Por ocasião do 20 de setembro

 

  20 de setembro é um marco histórico para os gaúchos. É o dia em que se comemora a entrada em Porto Alegre pelos revolucionários farroupilhas, marcando o início da Revolução Farroupilha, até hoje tema de incontáveis discussões e alvo de ferrenhas críticas. É discutida a validade da comemoração, a validade da reivindicação da revolução e, por fim, a validade da tradição cultural gaúcha. Esse será o objeto de nossa dissertação, procurando esclarecer um pouco mais sobre o que é ser gaúcho.

 

  Historicamente, podemos identificar uma característica essencial no gaúcho: o caráter libertário, a repulsa a qualquer amarra que o impeça de exercer sua liberdade. Identificamos isso quando fazemos uma digressão histórica no papel do gaúcho nas lutas nacionais de libertação. Ora, podemos encontrar líderes provenientes do Rio Grande do Sul em diversos momentos em que o povo brasileiro tentava encaminhar sua emancipação. Estes líderes carregavam consigo traços marcantes de uma identidade gaúcha. Seriam exemplos disso Luis Carlos Prestes, líder da Coluna Prestes, levante tenentista dos anos 20; Leonel Brizola, líder da resistência contra o golpe civil-militar e da Campanha da Legalidade; Getúlio Vargas, presidente brasileiro que levou adiante a maior industrialização que nosso país já presenciou, apesar de suas limitações; João Goulart e inúmeros outros. Observamos essa bravura em diversos momentos de nossa história, que certamente não foram em vão e contribuíram para a pavimentação do caminho para a construção de um Brasil mais forte e correto.

 

  Esse caráter libertário varia com as condições históricas de seu tempo. Como poderíamos descartar a validade da Revolução Farroupilha se ela foi, de fato, um levante de uma região que se sentia explorada por um poder central? A Revolução Farroupilha foi, essencialmente, um embate entre federalistas e o governo central, refletindo os interesses econômicos de cada um dos lados. Uma guerra é justa quando luta contra injustiças, e não há dúvidas de que a atuação e o posicionamento do governo brasileiro, favorecendo os fazendeiros argentinos e uruguaios em detrimento dos gaúchos, eram injustos – assim como era justa a mobilização dos escravos que sentiram as correntes que os prendiam e morreram tentando se libertar. O que se celebra no feriado do 20 de setembro não é uma derrota, como implicado por muitos que simplesmente não compreendem a magnitude do evento, mas o próprio espírito de correção do gaúcho.

 

  Os que levaram adiante a revolução farroupilha não foram os estancieiros escravagistas: foi a “humanidade sofrida que luta em busca da paz”, nas palavras de Noel Guarany. Os ideais liberais mais avançados o possível para a época e para o caráter de classe dos líderes da movimentação estavam presentes, representados na figura do lendário Bento Gonçalves. Este estava muito bem familiarizado com os conceitos de independência de Lavalleja e do Padre Caldas, “dois gigantes na consolidação da república do Uruguai”, como acusa Elaine Tavares. [1]

 

  Não podemos também esquecer a figura do “herói de dois mundos”, o internacionalista revolucionário Giuseppe Garibaldi, lutador italiano que batalhou tanto por sua pátria quanto pela nossa. Revolucionário, antiescravagista e defensor do sufrágio universal, foi filiado a diversos partidos socialistas e não pode ser ignorado por quem diz lutar pelos trabalhadores. Foi casado com Anita Garibaldi, que também agiu diretamente na Revolução Farroupilha e na unificação italiana; batalhou grávida e mostrou que, como diria o Presidente Mao Tsé-Tung, as mulheres levam sobre seus ombros a metade do céu e devem conquistá-lo.

 

  A cultura gaúcha também é motivo de orgulho e também é celebrada nessa data. A formação da cultura regional do Rio Grande do Sul foi baseada em dois fatores centrais: as etnias e a economia. As etnias são fator central porque o riograndense, assim como o brasileiro, é uma mistura. Os primeiros gaúchos tem a mesma origem do neoguarani, como é exposto por Darcy Ribeiro em “A América e as Civilizações”, descendentes de colonizadores vindos de Assunção que, por mais brancos que fossem, procriavam com índias (charruas e minuanas), resultando em um “mestiço agauchado”. Estes, na convivência com índios tribais e índios missioneiros, se influenciaram e miscigenaram, sendo essa a base étnica do gaúcho. Isso reflete na cultura, obviamente. Um exemplo claro é o uso da boleadeira, antes um instrumento indígena para laçar emas, hoje um instrumento marcante do gaudério campeiro, seja para laçar gado, seja para pelear. O outro fator seria a economia, sendo esta baseada na agropecuária. O RS é conhecido justamente pelo churrasco e pelo chimarrão (sendo este também legado da cultura indígena local). [2] Isso é tão importante que foi, como já dissemos antes, estopim para uma revolução!

 

  A autêntica cultura gaúcha foi deturpada e degenerada por movimentos oportunistas como o Movimento Tradicionalista Gaúcho, que de libertário não tem nada – logo, é uma traição do espírito gaudério. É um movimento que prega um tradicionalismo conservador e reacionário, com valores patriarcais e preconceituosos que não deveriam existir em um estado com uma história revolucionária e uma formação miscigenada como o Rio Grande do Sul (e, por se dizer, não deveriam existir em nenhum lugar). São valores que não refletem a cultura gaúcha e sim as ideias da classe dominante do tempo em que o MTG foi criado. Não deve haver orgulho em ser capacho de alguém, muito menos de “tradições” inventadas de uma hora pra outra. Como disse em entrevista o cantor Luiz Marenco, “Tem muita regra. O lenço, tá ali na cartilha, tem que ter tantos centímetros, a bombacha tem que ter tantos centímetros de largura, a bota tem que ser assim, a camisa assim, o chapéu… Isso é um manequim! E tu não podes fazer isso porque o gaúcho no Rio Grande do Sul não é só um”. Sumarizando a necessidade de manter a tradição de forma fiel, cita o imortal Jayme Caetano Braun: “Não vou matar meus avós para ficar de bem com os netos”. [3]

 

  Ora, é acompanhar a trajetória de músicos como Noel Guarany, Cenair Maicá e o próprio Luiz Marenco para perceber: a liberdade é um valor imprescindível para a cultura gaúcha. Qualquer tradicionalismo que abandone este valor em nome de formalismos insossos carrega um interesse na privação da liberdade. É justamente por isso que não podemos esquecer episódios como o do Massacre de Porongos, no qual os negros que sonhavam e lutavam por liberdade foram brutalmente assassinados em uma traição por parte da corrente minoritária do grupo dos Farroupilhas, liderada por David Canabarro.

 

  J.J. Hernández Arregui, em sua magnífica obra “O que é o Ser Nacional?”, identifica uma luta de duas linhas dentro da tradição, sobretudo nos países coloniais: a tradição do povo e o tradicionalismo das oligarquias. Primeiro, conceitua tradição: “A tradição é a memória, através da língua, de uma cultura. Mas esta memória tem um conteúdo de classe, muito notório nos países coloniais”. O tradicionalismo das oligarquias das terras consiste, justamente, em “sacramentar as tradições religiosas, patriarcais, etc., como instrumentos de sua opressão de classe”. A tradição popular, campesina, é, pelo contrário, “uma espontânea fixação à terra, […] uma defesa, em grande parte inconsciente, contra a excentricidade das oligarquias e o domínio estrangeiro”. “O nacionalismo cultural das massas pode converter-se em um componente importante da consciência revolucionária. O tradicionalismo das oligarquias, ao contrário, propõe aferrolhar as massas dentro do sistema estático da produção”. [4]

 

  Ao escantear o ser histórico gaúcho, demonizando-o como muito se faz por parte de ditos “progressistas”, se está deixando esquecer os que lutaram, os que foram traídos, e se está diminuindo a tradição e a cultura das massas rurais que construíram esse estado e esse país tão crucial na construção de La Patria Grande.

 

Texto* de Frederico Gonçalves
Militante pela Revolução Brasileira no Rio Grande do Sul
*Os textos e artigos publicados pelos Militantes pela Revolução Brasileira não exprimem necessariamente opinião da Coordenação Nacional da Organização.

 

[1] http://www.iela.ufsc.br/noticia/20-de-setembro-o-comeco-da-saga-dos-farrapos

[2] RIBEIRO, Darcy, Gaúchos e Ladinos, in: As Américas e as Civilizações, Petrópolis: Vozes, 1987.

[3]http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/reporter-farroupilha/platb/2013/05/27/marenco-critica-regras-do-mtg/

[4] ARREGUI, Juan José Hernández, O que é o Ser Nacional? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.

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