Análise da conjuntura brasileira

Texto apresentado pelo camarada Nildo Domingos Ouriques na plenária do dia 18 de setembro de 2021

Uno ha creído a veces, en medio de este camino sin orillas,
que nada habría después; que no se podría encontrar nada al otro lado,
al final de esta llanura rajada de grietas e de arroyos secos.
Pero si, hay algo. Hay un pueblo.

El llano en llamas
Juan Rulfo

A crise capitalista

 A crise cíclica da economia capitalista se desenvolve desde junho de 2019 com enormes consequências para a periferia capitalista. No epicentro da crise – os Estados Unidos – não há consenso que a economia poderá retomar o processo de acumulação no curto e nem mesmo no médio prazo. Ao contrário, para dar apenas um exemplo, a recuperação dos empregos caiu de maneira acentuada em agosto em relação ao mês anterior indicando que o “dinamismo” dos impulsos monetários do FED apresentam limites objetivos. Em julho foram criados 943 mil empregos com salários baixíssimos enquanto que em agosto apenas 235 mil! Em junho, os 850 mil empregos criados traziam também outra má notícia: a maior parte – aproximadamente 2/3  – se concentrava nos setores considerados “improdutivos”, ou seja, longe do chão da fábrica. Ainda que a situação vai certamente variar mais, o “acidente” é expressão dos obstáculos inerentes ao processo de acumulação no interior da crise. Não há que deixar dúvidas sobre o essencial: crise e superlucros marcam a evolução da economia capitalista, especialmente no centro, nos EUA. Nos últimos dois trimestres crescem tanto os lucros das corporações não financeiras (de 9,1 para 10,6), quanto das corporações financeiras (de 0,3 para 11,1%). Ademais, o lucro das corporações multinacionais dos EUA no resto do mundo cresceu de 2,2 para 2,4%. O período analisado é obviamente curto, mas não devemos desprezar o indicador.

 A despeito da elevada taxa de lucro, há que manter cautela sobre as possibilidades de recuperação da economia mundial e, portanto, sobre a sorte das economias periféricas. O grau de endividamento das empresas é, por exemplo, um ponto crucial para colocar as barbas de molho. A “bolha especulativa” segue de vento em popa nos EUA e é inseparável da gigantesca intervenção estatal em favor dos monopólios. As ações nos Estados Unidos batem todos os recordes: 31% em 2019, 18% em 2020 e nada menos do que 20% acumulado em dólares em 2021. Ainda assim, o setor produtivo segue sem revelar possibilidade de recuperação vitalizante. O sistema não colapsou, mas tampouco se recupera da crise: as contradições se acumulam, ganham renovada força…

 Ninguém hoje pode apostar (setembro de 2021) na sorte da recuperação do processo de acumulação nos EUA. Biden segue turbinando os déficits estatais com a aprovação do pacote de estímulos de nada menos que US$ 1,9 trilhão. Em consequência, grande parte da população recebeu o auxílio de US$ 1.400, mais US$ 300 de auxílio-desemprego semanal para 9,5 milhões de pessoas, além de US$ 350 bilhões em ajuda aos Estados endividados.

 Os chamados estímulos fiscais e monetários parecem tocar no seu limite e há meses economistas que apoiam Biden indicam que essa hora já chegou. No entanto, poderá a economia funcionar sem os estímulos? Improvável! Poderá seguir com eles? Pouco provável também, ainda que a fé keynesiana possivelmente dobrará a aposta!

 Na periferia do sistema, a crise segue consumindo riqueza e aprofundando o caráter dependente do desenvolvimento capitalista. A emergência do capitalismo dependente rentístico sepulta de uma vez por todas as esperanças em qualquer modalidade de desenvolvimentismo que outrora alimentou os sonhos dourados da esquerda liberal. Portanto, as tensões inerentes ao desenvolvimento capitalista rentístico no Brasil seguirão atuando com força e tencionando as necessárias mudanças do sistema político. Não há razão para supor que a interpretação da crise por parte da esquerda liberal possa mudar. Ao contrário, na medida em que a crise exibe feição mais nítida, a esquerda liberal se aferra ainda mais em sua essência vazia. A crise, para a esquerda liberal, é expressão do “golpe” de 2016, das manifestações articuladas pelo imperialismo em 2013, da resistência atávica das classes dominantes “de extração escravocrata”, da intolerância da “casa grande” para com o povo e outras tantas quinquilharias ideológicas que infestam as redes digitais turbinando a alienação sobre o real. Com esse palavrório pretendem ocultar as enormes transformações que a administração petucana operou desde 1994 e, em especial, aquelas que ocorreram com maior velocidade a partir de 2002 com Lula e Dilma no comando.

 No Brasil, a consciência sobre os efeitos destrutivos da crise cíclica mundial na periferia foi ocultada em larga medida pela luta ideológica em torno da pandemia e da política sanitária do governo dirigido pelo protofascista, finalmente começa a tocar no real. Os dados informam que a queda do contágio e sobretudo de mortes tem sido consistente a despeito do alerta de renomados cientistas que poderia voltar a crescer em setembro. A maioria de nosso povo percebe agora que o problema é, de fato, o enorme desemprego e a queda vertiginosa do salário. Mais ainda: os trabalhadores começam a perceber de maneira ainda mais clara o quanto as sucessivas reformas da legislação trabalhista cobram seu preço de maneira cruel. A capacidade de reação dos sindicatos tem se revelado mínima pois, segundo o DIEESE, em 2020, a maior parte das greves estão localizadas no setor privado, com duração de 1 dia (57,9%), localizadas em pequenas e médias empresas (65,8% até 200 trabalhadores) e 35,9% são greves de advertência. O dado mais importante: 89% das greves têm caráter defensivo, ou seja, não fazem senão garantir normas contratuais (atraso no pagamento de salários, férias, etc.) ou mesmo resistir a retirada de conquistas passadas. O fenômeno obedece a determinações conjunturais (elevado desemprego), mas é também efeito da enorme derrota histórica dos trabalhadores sob condução da hegemonia liberal que possui enorme impacto nos sindicatos e numa geração de sindicalistas incapazes de transcender os limites estreitos da consciência ingênua e da luta economicista.

 Crise e superlucros comandam a crise tal como anunciamos em uma das reuniões do DN do PSOL cuja análise pode ser lida aqui. O processo de acumulação rende lucros extraordinários na dinâmica da centralização e concentração do capital. É processo inerente ao desenvolvimento capitalista, mas assume feições particulares no capitalismo rentístico que domina a cena de maneira irreversível. Portanto, não há possibilidade alguma de “retomada do crescimento” econômico como pretende a direita liberal (Paulo Guedes) e menos ainda crescimento com distribuição de renda como alimenta as esperanças da esquerda liberal no programa de Ciro ou Lula.

 A natureza particular da crise cíclica dinamiza o desenvolvimento capitalista rentístico e não faz menos do que aprofundar a posição do Brasil na divisão internacional do trabalho como mero exportador de produtos agrícolas e minerais. O mercado mundial comanda! A propósito, o CRB (Commodity Research Bureau) indica que desde novembro de 2020 os preços de matérias-primas e produtos agrícolas sobem no mercado mundial, condição que reforça o poder político do latifúndio, das empresas mineradoras, do setor comercial e dos banqueiros nos países da periferia. Na exata medida em que os preços internacionais de produtos agrícolas e minerais sobem, a coesão burguesa aperta ainda mais a corda no pescoço da burguesia industrial aprofundando a dependência, da mesma forma que quando os preços caem, não resta alternativa senão aumentar a oferta para compensar na quantidade a queda no valor. No caso brasileiro, essa dinâmica explica em larga medida o avanço da fronteira agrícola de maneira permanente à custa do meio ambiente. No entanto, tampouco podemos assegurar que entramos numa fase de elevação permanente dos preços dos produtos agrícolas e minerais que permitiriam às classes dominantes condições mais favoráveis para administração capitalista da crise. É certo que Paulo Guedes não desperdiça oportunidade e segue na batida ultraliberal que, na prática, representa a consciência dos interesses burgueses na fase rentística, a despeito das reclamações de frações perdedoras, em especial a fração industrial.

 Em março passado, por exemplo, Guedes aprovou duas medidas (Resolução GECEX nº 173/21 e a Medida Provisória nº. 1.040/21) que reduziram em 10% o imposto de importação de máquinas e equipamentos mesmo com o “protesto” obviamente impotente da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) – o setor mais importante da burguesia industrial – realizado numa audiência da Câmara dos Deputados no dia 14 de julho. A desnacionalização do setor responsável pela elevação da produtividade de qualquer país capitalista é um golpe de morte na fração industrial da burguesia. Esse processo avança com velocidade desde 1994 – durante o sistema petucano – e ganhou renovada força nos últimos anos e, em especial, no atual governo.

 É sem dúvida um caso pelo menos digno de nota na história do desenvolvimento capitalista na América Latina, pois estamos diante de um fato que requer explicação: a burguesia industrial morre sem travar uma luta para manter a hegemonia na coesão burguesa. Há boas razões objetivas para tal, como veremos mais adiante. Portanto, a coesão burguesa segue sob comando da fração financeira que organiza vários mecanismos pelos quais a valorização fictícia do capital comanda a política econômica em sólida aliança entre todas as frações do capital. As mudanças estruturais no Estado – autonomia do Banco Central, redução de tarifas para importação, etc. – obedecem, portanto, a esses interesses. Nesse contexto, pouco importa se ilustres herdeiros e mesmo executivos do setor financeiro saem às ruas para aderir a “movimentos” contra Bolsonaro em nome da “estabilidade política”. A verdade é que não há razão objetiva para destituir o protofascista que garante lucros extraordinários à coesão burguesa de tal forma que os descontentes não conseguem levar o conjunto dos capitalistas para as filas da destituição e, em consequência, o presidente da Câmara segue sob controle do processo político, pois não está autorizada pelos interesses burgueses. Somente um apelo republicano rasteiro, liberal e ingênuo poderia supor que Bolsonaro traz muita “instabilidade” e não guarda respeito pela “liturgia do cargo”, razão pela qual deveria ser destituído. A quantidade de crimes que cometeu já seria o bastante para destituí-lo não fossem os interesses burgueses que o mantêm em função da implantação do ultraliberalismo sob batuta de Paulo Guedes. Ocorre grave inversão no discurso político do liberalismo de esquerda: em lugar de explicar as razões objetivas pelas quais a coesão burguesa mantém o protofascista no comando das ações a despeito de 120 pedidos registrados no parlamento, exibem todos os dias os desejos republicanos idealistas pelos quais Bolsonaro deveria ser destituído!

 Nessa breve exposição, não podemos aprofundar cada aspecto da crise por nós mencionada. No entanto, há boas razões para manter a atenção sobre o pulsar da crise. Há no país grave endividamento das empresas, em parte induzido pelo Estado, em parte pelas oportunidades oferecidas pelo mercado mundial. A apologia do sistema indica que sofremos uma sorte de “endividamento saudável” que na prática constituiu, antes que um sinal de crises futuras, precisamente seu oposto, ou seja, um colchão financeiro capaz de garantir a existência de empresas em caso de turbulência financeira como, por exemplo, uma súbita e significativa desvalorização da moeda nacional. O Banco Central segue na linha otimista afirmando a estabilidade do sistema financeiro diante de semelhante possibilidade. Não poderia ser diferente, pois o BC não está aqui para semear dúvidas. Em crises como as que o sistema vive na atualidade, não podemos simplesmente descartar tal possibilidade, pois a história ensina que, em caso real, os capitalistas não vacilarão em assaltar o Estado via reservas monetárias a despeito de essa não ser uma possibilidade para a próxima segunda-feira.

 

A crise da república burguesa

 O artifício político próprio da esquerda liberal pretende ocultar nada menos que a crise da república burguesa. Na prática, o espírito republicano burguês praticado pela esquerda liberal considera Bolsonaro um “ponto fora da curva”, mero acidente eleitoral, fruto de campanhas midiáticas, de manobras jurídicas e “lawfare”, além de artifícios criados pela ação de propaganda de um Steve Bannon qualquer… Nada poderia ser mais miserável. É a política reduzida à astucia, sem conexões materiais concretas e interesses de classe reais!

 A operação ideológica da esquerda liberal encabeçada pelo PT em geral e por Lula em particular pretende nada menos do que se livrar da responsabilidade por sua própria obra. Ocorre que a administração petucana da ordem burguesa operou profunda transformação na economia, no Estado, no regime de classe e na cultura. Não por mero acidente, mas, precisamente em função da política econômica praticada nos “exitosos” governos Lula e “desastrosos” governos Dilma, a fração agrária do capital (latifúndio) se fortaleceu de maneira extraordinária e a concentração da propriedade fundiária avançou como nunca. A fração comercial igualmente operou intensa concentração e centralização do capital com lucros comerciais e financeiros, de maneira geral, elevados. O capital industrial sofreu grave regressão, razão pela qual nem mesmo com lupa os ideólogos da “revolução industrial brasileira” podem identificar avanços na política econômica do petismo, limitando-se, tão somente, a derramar lágrimas pelo processo de “desindustrialização” que divulgam todo santo dia exibindo apenas sua impotência crônica. De resto, a fração financeira não somente mantém o controle do processo, mas comanda as principais ações do Estado para garantir vida eterna ao rentismo não como algo passageiro ou fruto da elevada taxa de juros, mas como expressão de transformações estruturais do desenvolvimento capitalista na periferia capitalista latino-americana com forte impacto no Brasil, até então o país de desenvolvimento industrial relativo mais importante da região.

 A “Ponte para o futuro” que deu impulso à destituição da presidente Dilma e garantiu Michel Temer na presidência não é apenas expressão da “política neoliberal”, mas, ao contrário, expressão dos interesses orgânicos da coesão burguesa que dirige o país com particular zelo desde 1994. É, portanto, resultado necessário da política econômica dos governos Lula e Dilma e da maturidade burguesa sob hegemonia da fração financeira garantida pelos governos do PT por longos 14 anos. É claro que a crise de 2008/2009 empurrou a coesão burguesa lentamente para a oposição ao governo Dilma e, posteriormente, para sua destituição. No entanto, esse movimento é fruto das condições próprias do processo de acumulação vigentes na época que exigiam medidas urgentes para recuperar a taxa de lucro. A crise, portanto, não foi artificial, criada por ódios mesquinhos de políticos vulgares e pequenas vinganças dos partidos de oposição descontentes com sucessivas derrotas eleitorais. Ao contrário, a disposição dos políticos vulgares foi instrumentalizada pela coesão burguesa para viabilizar e criar as condições para a rápida recuperação do processo de acumulação. A centralidade do processo de crise, acumulação e transformação do capitalismo no país não constitui o suposto economicismo da análise marxista como pretendem os novos profetas que alimentam a ideologia do liberalismo de esquerda. A lenta e inexorável emergência do capitalismo dependente rentístico explodiu o sistema político e a modalidade de gestão praticada pelos governos do PT. A maior prova de que a esquerda liberal se adaptou às novas condições pode ser observada pelo fato de que nenhum candidato à presidência da república na atualidade está claramente disposto ou sequer menciona a intenção de tocar nos pontos nervosos do sistema vigente: a autonomia do Banco Central, a administração da dívida pública, o processo de abertura completo da economia, a superexploração da força de trabalho após sucessivas e exitosas reformas trabalhistas. Ao contrário do que a consciência ingênua supõe, a esquerda liberal nada aprendeu com o “golpe” que destituiu a presidente Dilma, exceto o aumento da disciplina em seguir servindo fielmente a coesão burguesa sem tocar nos pilares da dominação classista e sem tocar nas bases do processo de acumulação nos termos atuais. Essa é a razão pela qual Lula, para dar apenas um exemplo, adotou o bordão de “incluir os pobres no orçamento” como linha programática mais importante de seu discurso político.

 A incapacidade de tocar nas questões centrais necessárias para avançar no antigo programa desenvolvimentista obriga a esquerda liberal a mera modulação do déficit fiscal como via de cooptação eleitoral da massa de oprimidos e explorados que não para de crescer. Ora, os pobres já estão no orçamento e não precisamente pela ação de keynesianos, mas pelas mãos dos infiéis ultraliberais que praticam o gasto público – maior déficit público da história nacional – turbinando o rentismo! A propósito, segundo os dados oficiais, o pagamento do “Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, conhecido como BEm, fechou mais de 3,2 milhões de acordos entre trabalhadores e empresas em 2021. Foram beneficiados quase 2,6 milhões de trabalhadores e 634 mil empregadores durante quatro meses, de 27 de abril a 25 de agosto.”. Ademais, o Bolsa Família alcançou no mês de abril “um total de 14,6 milhões de famílias beneficiárias, com: 9,7 milhões de famílias recebendo o Auxílio Emergencial 2021 via público Bolsa Família, 413 mil recebendo o Auxílio Emergencial 2021 via público Cadastro Único ou Público Geral, e 4,8 milhões recebendo benefícios do PBF. Em razão do recebimento do Auxílio Emergencial 2021, 10,1 milhões de famílias estão com os benefícios do PBF suspensos.”

 A despeito da interrupção do pagamento e os limites ultra restringidos impostos pelo governo, não se deve desprezar os efeitos políticos das medidas e tampouco a digestão moral da pobreza dos antigos programas petistas mantidos pelos governos de Temer e Bolsonaro. Não há indícios de que a esquerda liberal possa avançar muito mais do que os ultraliberais na “questão social” e, como de costume, colocarão suas esperanças na “retomada do crescimento” para superar todos os obstáculos reais produzidos pela crise.

 A coesão burguesa conseguiu algo essencial nesse período especial: as sucessivas reformas da lei trabalhista permitiram todo tipo de recursos para aumentar a exploração do trabalho a níveis jamais observados. A taxa de inflação avançando para dois dígitos indica que também por força do fenômeno não somente a pobreza e fome se ampliam, mas também os lucros.

 O crescimento da insatisfação popular com o desemprego, a inflação, a corrupção, a lenta vacinação, entre outros efeitos destrutivos da crise, poderá levar à conformação de um movimento de protesto ou mesmo explosões sociais contra o governo? É possível que tais explosões ocorram e que as eleições de 2022 ocorram num clima radicalmente distinto do que atualmente vivemos em que as tensões são latentes, mas, finalmente, não explodem. No entanto, a esquerda liberal tem atuado até agora como uma garantia de que qualquer solução deverá ser encontrada dentro da ordem e jamais contra a ordem burguesa. Tal orientação deixa a direita liberal em situação confortável na administração capitalista da crise e não tem produzido outro rumo senão colocar a esquerda liberal cada dia mais à direita, em sucessivas demonstrações de fidelidade às “regras do jogo democrático”.

 A esquerda liberal aposta na recomposição do sistema político enquanto o governo não faz menos do que aumentar a pressão sobre o mesmo. Em termos práticos, o protofascista pretende tão somente reproduzir com Lula a fórmula que resultou eficaz contra Haddad: atacar o sistema político – congresso, tribunais, imprensa, partidos, etc. – e colocar Lula e os demais na defesa abstrata da democracia como meio de defender as instituições da república burguesa apodrecida. A despeito dos avanços e recuos que pratica desde sempre – cuja manobra mais importante foi, sem dúvida, o ato do dia 7 de setembro – o protofascista não se afastará da linha que escolheu sem vacilação na última disputa presidencial. As razões são óbvias, pois Bolsonaro não pode entregar nenhuma de suas promessas. A primeira delas é emprego e renda, a segunda o fim da corrupção e a terceira um novo sistema político. Nesse aspecto, um novo sistema político somente poderia nascer por iniciativa do protofascista como uma modalidade particular de Estado policial combinando medidas amparadas pela Constituição com a pressão e apoio dos militares.

 Na situação econômica não há possibilidades de qualquer recuperação da economia para 2021 a ponto de influenciar decididamente nas eleições, razão pela qual Bolsonaro seguirá forçando a polarização com Lula e, em menor escala, com Ciro caso necessário. Portanto, uma ação como aquela representada pelas consequências do Plano Real que deu a vitória a FHC ou os resultados de curto prazo no segundo mandato de Lula que permitiram a eleição de Dilma, é cenário completamente descartado. Em consequência, a tensão de natureza “ideológica” com valorização de temas diversionistas ou secundários, além da agenda de caráter moral, devem ser ativados de maneira permanente por Bolsonaro contra a esquerda liberal. Da mesma forma, o foco que a esquerda liberal dedica agora à questão da inflação e do desemprego não terá a eficácia de outros tempos para garantir maioria eleitoral e menos ainda maioria social sem permanente convocatória militante. Ocorre aqui, como em outros países da AL, que a esquerda liberal não tem capacidade de convocatória nos temas cruciais que somente poderia ser assegurada a partir de conquistas reais (reforma agrária, urbana, elevação dos salários, etc.) que não figuram mais no programa econômico da frente ampla que Lula organiza com toda sorte de políticos corruptos e funcionais aos interesses burgueses.

 Também nesse contexto, é muito pouco provável que o debate eleitoral – se o calendário for mantido – volte à antiga disputa orientada pela decisão em torno de quem tem a melhor política pública para resolver problemas cada dia mais graves da maioria absoluta da população e especialmente dos trabalhadores. O terreno da disputa não será, portanto, aquele em que políticos mais ou menos enquadrados por seus marqueteiros praticam a arte de iludir com bordões emocionais e soluções fáceis como em outros tempos.

 

Quem ficará com a bandeira moral?

 A bandeira da moral – na forma concreta da luta contra a corrupção – foi no início do século uma bandeira da esquerda latino-americana. No Brasil, até antes de chegar à presidência em 2002, a denúncia da corrupção pertencia sem sombra de dúvida ao PT. Entretanto, a corrupção do Estado brasileiro sob comando dos governos do PT deixou o “combate à corrupção” na mão da direita. Moro expressava duas facetas da moral como impotência política em ação embora útil na disputa jurídica, política e de opinião pública. A primeira, a suposição de que o Judiciário poderia levar até o fim e o fundo a luta contra a corrupção a despeito dos interesses burgueses e dos políticos vulgares. A segunda, que poderia, nos marcos de um sistema apodrecido até a medula, produzir uma sorte de “regeneração moral” do sistema político fraturado. Bolsonaro derrotou Moro, como sabemos, e segue, a despeito das graves acusações de corrupção que afetam ele e sua família, no comando da empreitada moralista.

 Ora, nos últimos meses, não somente Lula se beneficiou com o fim do lajavatismo, mas um punhado de políticos vinculados estreitamente à corrupção voltaram à cena política ou estão em vias de lográ-lo. No dia 23 de agosto, por exemplo, a segunda turma do STF anulou as condenações de “organização criminosa” de Gedel Vieira permanecendo somente a acusação leve de crimes eleitorais que ele responderá em liberdade. Em 28 de abril o TRF-4 revogou a prisão de Eduardo Cunha que permanecerá em prisão domiciliar sem tornozeleira eletrônica. Em 26 de agosto o TSE absolveu o bispo Crivella da acusação de “abuso de poder político” e devolveu o passaporte ao ex-prefeito. Aécio Neves já desfila em Brasília com desenvoltura ao assumir em 12 de março nada menos que a presidência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Lula segue sendo absolvido de todos os processos e em 13 de setembro foi a vez da 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo absolver o ex-presidente da acusação de “tráfico de influência internacional”. Também em 19 de março, Michel Temer (juntamente com o coronel Lima e seus assessores) foi absolvido pela 12ª vara Federal do DF de maneira sumária das acusações feitas pelo MPF acerca do cometimento dos crimes de lavagem de dinheiro, corrupção ativa e corrupção passiva na edição do Decreto dos Portos.

 É claro que Bolsonaro contribuiu notavelmente com a destruição da Lava Jato. Também é igualmente evidente que a maioria absoluta dos partidos políticos e suas cúpulas pretendiam a “volta à normalidade” e o fim do “ativismo judicial” após a queda de Moro. Mas o tema será esquecido pela massa? Bolsonaro não seguirá disputando a primazia de paladino no combate à corrupção mesmo com os sucessivos escândalos de seu governo e família?

 A moral é a impotência em ação, vaticinou com precisão Marx. No entanto, na história brasileira, a “denúncia da corrupção” sempre foi arma eficaz. Lula praticou exaustivamente até sua chegada à presidência da república. Bolsonaro atuou com rara habilidade na eleição contra Haddad. A desmoralização ética da esquerda liberal ainda consome muitas energias e mantém a incompatibilidade entre setores expressivos da classe média contra Lula da mesma forma que muito lentamente produz efeitos corrosivos no outrora prestígio do protofascista como baluarte moral entre a podridão política. Mas se os dois bandos perdem, diante do fenômeno, as sucessivas atuações dos tribunais após a fritada de Moro por Bolsonaro, o sistema político no seu conjunto se desgasta diante do povo que observa atônito a incapacidade dos políticos burgueses em enfrentar o assalto ao Estado e a corrupção em todos os níveis. O regime é corrupto e a república burguesa não pode ser menos. Basta ver o assalto ao Estado por meio do sistema de privatizações, da política cambial, fiscal e monetária que não são consideradas pelas classes dominantes e tampouco pela oposição liberal como fonte decisiva de roubo da riqueza estatal, razão pela qual permanece reduzida aos “crimes de políticos corruptos” sem tocar em seu caráter de classe e sistêmico.

 

A falta de diagnóstico da esquerda liberal

 Na esquerda liberal Bolsonaro é considerado um personagem em retirada. Não poucas vezes é identificado como “isolado” e reduzido à luta pela “sobrevivência política” própria e de sua família. Ademais, com frequência, a esquerda liberal considera Bolsonaro um trapalhão, ignorante e visivelmente perdido nos limites de sua estratégia de fechamento do regime. Ora, é hora de considerar que seu ritmo oscilante e o navegar ziguezagueante que o caracteriza é precisamente o movimento que necessita para acumular forças militantes e eleitorais para os combates nos quais esta empenhado. As considerações segundo as quais a burguesia estaria dividida e necessitaria uma alternativa que garanta “estabilidade” ao sistema político é discurso corrente nas filas da esquerda. Em nossa opinião, a coesão burguesa não possui nesse momento alternativa senão mantê-lo na presidência – portanto sua destituição está descartada – e seguir implementando a política econômica que garante seus lucros extraordinários e as reformas que desde sempre defende. A coesão burguesa sabe, ademais, que todos os candidatos da esquerda liberal com possibilidades eleitorais – Lula e Ciro – não arriscam ruptura alguma em relação ao projeto ultraliberal. Em consequência, quando alguns capitalistas e empresários midiáticos se manifestam, limitam-se tão somente a defender a “questão social” e denunciar a falta de “espírito republicano” do protofascista que ocupa a presidência da república. A capacidade de convocatória do protofascista ficou comprovada em 7 de setembro e é muito clara sua pretensão de transformar sua base eleitoral numa força militante com capacidade de intervenção política nos momentos decisivos. Portanto, nesse contexto, ele obteve uma vitória dia 7 de setembro, sobretudo após o rotundo fracasso da convocatória do MBL no coração burguês do país.

 Os sucessivos ataques e recuos diante do STF – um dos poderes da república burguesa em crise – demonstram as dificuldades da esquerda em sair do labirinto no qual entrou a partir das últimas eleições presidenciais. A defesa abstrata da democracia – que com insistência temos indicado desde 2018 – praticada pela esquerda liberal oculta questões decisivas. O protofascista ataca o STF e a esquerda dotada de surpreendente espírito republicano defende veladamente aquele tribunal que, na prática, termina por validar o sistema político odiado pelo povo. Ademais, a esquerda liberal não observa que o STF manda prender personagens de terceira categoria (Roberto Jefferson, o blogueiro Wellington Macedo, Sara Winter, o deputado Daniel Silveira, etc.) enquanto sanciona os interesses da coesão burguesa que, finalmente, sustentam o governo Bolsonaro. A lista é interminável! Em 15 de março de 2021 o STF decidiu manter a lei que proíbe reajustes dos servidores públicos até dezembro julgando constitucional a LC 173/20 em resposta às ADIns perpetradas por PT, PDT e Podemos; na mesma toada, em 25 de agosto o egrégio tribunal aprovou por 8 x 2 a constitucionalidade da LC 179/2021 que deu “autonomia ao Banco Central”, ou seja, controle do banco pelos rentistas; em 2019 a suprema corte decidiu que a privatização das estatais (Petrobrás) necessitava apoio do Congresso para voltar atrás em outubro de 2020 e autorizar a venda de 8 refinarias; em 8 de fevereiro de 2021, o plenário do STF rejeitou por 5 x 2 a suspensão da privatização da Casa da Moeda, do Serpro, da Dataprev e outras estatais, autorizando a imediata venda das empresas; de resto, desde 2017 pelo menos 34 ADIns destinadas a barrar a legalidade da superexploração dos trabalhadores em função das sucessivas “reformas da lei trabalhista” dormem nas gavetas sem que os togados manifestem qualquer intenção de decidir a matéria alegando esperar o “amadurecimento do debate”. Ora, enquanto isso, os capitalistas atuam com energia fazendo valer os efeitos das reformas nas costas dos trabalhadores. Essa é a corte da legalidade! Essa é a corte da democracia! Essa é também a legalidade e a democracia que nos mata!

 A operação é simples: enquanto o protofascista aproveita toda e qualquer oportunidade para atacar o STF que a maioria do povo odeia, a esquerda mantém silêncio ou simplesmente apoia a defesa da democracia validando, assim, a corte suprema. Na mesma toada, o tribunal não vacila em apoiar todas as medidas destinadas a validar a superexploração dos trabalhadores em favor dos capitalistas!

 Da mesma forma, a presença de milhares de militares da ativa e reserva em todos os escalões do governo não pode ser observado apenas como expressão de um meio para militares atuarem de forma corporativa em busca de melhores salários. É, antes de mais nada, expressão de uma hegemonia consolidada nos últimos 20 anos que não permitirá uma virada brusca ou menos ainda “aventuras” conduzidas pela esquerda liberal. A hegemonia pró-imperialista e alinhada com os Estados Unidos que em seu interior se verifica não é fruto de improviso, mas de cálculo longamente elaborado em perfeita articulação com o Comando Sul dos Estados Unidos. Portanto, na prática, a esquerda liberal nada sabe dizer sobre uma nova doutrina militar e o silêncio que mantém sobre esse tema crucial é revelador de sua escassa vocação para os temas relativos ao poder e o quanto permanece cativa de uma concepção parlamentar de política. Ora, sem uma proposta de doutrina militar a democracia burguesa será no mínimo uma “democracia tutelada” ou restringida não apenas pela falta de condições econômicas e culturais de nosso povo, mas, sobretudo, pela tutela militar sobre seus limites objetivos.

 Portanto, é preciso compreender que o ascenso da direita ultraliberal corresponde a necessidades objetivas da crise da república burguesa e opera como espécie de contrarrevolução preventiva, tal como no passado. Nesse sentido, pouco importa se o otimismo eleitoreiro da esquerda liberal afirme a cada mês que Bolsonaro “derrete nas pesquisas eleitorais”, pois ele é nada menos que expressão de uma direita que finalmente, após muitas décadas, encontrou sua tradução política como expressão da consciência burguesa em tempos de crise. Tal como temos afirmado desde 2018, a direita chegou pra ficar!

 Ademais, em 16 de setembro a câmara dos deputados aprovou, por 22 a 7, o PL 1595 de autoria do major Vitor Hugo ampliando os poderes da Lei Antiterrorista sancionada pelo governo do PT (Dilma). A consciência ingênua é incapaz de inscrever a iniciativa parlamentar na estratégia de Bolsonaro de “atuar dentro das quatro linhas”, ou seja, utilizar os poderes constitucionais existentes para se manter no governo e ampliar as condições políticas necessárias para aprofundar ainda mais a superexploração da força de trabalho e seguir no assalto ao Estado como condição para manter a coesão burguesa cativa de seus interesses. Nesse terreno, descartamos por completo a suposta vocação democrática e republicana de “setores burgueses” para os quais, supostamente, Bolsonaro produz instabilidade para o ciclo de negócios e, em consequência, esta se tornando um obstáculo para a burguesia. Não há antecedente histórico de compromisso democrático da burguesia; ademais, a existência de burgueses que somam com Lula ou Ciro, por mais midiáticos que possam ser (Luiza Trajano, proprietária da Magazine Luiza, por exemplo) não representam o interesse da classe a que pertencem!

 Na mesma medida, é preciso reafirmar nossas posições anteriores: todas as tentativas de transformar protestos sucessivos em um movimento de massas fracassaram, tal como advertimos que ocorreria. A despeito dos efeitos do desemprego e da inflação, não podemos afirmar que os protestos anunciados para outubro garantam a retomada da iniciativa das classes populares contra a exploração e a violência a que estão submetidas desde janeiro de 2015. No entanto, podem expressar o crescente descontentamento com as condições de vida e trabalho sem, contudo, devolver vitalidade e menos ainda credibilidade à esquerda liberal encabeçada por Lula. Em larga medida, as imensas dificuldades de constituir um movimento de massas se deve precisamente à derrota histórica do PT em seus 14 anos de governo. Não basta, nesse sentido, afirmar a “necessidade de uma frente ampla” para barrar Bolsonaro agora ou derrotá-lo nas próximas eleições. É engano supor que a derrota eleitoral de Bolsonaro poderá conter as pressões objetivas da crise da república burguesa em aceleração e abrir um processo de regeneração política e econômica do país. Ademais, as manifestações sob controle de um calendário e das exigências eleitorais da esquerda liberal poderão constituir um movimento de massas com programa e consignas capazes de superar aquele fracasso histórico que a classe dominante segue atribuindo “à esquerda”, embora seja um fracasso do PT, de Lula, de Ciro, do PC do B, etc. É o fracasso histórico de uma estratégia que, antes de constituir um processo de acúmulo de forças para as classes subalternas e transformação da vida material da classe trabalhadora, representou intenso período de alienação e despolitização das massas a partir de um programa próprio.

 Portanto, a despeito do clima eleitoral e das esperanças derivadas da concepção parlamentar de política, não há evidência alguma de que a esquerda liberal ensaia qualquer movimento para enfrentar os dilemas inerentes à sua atuação dentro da ordem e contra a ordem burguesa, particularmente decisivos nas condições do capitalismo dependente rentístico. Ao contrário, todos os dias, a esquerda liberal dá demonstrações inequívocas de que não somente nada aprendeu com as derrotas recentes, senão que segue movendo com força a manivela das ilusões republicanas que, finalmente, a levaram ao desastre completo consolidado com a destituição sem luta de Dilma.

 Nesse sentido, é preciso afirmar categoricamente que a candidatura Lula e eventual vitória (impossível de prever algo com base nas pesquisas que turbinam o otimismo vulgar) nas eleições de 2022 são incapazes de fazer retroceder as conquistas burguesas que garantem a superexploração da força de trabalho e lucros extraordinários à coesão burguesa. Portanto, nas condições atuais, não devemos ter dúvidas que um governo da esquerda liberal não poderá ser senão um governo de enorme instabilidade política que certamente produzirá igual desconfiança por parte das classes dominantes. Na mesma medida, um governo da esquerda liberal nas condições atuais será, sem sombra de dúvidas, um governo cativo de permanentes provas e demonstração para com a coesão burguesa, razão pela qual não se afastará da economia política própria do capitalismo rentístico e da república burguesa em crise. Em consequência, os tempos da oposição parlamentar tucana aos governos petistas típicos dos governos de Lula terminaram para sempre: a oposição de direita, liderada por um protofascista ou seu sucessor, chegou para ficar. Bolsonaro, tal como temos repetido dezenas de vezes, “não é um ponto fora da curva, mas o próprio movimento da curva”. Antes de um acidente eleitoral, é um movimento orgânico da crise brasileira e das exigências da economia política inerente à fase rentística do desenvolvimento capitalista no Brasil.

 

O congresso do PSOL

 Tal como prevíamos e alertamos reiteradamente ao longo dos últimos três anos aos simpatizantes, militantes e eleitores do PSOL, o congresso do partido foi organizado para garantir a maioria necessária destinada a sustentar ainda no primeiro turno o apoio a Lula e à estratégia de conciliação de classe precisamente quando a sociedade brasileira apresenta nítida configuração de radicalização política. O PSOL, portanto, sucumbe ao desafio histórico e ninguém poderá assegurar futuro socialista ao partido. Ao contrário, a hegemonia liberal em seu interior é, a exemplo de todos os demais partidos com presença eleitoral-parlamentar, completa e definitiva. Na Revolução Brasileira jamais alimentamos qualquer expectativa ou projeto de “disputar o partido” em favor de nossas teses. Desde o início, tomamos o PSOL como uma plataforma para discutir as teses da revolução brasileira que agora, após nossa iniciativa na última disputa no interior do partido para as eleições presidenciais, tem sido gradualmente incorporada por outras tendências dentro do partido e mesmo por outros partidos políticos. No entanto, a recuperação dessa tradição crítica sem a qual não poderemos avançar na luta teórica e numa nova práxis política, é muito claramente débil, sem referências históricas e não raras vezes, puro artifício retórico. Nesse contexto, a luta teórica sobre a interpretação do capitalismo dependente rentístico e a história da luta revolucionária no Brasil se apresenta como tarefa de primeira ordem para separar o joio do trigo, estabelecer rigor teórico que tem sido artigo em falta nas correntes internas do PSOL e também no amplo espectro da esquerda brasileira.

 É importante observar que o PSOL chega ao seu limite objetivo que é também o limite objetivo de sua hegemonia liberal. Nas condições atuais, a chamada agenda identitária – um dos pilares que sustenta a hegemonia liberal na esquerda – revela-se, finalmente, tal como prevíamos há muito tempo, completamente impotente para ganhar as maiorias. A ideologia pequeno-burguesa que supõe a possibilidade de enfrentar e solucionar as “opressões” no interior da ordem capitalista, desabou. A opressão e exploração das maiorias em meio a grave crise econômica e política revela que ninguém pode evocar para si um sofrimento particular mais intenso ou terrível que o sofrimento reservado às maiorias no capitalismo dependente rentístico. No entanto, a agenda identitária não está completamente batida pois é parte constitutiva da ideologia da classe dominante que a cada dia é capturada pela direita liberal, tal como demonstra agora de forma cabal a posição do governador tucano do Rio Grande do Sul que oficialmente se declara gay e entra na disputa eleitoral contra a homofobia acumulando forças para a disputa presidencial. A intensa luta ideológica, que contou até agora com a negativa da esquerda em aceitar o horizonte socialista e revolucionário como único terreno em que necessitamos avançar para alavancar o protesto popular em direção a um sólido movimento de massas para além das conveniências eleitorais, mudará, ainda que lentamente.

 Não é ocioso afirmar que o PSOL não é um partido socialista militante. É um partido com vocação socialista vaga, superficial e basicamente eleitoral. No cenário atual, os partidos recusam afirmações programáticas e ideológicas, opção que não faz menos do que produzir mais confusão política, além de terreno fértil para o avanço das teses da direita de corte fascista. A ausência de uma opção partidária orientada pelo radicalismo político e sustentada num programa sólido a partir da correta interpretação das transformações capitalistas recentes e dos efeitos deletérios da crise cíclica global sem horizonte de superação, seguirá jogando águas no moinho da direita. A simples afirmação da tradição humanística a que a esquerda se apegou é completamente insuficiente para enfrentar a guerra de classes em curso com perfis cada dia mais definidos. No entanto, não há que produzir enganos. A vida partidária, eleitoral, ainda ocorrerá durante algum tempo nos marcos estreitos do cretinismo parlamentar como característica dominante entre nós. Não devemos ceder em nossas posições. Ao contrário, precisamente nesse tempo marcado pela consciência ingênua nas possibilidades de conciliação de classe deverá merecer dos revolucionários posições claras a despeito do aparente “isolamento” que tem sido via de regra mera desculpa decadente para seguir na marcha do cretinismo parlamentar e das ilusões liberais sobre as possibilidades do republicanismo no Brasil. A guerra de classes declarada pela burguesia ainda no governo Dilma não pode deixar ilusão alguma sob a natureza específica dessa crise e os graves perigos que ameaçam a sorte dos trabalhadores e do país.

 

O que fazer?

 No contexto da crise em curso, a tarefa fundamental é a reconstituição de um referencial socialista e revolucionário para a esquerda brasileira. Nossa contribuição – a contribuição da Revolução Brasileira – já é e será ainda mais decisiva no futuro imediato. Nenhuma liderança política ou partido possui hoje capacidade de mobilizar as amplas massas submetidas a intensa guerra ideológica (artificialmente considerada “guerra cultural”). A proximidade do processo eleitoral sob hegemonia do liberalismo – de direita e esquerda – tende a ocultar ainda mais a natureza específica da crise atual alimentando ilusões de que nos marcos da ordem burguesa há solução para o país e para a opressão e exploração dos trabalhadores. O horizonte socialista seguirá subalternizado e os políticos burgueses (Lula, Ciro, etc.) reforçarão todas e cada uma das ilusões liberais com bordões cheios de otimismo alienante. O processo de superação dessa hegemonia será necessariamente lento a despeito da violência e caráter destrutivo da crise. Portanto, tal como afirma o bordão popular, “o apressado come cru”.

 É comum ouvir nossos adversários – dentro e fora do PSOL – afirmar que não temos tática. Com frequência reconhecem o papel estratégico que cumprimos na recuperação e atualização da Revolução Brasileira como novo horizonte na vida partidária, mas advertem que seguimos sem “tática”. Ora, o que apresentam nossos adversários? Nada, rigorosamente nada. Exceto, é claro, a filiação na candidatura de Lula ou ainda de Ciro! E o que oferecem ambos, senão uma “estratégia” de conciliação da “família brasileira” após a burguesia declarar a guerra de classes contra o povo num processo intenso de aumento da exploração e da violência? Afinal, é possível, viável, um projeto de conciliação de classes baseado num “programa antineoliberal”? A eleição de Lula e Ciro seria uma boa e necessária estação de baldeação para outro patamar da luta após uma eventual derrota eleitoral de Bolsonaro? Nossos críticos mantêm silêncio sobre o ponto e nada dizem além do tradicional “depois vemos o que fazer, agora a prioridade é parar Bolsonaro”. Ora, se Bolsonaro é expressão da ofensiva burguesa, podemos considerar que a guerra de classes já cumpriu sua função e podemos voltar à normalidade de um programa desenvolvimentista em patamares inferiores, menos ambicioso? Nem os tolos ou cínicos podem responder afirmativamente, pois a crise segue cobrando novos “sacrifícios” aos trabalhadores. Os defensores dessa saída política cuja condição decisiva seria a eleição de um governo de “esquerda” do liberalismo dominante esquecem algo grave: a vitória de Lula ou Ciro seria atribuída à esquerda em geral e, portanto, a crise e a profunda instabilidade nas condições atuais seriam precisamente de responsabilidade de toda a esquerda, inclusive nós! A ultravalorização do voto e da luta institucional cancela na prática, de maneira cômoda, os desafios da luta dentro e contra a ordem que devemos manter em alta. Ademais, é um obstáculo a superar, linha que não implica em omissão política ou timidez diante de processos eleitorais.

Por fim, nosso congresso nacional é uma das tarefas decisivas a enfrentar nessa conjuntura. Essa plenária se insere nesse contexto. Adiante camaradas!

 

 

Nildo Ouriques

Militante pela Revolução Brasileira

 

 

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Comentários

  1. A cada dia fica claro que o túnel é estreito e não tem como voltar, é preciso parar, cavar ao lado uma saída, mas vamos empurrados e sem ter como parar! E Deus olha, se tiver bigodes, os afaga divertindo-se com a inguinorancia, mas faz isto por milésimos de segundos! O universo é Dele, Dela, Delxs. Se for a Mãe, só está a tratar de deixar o melhor cozido pra quem voltar! Voltar? Sei lá! É tanta pataquada que tiremos divindades! A vida é pau, é pedra, é o fim do caminho…nas águas de setembro. Tô fora de embates e tentar convencer os inguinorantes da ignorância. O mal ronda o bem, que resolveu se divertir. Está no divã, mas ainda não percebeu que o terapeuta é apenas um conservador nas teorias psicanaliticas e tem a tomada do choque! Melhor pisar nas areias do mar…sem piche!

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