capacidade de competir com empresas multinacionais. Aquela burguesia procurada por Ciro Gomes e Fernando Haddad, capaz liderar um projeto nacional-desenvolvimentista de país, capaz de ajudar o Brasil a superar a sua condição de subdesenvolvimento e dependência, é uma burguesia que já não existe mais, se é que algum dia existiu. O próprio ser social da burguesia passa por uma metamorfose. Qualquer resquício de uma possível vocação para a indústria é suplantado pelo conforto parasitário da acumulação rentística. Essa transformação da burguesia industrial é inocultável: a FIESP tem hoje como presidente um sujeito sem indústria.

   Assim, a reprodução do capital fica cada vez mais relacionada a rendas, dentre as quais se destacam as decorrentes da taxa paga nos títulos da dívida interna. Mesmo quando a arrecadação aumentava e a necessidade de colocação de títulos diminuía, as taxas se mantiveram muito acima daquelas cobradas por países com economias do porte da nossa ou maiores. Como esta taxa é alta, ela “contamina” as taxas em todos os negócios praticados no país. O mais gritante exemplo foi, e continuam sendo, as taxas de juros cobradas nos cartões de crédito e no cheque especial. Para pagar os títulos que iam vencendo, o Tesouro Nacional punha novos papéis no mercado. O resultado foi o explosivo aumento do endividamento interno que nos trouxe à insustentável situação de gastar com a dívida quase a metade de nosso orçamento. Sobre isso, devemos aqui observar que dentro da parte de juros e amortizações, uma parte é de rolagem da dívida, ou seja, troca de papéis velhos por novos sem envolver o pagamento dos títulos. Este ponto é apresentado por vários economistas como a prova de que a dívida interna não tem a dramaticidade que os camaradas da Auditoria Cidadã da Dívida apresentam. No entanto, este raciocínio não leva em conta que mesmo os títulos apenas trocados por novos necessariamente terão taxas maiores, caso contrário o investidor há de preferir receber o dinheiro; o que, por outro lado, aos olhos do devedor, torna-se uma armadilha para o futuro. Qualquer cidadão que pagou o valor mínimo no cartão de crédito sabe o que este mecanismo pode fazer.

 

Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida
Distribuição do orçamento federal em 2018 (% e R$)
Orçamento federal em 2018 = R$ 2,621 trilhões

 

   Os reflexos da dívida pública hoje em nossas vidas estão relacionados à luta da burguesia rentista pela manutenção dos seus lucros. Para garantir os pagamentos da dívida interna foram promulgadas a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e, mais adiante, a Emenda Constitucional (EC) 95 [7]. A LRF, de 2000, foi a lei que estabeleceu limites para os gastos do Estado. Vendida pela imprensa burguesa como uma medida contra maus administradores públicos, na verdade ela cumpriu o papel de garantir parcelas cada vez maiores do orçamento público para o pagamento da dívida interna. Pois enquanto estabeleceu limites para gastos com pessoal e investimento, os gastos financeiros, onde está a dívida pública, não foram limitados. Já a Emenda Constitucional (EC) 95 , de 2016, que congelou os gastos públicos por 20 anos, foi fruto do receio da burguesia de que a redução da atividade econômica pudesse provocar uma redução da arrecadação de impostos e taxas e, consequentemente, da capacidade de pagamento dos títulos. Uma vez promulgada a EC 95, os gastos congelados reforçaram a garantia de que uma grande parte do orçamento público fosse escoada para os detentores de títulos da dívida pública. Apenas para se ter uma ideia do que isso significa, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a saúde pode perder até R$ 743 bilhões neste período; já a Educação pode ter perdas no Orçamento de até R$ 25,5 bilhões por ano, segundo estudo técnico da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados [8] . Dessa forma, o mecanismo da dívida pública garante aumento da riqueza da burguesia rentista mesmo na crise econômica. Somente em 2018, ano de desemprego acelerado e crise econômica como, o lucro dos bancos se ampliou em 17 %, sendo o mais alto desde 1994 [9].

   Um exemplo dessa transformação da burguesia industrial em burguesia rentista na cidade do Rio de Janeiro é a família Monteiro Aranha. Uma das maiores fortunas da cidade, a família chegou a possuir 20% da Volkswagen do Brasil e a principal fábrica de vidro da cidade (CISPER), localizada no bairro do Jacarezinho. Em 1982, vendeu sua posição acionária na Volkswagen para grupos árabes, enquanto a fábrica passou para o grupo norte-americano Owens Illinos13; e, em 2011, vendeu a CISPER. O dinheiro da venda das ações da Volkswagen foi utilizado em 1997 para entrarem no banco Inter-Atlântico, possuindo 30,8% deste que, em 2000, foi incorporado pelo Bradesco. Esta família, apesar de ter perdido uma participação importante em fábricas de automóveis e de vidro, encontrou como tantas outras no rentismo parasitário um modelo mais eficiente de acumulação de capital. Se, por um lado, passaram a se beneficiar largamente do pagamento dos juros e amortizações da dívida pública, por outro lado, uma parte importante dos recursos arrecadados com a venda da CISPER foram voltados para renda da terra, através da Monteiro Aranha Participações Imobiliárias (Mapisa), por meio da compra de terras urbanas, por exemplo, na região do Grande Méier. Somente no entorno do Norte Shopping, o grupo tem construídos 6 torres de 16 andares e, em construção, mais 12 torres do mesmo tamanho.

 

Exemplo de concentração de terras no Méier (grupo Monteiro Aranha)

 

   Os reflexos destas estratégias de reprodução ampliada do capital a partir da renda da terra levaram a que no, Rio de Janeiro, em 1991, houvesse cerca de 245.000 moradias desocupadas [10], esperando valorização em detrimento dos desabrigados. Além disso, há um estoque de terras não construída cumprindo a mesma função. Os dados do IplanRio de maio de 2019 nos mostram que a área total licenciada continua retraindo desde 2013, com uma queda de aproximadamente 17% em 2015 com relação ao ano anterior. Já o número total de edificações licenciadas ficou 19% menor no mesmo período. Quanto às unidades licenciadas, foram elas que mais sofreram redução em relação a 2014, contabilizada em 35% [11]. O resultado de tal estoque não posto em circulação são os preços dos aluguéis na cidade do Rio de Janeiro. Em dezembro de 2019 o preço do aluguel de um apto. de 50 m2 em Copacabana é, em torno de, 2.200 reais e um apto do mesmo tamanho em Roma custa, em média, 500 euros, equivalentes aproximadamente a 2.200 reais. Ou seja, ganhamos em reais e pagamos aluguéis como se vivêssemos com euros.

   O rentismo e a concentração de riqueza decretam o fim do ciclo que se iniciou em 2002. De uma governabilidade baseada na ideologia da conciliação e paz social restou apenas o profundo descontentamento e a radicalidade da guerra de classes. Chega ao fim a longa aliança entre todos os partidos da ordem, desde o MDB de Eduardo Paes e Cabral, ao DEM de Rodrigo Maia passando pelo PCdoB de Jandira Feghali até o PT de Lula, Dilma e Benedita da Silva. Diante do assalto aos recursos públicos durante todos estes anos, a esquerda liberal foi copartícipe, fato mais do que evidenciado quando o candidato do PT, Fernando Haddad, assumiu publicamente o compromisso de, caso eleito, continuar pagando a dívida que, de interna, virou eterna. O medo de desagradar à burguesia rentista, principalmente aos bancos, levou a esquerda à posição covarde que assistimos na campanha. Até mesmo o candidato a presidente pelo PSOL, Guilherme Boulos, passou por sua campanha sem centrar fogo neste ponto.

   Uma das características mais importantes da crise atual é a força e consistência da coesão burguesa que orienta os assuntos de Estado e da economia. A administração petucana do Plano Real é resultado e premissa da sólida aliança entre todas as frações de classe – capital comercial, agrário, industrial e financeiro – no aprofundamento da dependência e subdesenvolvimento. Isso significa que as contradições sociais que ocupam hoje o palco da cena política têm, no que concerne aos trabalhadores, a estrita função de ocultar o pano de fundo da íntima coesão entre as diferentes frações burguesas no que toca a sua agenda ultraliberal comum. Vimos nas campanhas das últimas eleições como a grande burguesia, que inicialmente apoiava Alckmin, com a indicação do ultraliberal Paulo Guedes como ministro da Fazenda, passou rapidamente para o lado de Bolsonaro a fim de garantir uma política de perdas de direitos dos trabalhadores e de venda do patrimônio nacional. Por isso, neste contexto, é preciso considerar o governo Bolsonaro como parte da contrarrevolução preventiva que as distintas frações de classe não vacilaram em acionar para manter o domínio burguês.

 

 A coesão burguesa no poder do Rio de Janeiro

   Nas sociedades capitalistas, a concorrência entre empresas não se dá apenas no mercado, mas ocorre também na disputa pelo poder político. De maneira geral, as diferentes frações da burguesia sempre competem pelo Estado a fim de adiantar os seus negócios particulares. Não seria incorreto, portanto, dizer que a prefeitura do Rio de Janeiro e a sua câmara de vereadores tem hoje apenas duas funções: espoliar a classe trabalhadora, e dividir o espólio. Devidamente reprimidos e controlados os trabalhadores, o Estado está livre para exercer a sua função de balcão de negócios da burguesia. O quadro de deterioração do Rio de Janeiro no século XXI decorre precisamente das diversas formas como o capital se apropria do poder do Estado. É instrutivo reparar na combinação de atividades legais (privatizações, parcerias público-privadas, isenções fiscais) e ilegais (contratos sem licitação, obras superfaturadas, e os mais variados esquemas de corrupção) que o Estado burguês usa para enriquecer os capitalistas.

   Um caso emblemático é a obsessão dos prefeitos cariocas, principalmente Cesar Maia e Eduardo Paes, em concentrar todos os equipamentos esportivos e culturais na Barra da Tijuca. Aproximadamente 82% do território de Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes, Joá e parte de Jacarepaguá, pertencem a 5 donos: Tjong Aiong Oei, Carvalho Hosken, Irmãos Ramos, as empresas Drault Ernani e Emp. de Desenv. e Engenharia. Esses capitalistas são também grandes doadores de campanha. Na campanha para prefeito em 1993, utilizando dados disponíveis no TSE, César Maia teve aproximadamente 10% de sua campanha financiada por Carvalho Hosken (que tem 27% das terras do bairro) e pela Brascan, dona do maior shopping da Barra da Tijuca. Neste ano, o setor de construção civil como doador só perdeu para os bancos e para o partido do prefeito. As relações do prefeito César Maia com os proprietários de terra na Barra da Tijuca ficam explícitas também na construção da Linha Amarela, que liga a Ilha do Fundão ao fundo do bairro de Jacarepaguá, garantindo assim acessibilidade ao fundo da Barra da Tijuca. Assim, a melhoria que a Prefeitura poderia cobrar dos proprietários de imóveis nesta região, foi realizada pela própria Prefeitura em favor desses mesmos proprietários.

   A concentração de terras em poucas mãos nos fornece a razão pela qual também os equipamentos criados para os Jogos Olímpicos foram praticamente todos concentrados na Barra da Tijuca, quando a boa técnica recomenda posicioná-los nas áreas degradadas da cidade, como o próprio Cesar Maia já havia feito com a criação do estádio Nílton Santos no empobrecido bairro do Engenho de Dentro, que, a partir desta obra, sofre um vigoroso processo de revitalização. O ciclo de obras para os megaeventos que tem à frente da prefeitura Eduardo Paes, coincide e é fruto do período de bonança na economia nacional da já mencionada alta dos produtos agrícolas e minerais. Este é o auge da aliança entre o PMDB e o PT na gestão da cidade. Tivemos geração de empregos pelas obras voltadas para os megaeventos, no entanto, muitas delas eram absolutamente desnecessárias. De modo que o verdadeiro “legado olímpico” foi a total inutilidade da grande maioria dos equipamentos olímpicos. A política implantada pelo PT no governo federal de trazer para sua base de apoio o PMDB, significou na cidade do Rio de Janeiro um grande volume de recursos para os megaeventos (Pan-Americano, Copa do Mundo e Olimpíadas). Após os Jogos Olímpicos começam a surgir denúncias de superfaturamento nas obras e a comprovada má qualidade de algumas obras, cujo caso mais emblemático foi o desabamento da ciclovia Tim Maia, com dois mortos [12]. Outro efeito perverso dos megaeventos foi a utilização de práticas de remoções de 80 mil pessoas para a execução de obra, a rigor, desnecessárias. Como exemplo temos o caso dos 900 removidos em Manguinhos para a elevação da via-férrea que nada de concreto trouxe para os moradores locais.

 

(Fonte: RioOnWatch: relato das favelas cariocas. Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=5333)

 

   Há ainda outras formas que assume a competição entre capitalistas pelos privilégios concedidos pelo Estado. Essa competição se torna tanto mais grave quanto mais ela se apropria dos serviços públicos básicos. A crise que hoje devasta a cidade do Rio só pode ser compreendida se começarmos a enxergar nas leis e decretos promulgados, nos contratos celebrados entre Estado e empresa, e nos acordos e alianças parlamentares, os lucrativos negócios que os impulsionaram.

 

A herança das últimas prefeituras do Rio

   Em 2009, Eduardo Paes recebe a prefeitura com um saldo positivo de 757 milhões de reais [13]. No primeiro dia de 2017, ao passar o cargo adiante, deixou um saldo negativo de quase 3 bilhões e duzentos milhões de reais [14], o que equivale a quase 13% da arrecadação anual. Ao contrário do que dizem os liberais, o responsável por este comportamento não foi o aumento do número de empregados na prefeitura, nem aumentos salariais. Para estados e municípios, o limite para gastos com pessoal determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscal é de 60% da Receita Corrente Líquida (RCL), e na cidade do Rio de Janeiro, em 2016, era de menos de 48%, em 2018, aproximadamente 53% [15]. A principal causa da progressiva piora das contas do município foram as despesas com custeio, principalmente a partir de 2010, via “Transferências a Instituições Privadas”, com destaque para operações da rede de Clínicas de Família e Unidades de Pronto Atendimento, além de alguns hospitais e maternidades, cuja gestão é realizada pelas chamadas Organizações Sociais (OS).

   Organizações Sociais são associações privadas idealizadas para substituir órgãos e entidades da administração pública, que seriam extintos e teriam suas atividades “absorvidas” pela OS. Nas gestões de Paes e Crivella, as OS ganharam cada vez mais controle sobre a administração pública, especialmente nas áreas da saúde e da educação. Além de favorecer os negócios de empresas privadas, os contratos entre Prefeitura e OS transferem a responsabilidade sobre os serviços públicos a entidades privadas “sem fins lucrativos”. Ora, nem essas entidades privadas são, em última instância, isentas de fins lucrativos, e nem sua atuação corrobora a ladainha liberal de que a prestação dos serviços públicos ganha em eficiência quando esses serviços são privatizados.

   Na área da saúde, anunciada por Crivella como prioritária em sua gestão, nenhuma promessa foi cumprida até o final de 2017. As propostas no setor foram desde aumentar em 20% o número de leitos hospitalares à construção de uma maternidade e ampliação do orçamento destinado à saúde em 250 milhões de reais por ano. Na realidade, o orçamento executado na saúde diminuiu R$ 400 milhões de 2016, último ano da gestão Paes, até 2017, primeiro ano de Crivella na Prefeitura. Como resultado, em dezembro de 2019, na Zona Oeste, no Hospital Pedro II, os funcionários estavam com os salários de outubro e novembro atrasados e sem previsão também para o 13º salário. O Hospital Albert Schweitzer, em Realengo está com atendimento restrito; apenas metade dos médicos e enfermeiros está trabalhando devido a uma greve por conta de salários atrasados. Em três UPAs da Zona Oeste (Sepetiba, Paciência e Santa Cruz) administradas pela mesma Organização Social do hospital Pedro II (SPDM), o fornecimento de alimentação foi suspenso, e seus funcionários e pacientes dependem da solidariedade de vizinhos.

   Já na área da educação, a Eduardo Paes e Crivella exerceram continuamente a mesma política. Os dois basicamente seguiram ao pé da letra a cartilha imposta pelo governo federal, que, por sua vez, segue as determinações do Banco Mundial, inspiradas na política educacional estadunidense. Não há muita margem para manobra nesse campo: o imperialismo, via suas “agências multilaterais”, comandam as políticas educacionais no Brasil no sentido de preparar os brasileiros para serem superexplorados docilmente, e os grandes monopólios da educação se encarregam do resto, não sem receber vultuosos incentivos do Estado no processo. Há em diversos projetos na área da educação grande participação de Organizações Sociais (OS), além de institutos privados como Fundação Roberto Marinho e Ayrton Senna. Generosos repasses de dinheiro público vão para instituições privadas que produzem material didático e oferecem cursos de capacitação para os profissionais da educação, além de inúmeros projetos assistencialistas ofertados dentro das unidades escolares [16].

   Dentro desta lógica, o governo municipal, continua em consonância com o projeto do governo federal voltado para a educação, elaborado no governo PT, o “Compromisso Todos Pela Educação”, que implementou as diretrizes do governo federal e elaborou diversos outros programas que envolvem a parceria de grandes empresas e institutos privados como o Instituto Ayrton Senna, a Fundação Roberto Marinho, a Sangari Brasil, o Instituto Natura, entre outros. Ainda seguindo o projeto do governo federal, orientado pelas agências imperialistas e por grupos empresariais brasileiros, Eduardo Paes implementou uma política de responsabilização (accountability) [17] para a educação municipal, em que vincula o 14º salário ao rendimento dos alunos de cada unidade escolar, por meio da Prova Brasil. Um “prêmio” aos profissionais da educação que conseguirem atingir as metas estabelecidas pelo IDERIO, baseado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, do MEC.

   Vemos também que, fosse com Paes ou com Crivella, as parcerias público-privadas (PPP) se mantiveram como principal característica, garantindo a manutenção de repasses de grande parte do orçamento público a setores privados. A PPP Porto Maravilha, por exemplo, custou em 2018 mais de 513 milhões de reais e até agora nenhum carioca teve mudanças substanciais em sua vida apesar deste peso. O Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que em relação ao conjunto da cidade é apenas uma curiosa novidade, representou, em 2018, mais de 143 milhões de reais [18]. O caso mais escandaloso é da Concessionária Rio Mais que nos custou em 2018, quase 26 milhões de reais e os serviços que prestou a cidade foram: a construção do Parque Olímpico, das três Arenas Cariocas, do IBC (Centro Internacional de Transmissão), do MPC (Centro Principal de Mídia), do hotel com 404 quartos, da Via Olímpica e a infraestrutura subterrânea da área do Parque Olímpico Rio 2016. Em resumo ainda pagamos por algo que nada acrescentou a vida do carioca.

 

(Fonte: http://blogs.lance.com.br/laguna-olimpico/parque-olimpico-rio-interditado/)
‘Largado’ olímpico é a pior herança da Olimpíada Rio-2016

 

   Dentro deste quadro de dificuldades, o pastor prefeito ainda tentava resolver um problema político. O pedido protocolado na Câmara dos Vereadores de abertura de um processo de impeachment, agravaria ainda mais a situação das finanças. A jogada era a seguinte: a Prefeitura tentava receber uma dívida de ISS dos cartórios sem precisar passar por um longo processo judicial; de uma dívida superior a 600 milhões só receberia 150 milhões. Este valor seria acrescentado ao orçamento da usina de asfalto da cidade que, com este reforço, poderia consertar vias a pedido dos vereadores. Após um esforço de um grupo de vereadores, a jogada não deu certo. Dentro do mesmo quadro de “conchavos políticos”, Crivella isentou do IPTU, nos dois primeiros anos de sua administração, 426 templos religiosos. Para mascarar o crime contra as finanças do município ele não fez a inscrição dos imóveis no cadastro de imunidade do tributo, e descumpriu a Constituição não divulgar no portal de transparência da prefeitura a lista com as centenas de entidades beneficiadas. Além disso para garantir ampliação da sua base religiosa eleitoral, liberou nos dois primeiros anos de sua gestão quase 60% mais templos que a gestão anterior em seus últimos dois anos. Com a popularidade em queda no ano de 2018, tomou a medida populista de destruir a praça do pedágio na Linha Amarela, liberando da cobrança, o que só durou 24 horas.

   A demagogia que tem sido o tom de Crivella também se fez presente na sua relação com a cultura, no caso do enfrentamento da máfia formada por LIESA e Globo, que permitia ganhos privados com dinheiro doado pela Prefeitura às escolas de samba do grupo especial. Movido pelo seu repúdio à festa profana do carnaval, Crivella propôs acabar com a subvenção; no entanto, diante do repúdio da opinião pública, que saiu em defesa desta festa sagrada, o prefeito voltou atrás. Não obstante, anunciou o aumento dos gastos no desfile da Intendente Magalhães, uma área em que o carnaval não tem a TV como fonte de receitas; subvenção que, no entanto, até o final de dezembro de 2018, as escolas não haviam recebido. Neste caso também se enquadram as perseguições a manifestações culturais, umas por caráter racista, como as que recaíram sobre o samba na Pedra do Sal, outras por caráter homofóbico, como na proibição da exibição de livros na Bienal, e com a exposição “cartografias da diferença da arte brasileira”, de temática LGBT, e que foi proibida de ser instalada no MAR. Até hoje a promessa de campanha de aplicar 1% do orçamento em cultura não se concretizou.

   Vale notar que esses arrebatamentos reacionários de Crivella em alguns momentos lograram mobilizar o campo bolsonarista, que ainda possui forte adesão das camadas populares e médias no Rio de Janeiro. A luta do bolsonarismo contra a esquerda identitária é um forte fator de coesão que une as massas trabalhadoras aos setores mais reacionários da burguesia; e Crivella terá que encampar esta luta se quiser se reeleger na disputa deste ano. Seus atritos com a Rede Globo e com Eduardo Paes já o colocam neste caminho. Assim, no pleito eleitoral, tudo indica que Paes deverá se colocar como o candidato liberal, e Crivella como o candidato do bolsonarismo. Serão apresentados como a água e o vinho, como a luta entre o progresso e o atraso, ou entre os cidadãos de bem e os corruptos. Independente de qual antagonismo seja apresentado como central, os trabalhadores terão de enxergar a profunda concordância que perpassa subterraneamente a disputa entre o campo liberal e o campo bolsonarista e, mais especificamente, entre Crivella e Paes.

   A única diferença essencial entre a administração de Paes e de Crivella foram os negócios particulares por eles privilegiados. Paes gostava, por exemplo, de dar dinheiro para a Globo, Crivella preferia as igrejas. A despeito disso, o essencial permanece, a saber, a disputa entre diferentes frações da burguesia pelos frutos do trabalho excedente do povo. A herança que estes dois últimos prefeitos legaram aos trabalhadores foi uma gigantesca crise de dimensões econômicas, políticas e sociais. As desonerações tributárias, corte de verbas na saúde e na educação, a privatização e destruição dos serviços públicos através das OS, e o loteamento dos cargos públicos para manter funcionando as alianças dos capitalistas, tudo isso fez sangrar gravemente o orçamento do estado, nos conduzindo à desastrosa condição atual.

   Portanto, do ponto de vista dos trabalhadores, Paes é Crivella, e Crivella é Paes. Sua política é a mesma, é a política burguesa de exploração da classe trabalhadora. Enquanto meros lacaios, sua competência se restringe a mediar negócios das grandes empresas (além dos seus próprios), e reprimir as manifestações populares. Neste último aspecto, pesa sobre os trabalhadores e militantes de esquerda uma nova ameaça, uma nova forma de controle e repressão desenvolvida pelo Estado Burguês: as milícias.

 

As milícias como aparelho repressivo do Estado

   Um dos principais problemas para a burguesia que detém as rédeas da cidade é o descontrole da violência armada, promovida sobretudo pelos varejistas de drogas ilícitas. A milícia foi originalmente uma solução para esse problema promovida pelos moradores da favela do Rio das Pedras. Esse singular experimento foi sendo paulatinamente adotado em outras regiões. Compostas, via de regra, por agentes e ex-agentes da segurança pública (policiais militares, policiais civis e bombeiros), as milícias, que começaram se apresentando como uma solução para o tráfico e a violência nas favelas e loteamentos populares, ao longo dos últimos trinta anos passaram a diversificar sua atuação, ocupando várias atividades nestas localidades, como o comércio de gás, distribuição de internet e canais de TV pagos, construções ilegais, muitas vezes sem nenhum cuidado estrutural (como vimos no desabamento da Muzeba) [19], e, ultimamente, também o tráfico de drogas.

   Vale assinalar que as estratégias de enriquecimento pela prestação de serviços também passaram a ser copiada pelos próprios traficantes. Segundo levantamento do Ministério Público, 88 comunidades em 23 bairros do Rio são ocupadas pela milícia; ou seja, um total de 2,2 milhões [20] de pessoas vivem sob controle direto ou indireto das milícias [21]. A maioria dos grupos atua na zona oeste, em bairros como Santa Cruz e Campo Grande [22].

 

Comunidades ocupadas por milícias no Rio de Janeiro
(Fonte: criado a partir do relatório final da CPI da Milícias da ALERJ)

 

   A intimidade que os integrantes das milícias mantêm com a estrutura repressiva do Estado não tardou a chamar a atenção da burguesia e do seu cortejo de prefeitos e vereadores para um outro objetivo que elas poderiam muito bem desempenhar: a repressão e o controle da classe trabalhadora. Em tempos de piora acentuada das condições de vida dos trabalhadores de menores rendas, um grupo armado e disposto a reprimi-los ao arrepio da lei é de considerável utilidade para as classes dominantes. Os políticos que controlam as estruturas de segurança não combatem as milícias, por sua vez, porque as veem como “currais eleitorais”. Tudo se passa sob a vista grossa da Secretaria Estadual de Segurança e, no caso da Prefeitura, da fiscalização dos negócios pelos votos controlados por milicianos que, em geral, lançam alguns de seus próprios membros para cargos no Legislativo.

   A íntima aliança entre políticos e milícias podemos ver também, por exemplo, na investigação do envolvimento do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado e ex-deputado estadual, Domingos Brazão, e no contrato sem licitação de 225 mil reais durante o segundo mandato de Cesar Maia, com a Associação de Moradores e Amigos de Rio das Pedras (Amarp) cobrindo a prestação de serviços de assistência educacional e nutricional para a manutenção de creches no local entre 2003 e 2004. Na época, a Associação era dirigida por Nadinho dos Rio das Pedras, vereador por dois mandatos e notório chefe da milícia local até o seu assassinato.

   O espraiamento desse fenômeno sobre o território da segunda maior metrópole brasileira indica uma preocupante tendência da guerra de classes no Brasil: o uso de uma força paramilitar para cumprir as tarefas repressivas que ultrapassam os limites oficiais do Estado burguês. Hoje as milícias já são utilizadas como forças paramilitares de intimidação das camadas populares e eliminação física dos políticos e militantes de esquerda. O principal recado deixado para a esquerda brasileira pelo assassinato da então vereadora do PSOL, Marielle Franco, foi precisamente este: se a esquerda crescer nas áreas controladas por estas organizações, será alvo de homicídios dirigidos.

   O crescimento do bolsonarismo é também, dentre outros fatores, o reflexo do crescimento das milícias na cidade do Rio de Janeiro. Amigo de miliciano, vizinho de miliciano, e defensor de miliciano, Bolsonaro é por excelência a manifestação política das milícias e da sua ascensão ao bloco do governo. Ademais, no que depender do trio Crivella, Witzel e Bolsonaro, as facções milicianas expandirão inevitavelmente seus territórios e a sua bancada na câmara dos vereadores nos próximos anos. Esta séria ameaça não pode ser abordada pelos partidos de esquerda dentro da narrativa da ameaça fascista; mas precisa ser compreendida em sua especificidade – tal como o então deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) tentou com a CPI das Milícias em 2008 – a fim de chegar à raiz do problema da violência e da segurança pública no Rio de Janeiro. Não estamos diante do fascismo; mas de um fenômeno inteiramente novo, um movimento característico da atual fase do capitalismo periférico no Brasil. Mas a raiz da radicalização social que tem na ascensão de Bolsonaro ao governo a sua mais acabada manifestação política não é outra senão o acirramento da guerra de classes e a contrarrevolução que a burguesia lançou sobre a classe trabalhadora.

 

A ascensão do bolsonarismo

   Há já algum tempo os partidos de esquerda vêm bradando aos quatro ventos que o Brasil vive uma “ascensão do fascismo”; e que, diante desta sinistra ameaça, há que se construir uma frente ampla da civilização contra a barbárie, do progresso contra o atraso, do amor contra o ódio. O efeito prático dessa ladainha é que por ela a esquerda fica autorizada a entrar nas mais oportunistas alianças, na mais escancarada conciliação de classes, desde que, bem entendido, seja contra o fascismo e em defesa dos “valores democráticos”.

   Indisposta a realizar uma análise fundamentada na correlação de forças entre as classes sociais, a esquerda brasileira considera mais cômodo ressuscitar o nazifascismo para explicar o fenômeno em questão. Essa incapacidade cognitiva se explica pelo simples fato de que, para compreender corretamente a complexidade da atual polarização política, é necessário perceber, antes de tudo, que o bolsonarismo descende diretamente do fracasso histórico da própria esquerda em organizar os trabalhadores e prepará-los para a guerra de classes. A ascensão do bolsonarismo só foi possível, em última instância, diante de uma classe trabalhadora em frangalhos.

   O descenso do proletariado brasileiro inicia-se quando o Partido dos Trabalhadores, então uma vanguarda classista e de massas, abdica da sua condição de partido de classe para se tornar o partido da ordem. Deste ponto em diante, o PT não mais se dirigiria à classe trabalhadora, mas ao “povo”, aperfeiçoando com rara perícia a retórica demagógica que fala, simultaneamente, aos trabalhadores e aos capitalistas. Isso, ao proletariado, significou não só a perda real de sua vanguarda de classe, mas, o que é muito pior, a manutenção estelionatária do status de vanguarda a um partido da ordem que, mantendo o enganoso nome de “partido dos trabalhadores”, passou a usar de toda a sua influência no poder para deslegitimar o surgimento de novas vanguardas operárias e manter os trabalhadores e toda a esquerda brasileira cativos da sua política conciliatória. Aos trabalhadores do Brasil sucedeu então a mais trágica derrota que lhes poderia ocorrer: a perda da consciência de classe. Assim foi que, na sua derrota mais retumbante (a ascensão do petismo), os trabalhadores enxergaram uma grande vitória.

   Ao alimentar como nenhum outro governo o mecanismo da dívida pública, o PT engordou as diferentes frações burguesas, aproximando-as em torno do rentismo, e lhes conferindo uma perigosa coesão interna. Das migalhas que caiam do banquete rentista, o PT consolidou sua influência sobre as camadas mais miseráveis da classe trabalhadora por meio dos seus programas de caridade, e firmou sua liderança sobre uma aristocracia sindical cada vez mais destacada das suas bases. Por fim, o PT conquistou com certa facilidade a hegemonia da produção teórica que haveria de orientar a militância de esquerda até os dias atuais, aproximando-a cada vez mais do liberalismo burguês por meio da promoção das teorias pós-modernas e das políticas identitárias. O estrago não poderia ter sido pior.

   Dessa trágica passagem da esquerda pelo poder, resultou uma classe trabalhadora que não mais se reconhece como classe, que não mais se comporta como classe, e que, por conseguinte, não mais consegue representar a si mesma na arena das disputas políticas. Não conseguindo se representar, os trabalhadores saem em busca de quem os represente. Por isso, pode-se afirmar que o mais traiçoeiro feito dos governos do PT foi ter reduzido novamente o papel político dos trabalhadores ao de mera base eleitoral. Com os trabalhadores temporariamente fora do jogo político, o antagonismo central entre burguesia e proletariado cede lugar a uma pluralidade de antagonismos secundários que se revezam por ocupar o primeiro plano da cena política.

   Inicia-se a partir de então uma disputa pelo Estado entre uma burguesia já estabelecida nacionalmente em torno do rentismo, e uma burguesia arrivista, radical, vale dizer, uma lumpenburguesia , que se aproveita da crise política para abocanhar a sua parte do bolo. O que a esquerda liberal vê como a ascensão do fascismo, fundamenta-se, em última instância, na ascensão das frações inferiores da burguesia e desse agregado heterogêneo de agentes marginais e aventureiros que ela carrega junto consigo. Essa mistura de diferentes estratos sociais em transição ganha certa unidade de classe em torno de uma ideologia tão peculiar como seja o “bolsonarismo”. E essa burguesia emergente, com o apoio de amplos setores das classes subalternas, possui agora um lugar no balcão de negócios do Estado.

 

Luciano Hang em uma das ações pró-Bolsonaro na Havan (Reprodução/YouTube)

 

   Bolsonaro não passa de um efeito necessário deste fenômeno, da materialização ideológica desse compósito de classes que buscam seu lugar ao sol do capitalismo. À guisa de comparação, a distância material que separa a burguesia bolsonarista da burguesia liberal é a mesma que separa a Havan do Carrefour, a Riachuello das Lojas Americanas, a Record da Globo. Estamos falando, grosso modo, da disputa entre a burguesia tradicional do Leblon e a burguesia arrivista da Barra da Tijuca. A divisão intraburguesa essencial manifestada pelo bolsonarismo não se dá pela concorrência entre os diferentes ramos da economia (industrial, comercial, agrário e financeiro); até porque a coesão desses setores já é assegurada pela orientação rentista da atual fase do capitalismo dependente brasileiro. O bolsonarismo é antes a ideologia que dá coesão àquelas camadas emergentes da burguesia que percebem na obtenção do poder político uma maneira de aumentar seu poder de concorrência e, quem sabe, disputar a hegemonia econômica, política e ideológica com a burguesia liberal. Mas essa concorrência vulgar entre frações burguesas por meio do Estado, essa disputa superficial que concerne apenas a uma ínfima minoria da população, essa refrega de compadres que não abala em absoluto a coesão geral das diferentes frações em torno do rentismo, é transmitida às maiorias como se fosse o mais crucial antagonismo da nossa sociedade, como se fosse a própria guerra entre civilização e barbárie.

   A ascensão dessas frações subalternas da burguesia arrasta consigo uma pequena burguesia radicalizada pela crise, mas também toda espécie de vigaristas, escaladores sociais, e refugos das camadas intermediárias da sociedade. Líderes religiosos, chefes de milícia, líderes religiosos que são chefes de milícia, juízes semianalfabetos, promotores evangélicos, fazendeiros escravagistas, delegados corruptos, comerciantes emergentes, militares nostálgicos da ditadura, monarquistas nostálgicos da monarquia, ideólogos conservadores, parlamentares do baixo-clero, integralistas intempestivos, caciques e coronéis, “pequenos empreendedores”, e todo tipo de oportunistas – eis a essência disforme do grupo social cuja ascensão é traduzida pela eleição de Bolsonaro.

 

Faces do bolsonarismo: o juiz, o promotor, o “filósofo”, o general, o pastor.

 

   O próprio capitão reformado foi oportunista o suficiente para ir incorporando aos poucos em seu discurso as ideologias características dos grupos com quem foi firmando aliança. Com uma mistura de fundamentalismo religioso, militarismo autoritário, anticomunismo, e pitadas de teorias olavistas da conspiração, o discurso bolsonarista não só foi bem-sucedido em exercer uma função integradora dentro deste agregado social, como a sua aparente radicalidade logrou alcançar boa parte de uma classe trabalhadora à deriva, estrangulada pela crise econômica.

   A popularidade de Bolsonaro depende essencialmente da ampla adesão ao seu discurso antissistema por parte de grande parcela da classe trabalhadora, sobretudo daquela parcela que compõe o imenso exército industrial de reserva. Por outro lado, sua força política dentro do governo depende fortemente do apoio crítico da burguesia rentista, que, apesar de repudiar a ideologia do bolsonarismo, enxerga na sua ascensão ao poder uma maneira de tocar em acelerado passo a sua agenda ultraliberal.

   Ora, é certo que esses “novos ricos” não compartilham da tolerância sexual, religiosa e cultural da burguesia liberal. Não compartilham, os arrivistas, do seu ar cosmopolita, da sua predileção pelos valores republicanos, ou da sua liberalidade com respeito à pauta dos costumes. No entanto, ali onde concordam os burgueses, novos ou veteranos, é onde seus interesses se chocam com os da classe trabalhadora. O ultraliberalismo une todas as frações burguesas contra o proletariado. Essa última peça ideológica do discurso bolsonarista viria junto com Paulo Guedes no pacote que firmou a conciliação entre a lumpenburguesia bolsonarista e a burguesia liberal. Muito embora essa conciliação seja recheada de contradições, encenadas semanalmente pelos embates entre Bolsonaro e Rede Globo, há uma profunda concordância entre as diferentes frações burguesas no que diz respeito à política econômica de Paulo Guedes, isto é, o aprofundamento do subdesenvolvimento e da dependência do país. Neste momento, os trabalhadores precisam ter clareza de que a disputa entre o campo bolsonarista e o campo liberal deixa intocada a coesão burguesa em torno do rentismo.

 

(Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/07/presidente-do- itau-avalia-que-declaracoes-de-bolsonaro-nao-atrapalham-reformas.shtml)
Presidente do Itaú, Candido Bracher, diz que Bolsonaro não atrapalha
reformas, e que desemprego permite crescimento sem pressão da inflação.

 

   E o que faz a esquerda diante disso? Alerta os trabalhadores de que há uma coesão burguesa no poder que declarou guerra aos trabalhadores? Não, a esquerda diz aos trabalhadores que estamos em luta contra o fascismo. Mas o trabalhador não vê nenhum fascismo; seu inimigo é de outra ordem. É a longa jornada de trabalho, é o baixo salário, é a instabilidade e a insegurança, é a exaustão física e mental, são as contas a pagar, e a falta de tempo para qualquer lazer, são as dívidas, é o desemprego, é o desalento, é a doença, é a fome; em suma, é a precariedade material, é a exploração, é o capitalismo. Enquanto o núcleo racional (leia-se ultraliberal) do seu governo avança com facilidade sobre os trabalhadores, Bolsonaro e seu clã alimentam diariamente a hegemonia das causas identitárias dentro da esquerda liberal. Com suas pataquadas e seus discursos chocantes, os bolsonaristas fortalecem na esquerda o domínio da política de causas em detrimento da política revolucionária. A esquerda liberal, por sua vez, sempre que opera suas lacrações e sarcasmos, os seus escrachos e escatologias, suas sátiras e deboches, ela apenas incendeia e fortalece as bases bolsonaristas. Por trás dessa luta ideológica entre o bolsonarismo e a esquerda liberal – luta que se retroalimenta semanalmente e que beneficia os políticos de ambos os campos – o governo segue com seu rolo compressor sobre os trabalhadores.

   O diagnóstico da “ameaça fascista” erra, em última instância, por não levar em conta o ultraliberalismo como orientação dominante do atual governo. Não pode haver um fascismo ultraliberal. O governo Bolsonaro não conseguirá manter o apoio das camadas populares se insistir em ser o despachante dos furiosos ataques da burguesia contra os trabalhadores. Não sendo capaz de sustentar a popularidade do seu discurso com políticas públicas em prol da classe trabalhadora, o seu fascismo à brasileira é incapaz de se realizar plenamente. Em seu caminho se encontra a lei da superexploração da força de trabalho.

   Nesta conjuntura, o que pode representar a consigna da civilização versus barbárie, da democracia versus fascismo, senão a disputa inessencial entre frações burguesas que, em última instância, mantém intocada a lógica do capitalismo dependente brasileiro? Nesta era de antagonismos secundários, as vanguardas revolucionárias da classe trabalhadora têm o dever de resgatar a centralidade do antagonismo entre capital e trabalho, e da guerra de classes entre burguesia e proletariado. Por isso, qualquer conversa sobre coalizões eleitorais no campo da esquerda só pode ser consequente se, ao analisar a composição de classe que sustenta os partidos em disputa, defender uma plataforma independente para a classe trabalhadora, e um programa revolucionário que exponha as diferenças que a separa das frações burguesas e alargue o fosso que divide os interesses das diferentes classes.

 

Um programa revolucionário para a prefeitura do Rio de Janeiro

   A vanguarda da classe trabalhadora deve apresentar nessas eleições um programa político capaz de fazer avançar a Revolução Brasileira. Contudo, está claro que a crise econômica, política e social que inunda a cidade do Rio não pode ser resolvida por quem quer que ocupe o cargo de prefeito ou por qualquer conjunto de medidas e reformas municipais. O âmbito de atuação da prefeitura se encontra radicalmente constrangido pela atual fase da guerra de classes no Brasil. Sendo assim, quais são os objetivos de uma candidatura pela Revolução Brasileira?

   Da maneira como as disputas políticas vem se desenhando para estas eleições, nenhum dos campos políticos concorrentes representa o ponto de vista do proletariado ante os seus inimigos de classe. Tal fato reencena no Brasil o trágico caso do proletariado que perdeu a capacidade de representar de maneira independente seus próprios interesses na arena política. Em um cenário onde a multidão fragmentada dos trabalhadores navega sem bússola, em que é reduzida à massa de manobra e base eleitoral a ser disputada por esta ou aquela fração da burguesia, a elevação da consciência de classe dos trabalhadores e da sua independência organizativa é, na corrida eleitoral deste ano, o mais importante desafio de uma campanha pautada por um programa classista. Por isso, se o PSOL encarar de frente os grandes desafios que lhe deram origem, ele deve apresentar-se nessas eleições como o partido da classe trabalhadora.

   Um partido de classe com um programa de classe. Mas, para além do seu caráter classista, ele deve ser também um programa orientado por um projeto de transição socialista. Isto é, além de organizar a classe trabalhadora e prepará-la para as batalhas mais imediatas contra a burguesia, o papel da vanguarda dos trabalhadores deve ser também o de condicionar todas as táticas do movimento ao horizonte do socialismo como objetivo estratégico. O programa da classe trabalhadora deve, portanto, traduzir todos os embates pontuais contra o patronato, todas as batalhas locais contra o Estado burguês, na luta pela superação do sistema capitalista. Ele deve esclarecer que a superação da condição de subdesenvolvimento e dependência do nosso país ante as potências imperialistas, e da lei da superexploração da força de trabalho que rege o capitalismo periférico brasileiro, requer que a luta anti-imperialista ande lado a lado com a luta anticapitalista. De modo que, nessas eleições, se o PSOL ainda valoriza a vocação registrada em sua sigla, ele deve se apresentar inequivocamente como um partido socialista.

   O socialismo, todavia, não pode se tornar uma ideia abstrata, um princípio moral, ou uma peça de retórica do discurso da esquerda; não pode ser o horizonte que se distancia dos trabalhadores na mesma medida em que estes avançam em suas lutas. Por isso, colocar o socialismo como uma estratégia concreta de guerra do proletariado contra a burguesia, significa colocar em pauta a atualidade da Revolução Brasileira. Significa, portanto, tematizar a guerra cada vez mais aberta, cada vez mais violenta, que a burguesia contrarrevolucionária lança sobre os trabalhadores, mas também abordar a necessidade cada vez mais urgente de um contra-ataque dos trabalhadores organizados. Uma campanha eleitoral pela Revolução Brasileira deve reforçar a todo momento a necessidade da conquista do poder político pela classe trabalhadora, deve reafirmar a todo instante que a realização das reformas necessárias para solucionar a crise da cidade só serão possíveis por meio de um processo revolucionário em âmbito nacional. Sendo assim, nessas eleições, se o PSOL quiser agir em conformidade com o seu discurso socialista, ele precisa se apresentar à classe trabalhadora como um partido revolucionário.

   E para um partido revolucionário, um programa político não é algo construído especialmente para as eleições, mas existe muito antes, como o resultado inevitável da totalidade do trabalho do partido, dos seus princípios organizativos, da estratégia e táticas que segue, e do diagnóstico histórico que o orienta. Nós, da Revolução Brasileira (RB), tendência interna do PSOL, já temos a nossa posição com respeito às eleições deste ano. O processo eleitoral e, no geral, o jogo parlamentar da democracia burguesa, não servem aos revolucionários senão como plataforma para agitação e propaganda a fim de promover a organização do proletariado como classe revolucionária com vistas à conquista do poder político. O conteúdo político e ideológico de uma campanha pela Revolução Brasileira deve conter, portanto, dois itens: (1) o programa da organização (seus princípios, objetivos, e seu diagnóstico histórico); (2) uma análise da correlação de forças entre as principais correntes políticas e ideológicas em disputa nas eleições municipais, ou seja, uma análise dos partidos e de sua composição de classe. A primeira parte deste documento teve o objetivo de acrescentar à extensa análise sobre a guerra de classes no Brasil produzida pela RB, um diagnóstico de como ela se manifesta na realidade do município do Rio. Esta segunda parte, por sua vez, tem o objetivo efetuar uma análise das forças que irão compor a disputa eleitoral para a prefeitura na cidade, para então apresentar o posicionamento que a RB julga apropriado a um partido proletário, socialista e revolucionário, como o PSOL é chamado a ser neste momento.

 

Os campos políticos em disputa na cidade do Rio de Janeiro

   As eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro deste ano revolverão em torno da disputa entre três campos políticos: (1) o campo liberal, (2) o campo bolsonarista, (3) e o campo de esquerda.

   (1) Em todas as disputas locais, sempre que possível, a burguesia coligada lançará um candidato próprio para defender os seus interesses de classe. Se, por um lado, o PSDB historicamente não possui força no Rio, por outro lado, a burguesia conta na cidade com o partido liberal mais popular do Brasil: a Rede Globo. Radicada no Rio de Janeiro, a Globo tem influência suficiente entre os cariocas para, com sua indicação e apoio, emplacar uma forte candidatura e granjear para ela uma vaga no segundo turno.

   Ao que tudo indica, o candidato do campo liberal será um velho aliado da Rede Globo: Eduardo Paes, hoje no DEM. Nas eleições de 2012, contra Marcelo Freixo do PSOL, a Globo já havia apoiado Paes, que, enquanto prefeito, retribuiu o favor por meio da celebração de contratos milionários, sem licitação, para a prestação dos inestimáveis serviços da Fundação Roberto Marinho. Grande admirador das parcerias público-privadas e da importância social das Organizações Sociais, condutor tarimbado da administração petucana na cidade do Rio, Eduardo Paes agrada tanto ao liberalismo de direita, quanto ao liberalismo de esquerda, o que foi perfeitamente ilustrado pela composição da sua coalizão para a disputa da prefeitura em 2012, que contou com PT, PDT, PCdoB, e outros dezessete partidos, contra um PSOL solitário.

   A burguesia liberal, com seu séquito de ideólogos, advogados e burocratas, com a sua multidão de cabos eleitorais devidamente remunerados, com seus meios de comunicação de massas e suas entidades representativas (Globo, Firjan, OAB, etc.), aposta na força bruta do capital para conquistar os votos da classe trabalhadora para o seu lado. Seu candidato encarnará mais uma vez a voz da sabedoria e da moderação em uma era de extremismos políticos. Tática que, diga-se de passagem, fracassou rotundamente nas últimas eleições presidenciais, quando a burguesia viu o seu candidato, Geraldo Alckmin, ser atropelado por Bolsonaro, e viu o fenômeno bolsonarista esvaziar a base eleitoral do seu partido de classe, o PSDB. Quando ensaia lançar Luciano Huck para as próximas eleições presidenciais, a burguesia joga com as suas forças, aposta no carisma do apresentador de TV, na sua inserção entre as massas, e no seu forte aparato propagandístico, a fim de reconquistar para si os votos da massa trabalhadora.

   Eduardo Paes não é Luciano Huck, mas na disputa eleitoral deste ano para a prefeitura do Rio de Janeiro, ele é o melhor que a burguesia liberal pode conseguir. Sua subserviência à agenda ultraliberal, como vimos, já foi comprovada nos seus dois mandatos anteriores. Comparada com a desastrosa gestão de Marcelo Crivella, sua reforma urbanística começa a saltar aos olhos do povo carioca como exemplo concreto de uma boa administração. Além disso, Eduardo Paes encarna o tipo carismático do malandro carioca, o que lhe granjeia bastante simpatia entre as camadas populares. Por isso, o campo liberal no Rio de Janeiro, em princípio, entra com força. O problema é o seu discurso moderador, conciliatório, numa era em que a classe trabalhadora demanda discursos radicais. A tendência é que o potente aparelho ideológico da burguesia liberal não consiga ser mais forte do que a vontade das massas por uma ruptura, sobretudo enquanto o bolsonarismo seguir lhe prometendo uma saída radical para a crise.

   Mas, se a candidatura de Paes não conquistar os votos dos trabalhadores; se, como Alckmin, Paes for atropelado pelo bolsonarismo, isso significa que a burguesia liberal perdeu o poder na cidade do Rio? É claro que não. Do ponto de vista dos trabalhadores, é preciso compreender como, mesmo perdendo as eleições, a burguesia sai vitoriosa. A fim de defender sua hegemonia econômica, política e ideológica no país, a burguesia liberal pode muito bem abrir mão do controle direto do governo. Seu apoio a Bolsonaro ensina aos trabalhadores uma valiosa lição: não é o presidente quem tem o poder do Estado. Independente de quem vista a faixa de presidente, a coesão burguesa dominante sempre consegue emplacar os seus representantes de classe no ministério da justiça, da economia, no Banco Central, e em outros cargos estratégicos do governo. Além de possuir o poder de pressioná-lo via parlamento, judiciário e imprensa.

   É por isso que, nas eleições deste ano, nenhuma das candidaturas pode mudar a configuração da guerra de classes no Brasil; nenhuma delas toca na questão do poder, logo, nenhuma delas poderá abalar nem por um milímetro sequer o poder da coesão burguesa orientada pelo rentismo. O trabalhador precisa ter clareza da total impotência de todas as candidaturas, de todos os três campos políticos em disputa, para resolver a crise da cidade do Rio e as péssimas condições de vida da maioria da população carioca. Precisa compreender, em suma, que as diferenças superficiais entre o campo liberal, o bolsonarismo, e a frente de esquerda, têm a estrita função de esconder a centralidade do antagonismo entre capital e trabalho, e de ocultar a guerra de classes entre burguesia e classe trabalhadora.

 

   (2) A cidade do Rio é o principal reduto do bolsonarismo. Apesar de haver perdido popularidade na cidade desde a sua eleição para presidente, a indicação de Bolsonaro tem boas chances de alavancar ao segundo turno a candidatura do seu escolhido. Com uma forte base eleitoral entre os trabalhadores da segurança pública e das forças armadas, entre as camadas populares evangélicas, entre a pequena burguesia reacionária e a lumpenburguesia arrivista, e, no geral, entre os antipetistas resolutos de todas as classes, o bolsonarismo permanece sendo a força a ser batida nas eleições do Rio. É claro que, em última instância, a disputa entre o bolsonarismo e o campo liberal reduz-se inevitavelmente a uma disputa pelos votos da massa trabalhadora. Nesta disputa, ante à poderosa máquina publicitária da burguesia liberal, o bolsonarismo contrapõe não só a aliança das mídias religiosas (Band, Record, etc.), mas também a influência capilar das igrejas evangélicas entre as camadas populares, e, sobretudo, uma pioneira capacidade de manipulação da opinião pública por meio das mídias digitais.

   Entretanto, o bolsonarismo ainda não possui um nome de peso para a candidatura a prefeito do Rio. Se o clã Bolsonaro mostra clara preferência por emplacar um candidato da sua própria corriola (como o deputado federal Hélio “Bolsonaro”), a confirmação da candidatura à reeleição de Marcelo Crivella pode colocar o clã na posição de ter que apoiar o atual prefeito a fim de não dividir os votos do campo bolsonarista. Crivella, no entanto, não é um bolsonarista; mas, dado o grau de rejeição do seu mandato, sua força nessa campanha dependerá de quão bolsonarista ela seja, o que inclui a indicação do próprio Bolsonaro. Crivella é um pastor evangélico, de modo que, por seu próprio ofício de mercador da fé, ele incorpora um dos troncos da ideologia bolsonarista sem muito esforço e consegue mobilizar as bases sociais de Bolsonaro com seus arroubos reacionários, como foi o caso da censura na Bienal e no MAR. A depender, portanto, de uma combinação de diversos fatores, como a indicação de Bolsonaro, como a divisão do bolsonarismo em várias candidaturas, ou a sua concentração em apenas uma, este campo político poderá passar de favorito a um competidor que mantém com os seus adversários um equilíbrio de forças.

   Vale aqui notar como todos os três campos políticos apenas enxergam duas forças supostamente antagônicas em disputa. O campo da burguesia liberal enxerga a luta entre progresso e atraso, entre extremismo e moderação; para ele, o bolsonarismo e a esquerda revolucionária se confundem em um único campo radical a ser combatido. Já o campo bolsonarismo enxerga a luta do bem contra o mal, entre os crentes e os hereges, entre a família tradicional e a esquerda; para ele, Paes e a Rede Globo são de esquerda. Enquanto isso, o campo da esquerda liberal enxerga apenas a luta entre democracia e fascismo, entre civilização e barbárie, entre amor e ódio; para ele, bolsonarismo é seu inimigo, e o campo liberal seu mais natural aliado. O curioso é que a contradição entre o campo bolsonarista e a esquerda liberal se deságua na aliança que ambos os campos estão dispostos a firmar com o campo liberal a fim de derrotar o seu adversário maior. Portanto, independente de quem vença, a correlação de forças descamba para o lado da burguesia liberal.

   A única maneira da candidatura bolsonarista prescindir do apoio da burguesia liberal seria através de um forte respaldo popular, cenário improvável por uma série de motivos. Em primeiro lugar, nem Crivella é capaz de encarnar a radicalidade do discurso antissistema, e nem o bolsonarismo possui ainda uma candidatura capaz de fazê-lo no Rio de Janeiro. Ademais, em segundo lugar, a popularidade do bolsonarismo despenca na mesma medida em que seu governo se revela inimigo dos trabalhadores. O bolsonarismo já demonstrou que o seu discurso não é tão antissistema a ponto de incomodar a agenda ultraliberal de aprofundamento da superexploração da força de trabalho. A farsa bolsonarista tende a ir se desfazendo aos poucos aos olhos de todos. No entanto, uma das contra-tendências que reforçam a sua sobrevida é justamente a prática política festeira e escrachada da esquerda liberal que, ao priorizar as pautas dos costumes, irrita e afasta de si os trabalhadores desesperados por uma ruptura substancial com o sistema que os explora.

   Em todo caso, se Crivella se confirmar como o candidato do campo bolsonarista, as campanhas bolsonaristas e liberais necessariamente apresentarão suas respectivas candidaturas, Crivella e Paes, como representantes de políticas inteiramente distintas. Esse falso antagonismo só poderá ser mantido enquanto ambas as campanhas priorizarem pautas superficiais, como a dos costumes. Pois, por debaixo dessa contradição inessencial, a análise em sequência que fizemos das administrações de Paes e Crivella evidencia o quão profunda foi continuidade da política promovida por ambos em prol dos ganhos dos capitalistas. Diante disso, o que a esquerda revolucionária deve fazer é reivindicar o ponto de vista do proletariado para explicitar que a disputa entre Crivella e Paes representa uma disputa intraburguesa e, por conseguinte, ambos representam juntos o campo da coesão burguesa dominante contra os trabalhadores. Ela tem o dever, portanto, de se colocar, nessas eleições, como o campo dos trabalhadores em luta contra o campo da burguesia.

 

   (3) Ao contrário do que ocorre na maioria das cidades, o PT não detém na cidade do Rio de Janeiro a hegemonia sobre a esquerda. O Rio é, neste campo, o reduto do PSOL; que disputou praticamente isolado as duas últimas eleições para prefeito contra os candidatos apoiados pela burguesia. A base eleitoral da esquerda no Rio concentra-se majoritariamente na Zona Sul. Compõem-na uma camada média “ilustrada”, ativistas de movimentos sociais, e a boa parte dos trabalhadores sindicalizados, dos estudantes universitários, e das categorias dos artistas e intelectuais.

   O que as movimentações dos partidos que encampam o liberalismo de esquerda indicam até o momento é que eles estão fazendo o possível para compor uma frente eleitoral em torno da candidatura de Marcelo Freixo (PSOL), o mais forte candidato da esquerda no Rio. As alianças ainda estão em processo de construção, mas salta aos olhos a aproximação entre PSOL e PT (chegou-se a ventilar uma chapa com Marcelo Freixo e Benedita da Silva). Nos bastidores da esquerda, e do PSOL em especial, percebe-se uma movimentação para estabelecer nas suas bases um consenso a respeito da necessidade da formação de uma frente de esquerda encabeçada por PSOL e PT. Com efeito, enquanto a orientação política deste campo for o liberalismo de esquerda, enquanto declarar como seu principal inimigo o bolsonarismo, e não a coesão burguesa no poder, enquanto priorizar a política identitária e os movimentos de causas parciais, enquanto insistir na defesa dos “direitos humanos” e dos “valores democráticos”, a esquerda não terá força nessas eleições senão por meio da concentração total dos votos de sua base eleitoral comum em uma frente com o maior número de partidos possíveis (desde a esquerda radical até os partidos de centro-esquerda e, quem sabe, também de centro-direita). Vê-se logo o quão sutilmente o liberalismo de esquerda se aproxima do liberalismo de direita. Por isso, não deve ser nenhuma surpresa a aproximação entre PSOL e Rede Globo dependendo de quão radical e, por conseguinte, quão popular, chegue para a disputa o candidato bolsonarista.

   Na cidade do Rio, pode-se afirmar que, enquanto os interesses da burguesia são representados com perfeição pelo campo liberal; e enquanto o bolsonarismo é a manifestação ideológica mais bem-acabada da interseção entre pequena burguesia e os “novos ricos”; a ideologia do campo da esquerda, por sua vez, representa, em sua essência, tão somente uma classe média liberal . Como já foi dito aqui, a grande massa dos trabalhadores não compõe um campo independente nessas eleições, mas, em vez disso, reduz-se a uma multidão indiferenciada de votantes a ser disputada pelos diferentes campos políticos. Ora, a função de um partido socialista é preencher com urgência essa lacuna, é apresentar-se como o campo proletário. Mas o que faz o PSOL em vez disso? Ensaia uma aliança eleitoral com o PT, e afina o seu discurso político pelo tom dado pela Rede Globo.

   A um partido da classe trabalhadora, um partido socialista, são permitidas todas as alianças com partidos e organizações políticas que contribuam para o avanço da Revolução Brasileira. Fora disso, não pode haver nenhum acordo. Se o PSOL hoje abandonou sua radicalidade, se não hesita em andar com uma mão dada ao PT e a outra à Globo, ele, no entanto, não o faz de maneira aberta, assumindo sua rendição à ordem dominante, nem apagando o Socialismo do seu nome (como fez muito bem o Movimento 65). Não, o PSOL se alia aos “elementos democráticos” contra o “fascismo”. Mas o argumento da frente ampla contra o fascismo foi justamente o que permitiu que Guilherme Boulos participasse do encontro pelos “Direitos Já”, uma reunião privada, da qual participaram políticos do PSDB; foi o que permitiu que a Globo e Marcelo Freixo encetassem uma relação platônica, onde um completa as frases do outro contra o bolsonarismo; e é o que ainda permite que um partido que se diz socialista se esforce por arregimentar a classe trabalhadora para compor as fileiras do campo político da burguesia liberal. Este é o único efeito concreto da chamada frente ampla.

   Pressionados, os partidos de esquerda agora falam de uma frente não tão ampla, uma frente de esquerda, ou progressista, esta mais reduzida, sem os partidos burgueses. No entanto, com o PT! O argumento é o mesmo: é preciso derrotar o fascismo, a extrema-direita, a onda conservadora, a barbárie, etc. Para isso, o PSOL alimenta a possibilidade de se aliar àquele mesmo partido cujas práticas oportunistas e corruptas ele jurou superar; ao partido que, uma vez no governo, promoveu como nenhum outro a farra rentista; a esse mesmo partido que, em última instância, foi o principal responsável pelo enfraquecimento organizativo da classe trabalhadora e, consequentemente, por limpar o terreno para a ascensão do bolsonarismo.

   Os camaradas da Revolução Brasileira alertam para o caráter farsesco dessa frente de esquerda. As frentes políticas são construídas no dia a dia das lutas do povo, nas greves, paralisações e grande manifestações. O que estamos assistindo tem outro nome, são acordos eleitorais. Nestes casos, a questão relevante para os envolvidos não é a melhoria da vida da população, mas sim eleger prefeitos, governadores ou bancadas. Estes acordos que na cidade do Rio de Janeiro interessam ao PSOL, por sua hegemonia sobre a esquerda na cidade, nacionalmente só favorecem ao PT. Enquanto o PSOL defender aliança com o PT, passando uma borracha nas suas práticas corruptas e no seu peleguismo; deixando de lado que as ocupações das favelas pelo Exército foram criadas por este partido; esquecendo que foi o governo petista de Dilma quem criou a Lei Antiterror que hoje pesa sobre a cabeça de todo militante socialista; enquanto persistirmos nessa trilha, nosso futuro se torna cada vez mais o presente do PCdoB, ou seja, o de ser mais um “puxadinho” do PT. O argumento de que aqui no Rio de Janeiro esta aliança eleitoral nos favorece é um jogo das raposas felpudas do parlamento e nada tem a ver com a vida concreta dos trabalhadores.

   Se o discurso da frente de esquerda fosse para mudar o que aí está, a pergunta que deveria ser feita é: mudar como? Estamos sob os limites da EC 95, que congela os gastos públicos por um período de 20 anos. Temos ainda a Lei de Responsabilidade, que também restringe os gastos. Somados estes dois mecanismos o efeito da crise econômica faz com que a receita do município não aumente. Ora, a única solução possível está na superação destas leis de âmbito federal. Ou seja, é impossível que qualquer mudança em âmbito municipal toque a raiz dos problemas da cidade do Rio. O máximo que a prefeitura poderá fazer neste contexto será nacionalizar os problemas da cidade, isto é, esclarecer às massas que os problemas da cidade são efeitos necessários da totalidade do sistema que domina e explora o povo brasileiro. E é precisamente isso que uma candidatura pela Revolução Brasileira deve fazer desde a sua campanha. Nacionalizar as questões locais, apontar para o acirramento da guerra de classes, e promover a constituição de uma vanguarda revolucionária dos trabalhadores.

   Mas para isso, precisamos saber quem são nossos aliados. Em todas as tentativas de greve geral, o PT e seu braço sindical, a CUT, jogou o movimento para trás. Em todas as manifestações estudantis, o PT e seu braço estudantil, a UNE, tentou sequestrar e refrear o movimento. Então devemos nos perguntar: a aliança com o PT é pela luta contra o fascismo, ou é uma proposta conjunta de administração das mazelas do capitalismo periférico? Neste caso, o período petista deixa clara a sua preferência. Por isso, não devemos ficar surpresos se o PT correr para o lado do Eduardo Paes no último momento.

 

   É tempo para a Revolução Brasileira

   Nós, da Revolução Brasileira, entendemos que as eleições para o Estado burguês representam uma das mais valiosas oportunidades para os marxistas apresentarem seu programa às massas. Um partido socialista do porte do PSOL tem, neste período, uma capacidade de difusão massiva das suas propostas e ideias, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro. Por isso, as tendências revolucionárias do PSOL têm o absoluto dever de realizar agitação e propaganda em todos os espaços de disputa política dentro e fora do partido, em todas as plataformas de comunicação de massa que tiverem acesso, a fim de denunciar a impotência da esquerda liberal e identitária, a corrupção de um sistema político apodrecido, a guerra de classes que a burguesia declarou ao nosso povo, e o imperialismo que nos mantém dependentes; em suma, tem o dever de pressionar o PSOL a se confrontar com as grandes questões da nação. O PSOL não necessita de uma frente com a esquerda liberal, o que ele necessita é se radicalizar.

   Por todo o Brasil, os candidatos pela Revolução Brasileira entrarão na disputa eleitoral como franco atiradores. O sucesso de sua campanha, e sua eventual eleição, não podem andar separados do seu repúdio à democracia liberal e ao sistema político burguês. Pelo contrário, a sua eleição, a sua popularidade, só poderá advir do seu discurso totalmente antissistema, do brio do seu nacionalismo revolucionário, do seu ataque direto e inequívoco à república rentista. Quando eleitos, os revolucionários não reduzem a marcha, mas, pelo contrário, a aceleram. Eles usam o parlamento e o governo para elevar a consciência de classe dos trabalhadores e firmar com eles uma íntima aliança com o objetivo de promover uma ruptura revolucionária na sociedade. Ruptura que só poderá ocorrer com a entrada definitiva das massas na política.

   Aos olhos dos revolucionários, o campo liberal, o campo bolsonarista, e a frente de esquerda, não passam de três propostas diferentes de administração da mesma ordem, a ordem burguesa. Por isso, em todos os lugares em que a Revolução Brasileira lançar candidatos, ela deve se apresentar como um campo independente, um campo que, literalmente, seja contra tudo isso que está aí. Um campo político proletário, socialista e revolucionário, que inevitavelmente apagará as diferenças superficiais entre os demais campos e candidaturas, e os obrigará a se revelar como realmente são, a saber, como a disputa inessencial entre frações do capital pelo trabalho excedente do povo brasileiro. Como a contrarrevolução burguesa que está em curso contra os trabalhadores.

   É a própria burguesia coligada, portanto, quem instaura as condições objetivas para um processo revolucionário. Cabe às massas trabalhadoras lideradas por um partido revolucionário preencherem as condições subjetivas e se prepararem para travar a verdadeira guerra contra o seu inimigo de classe. O Brasil se encontra hoje numa encruzilhada entre duas vias: revolução ou contrarrevolução. Ou a burguesia, por meio de Bolsonaro ou de qualquer outro títere presidencial, aprofunda o caráter repressivo e autoritário do Estado a fim de levar a cabo o seu projeto ultraliberal; ou o proletariado em aliança com as demais classes subalternas se insurgem contra ordem burguesa a fim de conquistar o poder do Estado e operar um governo de transição socialista. Não há mais tempo ou espaço dentro da esquerda para ilusões progressistas e projetos de conciliação de classe, não há mais tempo ou espaço para meias palavras e eufemismos, acabou-se a época do marxismo acadêmico e do discurso inconsequente. À esquerda brasileira resta agora “ou revolução socialista ou caricatura de revolução”.

   Por fim, a nossa atuação não começa e nem se encerra nas eleições, mas as instrumentaliza para fazer ecoar nossos diagnósticos sobre a guerra de classes no Brasil e a convocação geral aos trabalhadores a lutar pelo fim do sistema político corrupto, pelo fim da superexploração da força de trabalho, e pelo fim do subdesenvolvimento e da dependência. Por isso, nestas eleições, convocamos mais uma vez os trabalhadores a lutarem pela Revolução Brasileira.

 

[1]  Embora com ritmos e temporalidades distintas entre as diversas commodities, pode-se afirmar que o boom das commodities perdurou entre 2003 e 2013, ainda que de modo errático no pós-2008.
[2] Fonte: ANP/SDP/SIGEP, out. 2019.
[3] Fonte: ANP, Boletim de preços, 2016.
[4] Fonte: IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo), jan. 2017.
[5] Benefício fiscal é a liberação de uma empresa do recolhimento de determinados impostos.
[6]  Fonte: ADEPOL, 28/11/2016.
[7]  Na Câmara, a PEC tramitou com o número 241 e no Senado como PEC 55. O texto foi promulgado como Emenda Constitucional 95 e agora é lei.
[8] Fonte: https://www.brasil247.com/midia/efeitos-da-pec-95-uma-perda-bilionaria-para-o-sus-em-2019-fpelgy1g
[9] Fonte: Economia UOL. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/10/10/bancos-lucraram-r-109-bilhoes-ate-junho-de-2019-informou-bc.htm
[10] Fonte: VAZ, Lilian Fessler. NOVAS QUESTÕES SOBRE A HABITAÇÃO NO RIO DE JANEIRO - o esvaziamento da cidade formal e o adensamento da cidade informal. XXI INTERNATIONAL CONGRESS LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION.
[11] Fonte: DataRio. Disponível em: https://www.arcgis.com/sharing/rest/content/items/541416a790134a0ab28603d67e451155/data
[12] Esta obra tinha sido construída pela empresa da família de Antonio Pedro Figueira, secretário de obras de Eduardo Paes.
[13] Resultado primário = receita primária total – despesa primária total. Fonte: JOSÉ ROBERTO R. Afonso. Avaliação do Desempenho Fiscal do Município do Rio de Janeiro para o período 2009-2016. Dezembro/2016.
[14] op. cit.
[15] Fonte: CGM. Prestação de contas 2018, p.17.
[16] Fonte: http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2015/pdfs/eixo13/os-reflexos-dos-programas-de-acao-federais-e-da-gestao-privada-da-politica-educacional-no-municipio-do-rio-de-janeiro-na-gestao-eduardo-paes.pdf
[17] Op. cit.
[18] Fonte: http://prefeitura.rio/cidade/prefeitura-reduz-gastos-com-publicidade-ao-longo-desta-gestao/
[19] Sub-bairro de Vargem Grande, onde a milícia constrói prédios e dois deles caíram.
[20] Fonte: http://especiais.g1.globo.com/rio-de-janeiro/2018/mapa-das-milicias-do-rio-de-janeiro/
[21] Fonte: https://oglobo.globo.com/rio/milicias-chegam-26-bairros-do-rio-a-outras-14-cidades-do-estado-23563315
[22] Fonte: noticias.r7.com/rio-de-janeiro/rj-no-ar/videos/milicia-do-rio-vem-crescendo-e-mudando-logica-de-atuacao-16052018
[23] O significado original do adjetivo “lúmpen” designa um comportamento aventureiro, velhaco, errante, improdutivo. Na obra 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx utiliza o adjetivo para qualificar aquele heterogêneo grupo social que ascende juntamente com a ascensão do bonapartismo. O lumpenproletariado designaria então aquelas frações das classes subalternas que ocupam a base do exército industrial de reserva, e que, por sua precária condição material, sua total ausência de consciência política, e sua baixa capacidade organizativa, se tornam facilmente cooptáveis pelo discurso populista de Bonaparte. Já a lumpenburguesia a que nos referimos aqui, tendo em vista especificamente o momento histórico atual do capitalismo dependente brasileiro, se refere àquele agregado de elementos errantes, aventureiros e improdutivos, aqueles refugos que habitam os interstícios entre as camadas inferiores da burguesia e as camadas superiores dos estratos médios, e que, com a eleição de Bolsonaro e a abertura de novas cadeiras no balcão de negócios do Estado burguês, arremetem-se radicalmente sobre a arena política a fim de receber sua parte do leão.

 

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