A tragédia do coronavírus: luta de classes e dialética

1: Se por um lado a catástrofe social e política da pandemia do coronavírus certamente pode abrir espaço para uma aceleração do processo de transição para um regime mais fechado no Brasil e em outros países, por outro lado é igualmente inegável que a agudização da crise significa uma oportunidade de levantes populares e, sobretudo, de algum grau de desmoralização da hegemonia ultraliberal instalada no contexto brasileiro desde o início da agonia do sistema petucano. Ou seja, as contingências do ponto cego do desenvolvimento capitalista apresentam tanto uma alternativa para o capital legitimar o recrudescimento da sua ditadura quanto para o proletariado avançar na sua consciência de classe. Dialeticamente falando, o sistema que aparecia como a própria natureza da vida e onipotente, de uma hora para outra, tem a sua fragilidade exposta diante do mundo todo.

 

Terremoto na Cidade do México em 2017

 

2: A sensação de desordem social generalizada – seja ela real ou imaginária – com certeza pode servir de pretexto para a o convencimento de grandes parcelas da população de que é hora de conferir poderes especiais ao executivo – independentemente de quem ocupar sua cadeira –, bem como para aprovar os projetos de lei que endurecem a criminalização das lutas populares e que restringem ainda mais a livre organização política dos trabalhadores. De modo semelhante, é possível que setores importantes do proletariado, e até mesmo da pequena e média burguesia, se desloquem de uma fé na liberalização econômica irrestrita para um keynesianismo bastante difuso e ambíguo, o que apesar de estar longe de significar uma esquerdização da sociedade, não deixa de representar uma melhor condição na trincheira ideológica, tendo em vista o descrédito da agenda ultraliberal por parte das massas – fato já verificado em países como a Argentina. Não podemos esquecer que o movimento de massas – ainda mais em um país tão ideológica e geograficamente disperso como o Brasil – é contraditório, que o povo está fazendo suas experiências e que ele aprende na prática das organizações que ele vai construindo no caminho.

 

3: A pandemia era o ingrediente que faltava à tragédia brasileira, pois definitivamente coloca as dimensões da morte e do imponderável como dados da realidade, os quais se somam à crise que antes era percebida apenas como política e econômica. O medo e o pavor deixam as massas mais suscetíveis a aderir a extremismos, que representem força, ordem, autoridade e segurança, mesmo que se exija delas algum sacrifício – este último pode se dar tanto na forma de abrir mão de direitos ou até mesmo do engajamento em algum projeto de ruptura que prometa uma superação do atual sofrimento. Evidentemente que a extrema direita leva ampla vantagem, uma vez que ela parte de simplificações grosseiras e mentirosas, além de prometer algo que efetive certo senso comum, enquanto os verdadeiramente revolucionários lutam cotidianamente contra o status quo e precisam se aproveitar quase que unicamente das brechas raras do colapso material e ideológico do sistema de dominação vigente. É nesse sentido que a pandemia pode se traduzir tanto em uma deterioração quanto em um melhoramento das condições da revolução brasileira. Nunca é demais recordar: revolução ou contrarrevolução.

 

Gripe espanhola em 1918

 

 

4: A quarentena, sem sombra de dúvida, jogará na miséria um número significativo de trabalhadores já precarizados e sem acesso a direitos trabalhistas; isso sem contar que muitos pequenos e médios comércios – que ficarão de fora dos pacotes generosos de ajuda do Estado destinados quase que exclusivamente à grande burguesia – irão sucumbir. Acrescente a isso as prováveis greves em locais de trabalho, cujos proprietários poderão eventualmente se negar a parar a produção para salvar seus negócios em vez de seus empregados, e os levantes e saques que são esperados nas periferias das grandes cidades brasileiras a partir do momento que o longo processo de sucateamento do SUS se materializar de maneira extremamente eloquente na sua incapacidade de atender todos os trabalhadores. Afinal, há serviços estatais fundamentais e sem os quais partes do povo não se deixam governar. Não se deve descartar que todo esse desespero pode perfeitamente ser capturado por forças reacionárias – seja pela “milícia”, pelo narcotráfico, pelos mercadores de Deus ou por um consórcio envolvendo essas três forças enormemente relevantes no panorama político brasileiro. Entretanto, há ainda a chance de parte dessa desagregação também originar os mais variados tipos de organizações autônomas de trabalhadores, que estejam para além dos limites da tutela do PT e de todo o liberalismo de esquerda.

 

5: Existe a possibilidade concreta de grandes cidades brasileiras enfrentarem fortes crises de abastecimento por conta, entre outras razões, do abandono dos estoques em nome do “just in time” toyotista. O pânico urbano da falta de leitos, equipamentos hospitalares, remédios e alimentos, alinhado ao clamor por ordem, pode muito bem turbinar o plano de mudança de regime de Bolsonaro e de Mourão, ao passo que inúmeros brasileiros dramaticamente perceberão na prática a ineficiência e a inviabilidade do capitalismo brasileiro – efetivamente já é possível notar uma maior, embora sutil, desconfiança em relação a um suposto excesso de gigantismo do aparelho estatal do Brasil. No plano mais estritamente político e das relações de trabalho, haverá um crescente ruído na exaltação de um “capitalismo cassino” e de um “empreendedorismo”, que disfarça a precarização e a superexploração do trabalho, no lugar de uma planificação e de uma maior estabilidade nas relações trabalhistas.

 

Brumadinho em 2019

 

6: Da perspectiva do papel do Estado-nação, a pandemia mostrou que por mais que a competição entre os países coloque um verdadeiro entrave ao desenvolvimento das forças produtivas e à cooperação global, é, sem sombra de dúvida, no território nacional que a decisão sobre a vida e a morte das populações ainda é tomada e ele continua a significar o espaço a partir do qual a guerra de classes é travada. A unificação mundial operada pelo sistema capitalista é algo, a um só tempo, real e a ser realizada, especialmente tendo em vista que apesar dos esforços de coordenação em escala planetária, o que se tem visto é um verdadeiro “deus nos acuda” em que cada governo nacional adotou medidas próprias – um dos casos mais dramáticos ocorreu na Itália, onde se viu as fronteiras com os vizinhos se fecharem unilateralmente e inclusive para o transporte de suprimentos hospitalares como máscaras faciais e respiradores, que tiveram de vir da China. Mais: é muito provável que vejamos ao menos dois resultados conflitantes da pandemia. Por um lado, um giro reacionário contra o que há de benéfico no internacionalismo capitalista – cooperação, integração etc. –, já que o Acordo de Schengen de 1985, que versa sobre a livre circulação de pessoas dentro dos países europeus signatários, sairá fortemente abalado e por outro lado ficou nítido que o subdesenvolvimento da maior parte do globo, gerado pelo desenvolvimento do capitalismo, mais cedo ou mais tarde, impacta todos, porque as regiões mais pobres, dentro e fora dos países centrais, continuarão a figurar como espectros que os rondam seja através da proliferação de epidemias, de migrações em massa ou do terrorismo.

 

7: Por fim não se pode perder de vista que a pressão sobre os preços dos alimentos e dos combustíveis, com ou sem pandemia, é algo que chegou para ficar. É claro que o oportunismo da retórica das vantagens do surto privatizador será repetido à exaustão, mas o passar do tempo deixa esse discurso diariamente mais insustentável de um ponto de vista lógico-racional e, portanto, requer cada vez mais artifícios para sustentar as suas inconsistências. A tendência é de que mais e mais pessoas despertem para a necessidade da luta política, à direita e à esquerda, na mesma proporção em que a crise se desenrola. Nesse sentido, a paciência com a artificialidade do éden ultraliberal já demonstra sinais de desgaste por motivos deveras óbvios, o que pode ensejar uma radicalização ainda maior em direção aos extremos do espectro político, inclusive com a emergência de uma direita antiliberal na economia, pois a polarização cultural e o consenso econômico têm tudo para ganhar contornos mais claros graças à rápida politização da sociedade brasileira em meio a um cenário de emergências. Isso está no radar e é por isso que os projetos de lei de fechamento do regime – e de correspondente despolitização social – não saem da mesa. Esse é o momento de multiplicação tática e de afirmação de princípios, isto é, de afirmar o nacionalismo revolucionário como luta pela libertação nacional do jugo imperialista, de assalto ao poder e em direção a um governo dos trabalhadores: rumo ao socialismo.

 

Texto* de Lindberg Campos
Professor e Militante pela Revolução Brasileira

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Comentários

  1. Parabéns pelo texto. É sempre muito difícil analisar, a quente, situações de extrema complexidadee e dimensão como a que ora se desdobra. O risco de incorrer em erros e incompreensões é muito grande. Mas é preciso arriscar mesmo admitindo com Hegel que a consciência, tal como a coruja de minerva, só alça voo ao entardecer. Concordo plenamente que o espaço e as estruturas socioecômicas nacionais, frente a crise da covid-19, já deixaram em segundo plano a famigerada mundialização do capital porém, milhares de óbitos, inclusive nos UEA, são sim, vítimas dela, tendo em conta que a falta de equipamentos básicos em vários países por todo mundo, se deve a produção localizada, na China, por exemplo, para onde migraram as empresas que os produzem por questão de lucratividade, como determina a mundialização.

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