Cem anos atrás, ao calor do centenário da independência nacional, um evento questionava os parâmetros canônicos e os rumos da arte brasileira. Durante três dias de fevereiro a Semana de Arte Moderna preenchia o salão do Theatro Municipal de São Paulo com cerca de cem trabalhos entre pinturas, esculturas, desenhos arquitetônicos e apresentava no seu palco conferências, leituras e concertos de um grupo de artistas que se reuniram em torno de um projeto estético cujo objetivo era propor um novo olhar sobre a cultura do país.
Poucos eventos da arte brasileira envelheceram tão bem na memória cultural quanto a Semana de Arte Moderna de 1922. Nesse processo faz-se necessário irmos além da mera celebração e recuperar criticamente como tal acontecimento, que em seu momento histórico gerou mais estranheza do que aclamação, em sua repercussão, conseguiu deixar um legado a ponto de adquirir até mesmo certo caráter mítico.
Àquela época São Paulo começava a transformar-se com o surgimento da indústria em detrimento da já estabelecida tradição agrário-exportadora, colocando uma burguesia industrial cada vez mais atuante nos rumos de uma cidade até então dirigida predominantemente pela elite cafeeira. A repercussão da Primeira Guerra Mundial, as novas tecnologias que surgiram, a luz elétrica e as novidades urbanas do cinema, todos os novos costumes colocavam em questão o que seria o moderno dentro de todas as transformações em voga.
No campo artístico tínhamos a predominância do academicismo e a engessada tradição bacharelesca que tinha como principal centro difusor o Rio de Janeiro, a capital do Brasil naqueles tempos. Os ditames da Academia Imperial de Belas Artes, o parnasianismo e o simbolismo em suas rigorosas métricas, os gostos e técnicas importadas da Europa que ecoavam em seus semelhantes nacionais eram o que predominava no pensamento nas elites que moldavam os rumos culturais da vida urbana.
Em tal cenário é importante destacar que certas atitudes contestatórias individuais dos modos artísticos consolidados já surgiam em diversos locais do país, dentro e principalmente fora da capital nacional. Porém, na cidade paulista certa sequência de eventos acabou reunindo um grupo de intelectuais em torno de um projeto ideológico nacionalista que, nas próprias palavras de seus idealizadores, foi definido como a criação de “uma nação dentro do país”.
Antes de tal evento que seria oficializado como principal marco inicial já se debatia nos círculos especializados as inovações trazidas pelo jovem lituano Lasar Segall, expostas no salão Rua São Bento, já em 1913, e cerca de quatro anos mais tarde a também jovem Anita Malfatti traria suas obras igualmente modernas para a Rua Líbero Badaró. Esta última provocando inclusive um artigo de duras críticas de Monteiro Lobato no jornal O Estado de São Paulo. Um embate de opiniões e perspectivas que acabou aproximando o grupo que iria organizar-se em torno da Semana. Mas tais exemplos, ainda que importantes para a divulgação de certas ideias, não tiveram a força propulsora para cravar a bandeira de um movimento.
Surgia assim um intenso debate que, ao ir de encontro à crítica conservadora, foi responsável por polir as propostas de ruptura com o estado das artes vigente e acabou por reunir figuras como Mário de Andrade, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade que já colocavam suas posições estéticas no debate público da imprensa paulistana. Porém, tal ambiciosa iniciativa no majestoso Theatro Municipal não seria possível sem a atuação de um mecenato muito bem acionado pelo influente e abastado Paulo Prado, descendente da oligarquia cafeeira e ideólogo de peso na constituição de tal empreendimento.
A recuperação de tais elementos é fundamental para que possamos entender os porquês do modernismo paulista se sobrepor às outras atividades em andamento nos diversos Estados da Nação. Também é preciso colocar que não foram somente artistas jovens que apresentaram seus trabalhos na Semana, o já estabelecido escritor e diplomata maranhense Graça Aranha participou ativamente e saiu em defesa do movimento. Além de abrir as conferências do primeiro dia, posteriormente chegou a abdicar de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras dois anos depois do evento para dar ênfase ao moderno que surgia.
O resultado dos três dias de fevereiro – entre os dias 13 e 18 – foi um alvoroço! Logo na entrada do saguão estavam as esculturas de Victor Brecheret, Wilhelm Haarberg e Hildegardo Leão Velloso. Os quadros pintados pela jovem Anita, pelo carioca Di Cavalcanti, por Yan de Almeida Prado, pela mineira Zina Aita, por Antonio Paim Vieira, pelo pernambucano Vicente do Rego Monteiro, por Ferrignac e pelo suíço John Graz. Também compunham o luxuoso salão as propostas de arquitetura moderna do espanhol Antonio Moya e do polonês Georg Przyrembel. Todos reunidos no grande teatro paulista acompanhado de intensas conferências, saraus e apresentações literárias e performances musicais.
Relembro aqui a cena do jovem maestro Heitor Villa-Lobos subindo ao palco de chinelo e casaca, por causa de uma crise de gota, regendo suas danças africanas e provocando reações agressivas do público. As apresentações de piano da talentosa Guiomar Novaes e do carioca Ernani Braga. A declamação sob vaias do poema “Os Sapos” de Manuel Bandeira feito por Ronald de Carvalho como uma explícita provocação à tradição parnasiana. As conferências e palestras sobre as modernas propostas estéticas que rompiam com os costumes artísticos vigentes colocando novas questões. Tais acontecimentos envolveram toda uma maturação nacional que já rondava as revistas, circulavam nas correspondências dos participantes Brasil afora, assumindo a forma do evento que agora se torna centenário.
Temos então o registro paulistocentrado que periodicamente é recuperado e revisado. Muitos dos participantes, logo após o ocorrido, apesar das dimensões míticas que agora observamos, seguiram seu embate cultural nas mazelas de um país que no seu subdesenvolvimento torna a labuta artística uma tarefa hercúlea. Dificuldade contornada parcialmente por aqueles que compunham certas camadas da burguesia, que inclusive eram sua maioria, mas que muitas vezes foram obter o mérito e valorização de suas obras de maneira póstuma. E a cidade São Paulo, àquela época, antes dos impactos da crise de 1929, foi o palco de tal ato conjunto de manifestação de ruptura.
Observando os elementos que tornaram possível tal ato podemos perceber também o trabalho dos acadêmicos que posteriormente vieram a hipervalorizar tal acontecimento. Em uma Nação dependente, a preservação cultural, a manutenção da memória, advém de um trabalho conjunto no qual o eixo da capital paulista tardou mas foi eficiente em sua consolidação, sobretudo após o seu cinquentenário.
Celebremos, mas não nos prendamos em discussões inócuas. Como debater se os trabalhos ali apresentados eram realmente modernos ou não. Se tal trabalho seria mais expressionista, cubista ou até mesmo mais dadaísta que inovador em seu critério de modernidade. Naquele momento a crítica conservadora desmerecia tais atitudes taxando-as sob o rótulo de futuristas. O que precisamos lembrar é que a novidade, o embate e a aplicação de técnicas, sejam elas de vanguarda ou não, foram importantes para a construção de uma atitude brasileira renovadora dentro dos rumos da arte.
Logo após o polêmico evento de 1922 muito se pensou sobre o que seria a formulação de uma arte nacional dentro dos impasses colocados sob a pauta de atualização de uma cultura de traços explicitamente coloniais. Os temas debatidos por lá foram posteriormente desenvolvidos em diversos manifestos, com a criação de publicações que ampliaram o debate cultural e abriram novas perspectivas para se pensar o elemento nacional dentro do processo da produção artística.
A aproximação de artistas insatisfeitos com as tradições consolidadas, os moldes emulados e adaptados para outras realidades regionais, o vislumbre de novas perspectivas para uma formulação mais ampla e apreensiva da realidade nacional são as principais heranças da agitação moderno-paulista. Pensemos como envelheceram certos manifestos: o Manifesto da Poesia Pau-Brasil de 1924 e o Manifesto Antropófago de 1928 formulados por Oswald de Andrade; a repercussão da correspondência entre as formulações de Mário de Andrade e a elaboração criativa sobre os temas nacionais na música de Villa-Lobos. O desenvolvimento da identidade nacional nos temas pintados por Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, que acabou não participando da Semana mas foi influenciada diretamente por ela, assim outros diversos artistas dispersos pelas vastas terras brasileiras.
Direta ou indiretamente, a Semana de Arte Moderna de 1922 influenciou a cultura e arte brasileira em diversas de suas manifestações posteriores, do Cinema Novo e do Cinema Marginal a Bossa Nova e a Tropicália, do Teatro de Arena e do Teatro Oficina à obra de Nelson Rodrigues, do Concretismo aos romances de Osman Lins.
Tal celebração, em termos presentes, deve ser tida como a rememoração de um momento de intensa atividade intelectual e disputas ideológicas em torno da questão cultural e seus desdobramentos posteriores na ideia de arte nacional. Percebendo os limites da prática do mecenato, os financiadores da produção artística, que operam dentro do capitalismo dependente que se desenvolvia em nosso país. E quais foram os resultados?
A pergunta que sempre volta na recuperação histórica do modernismo paulista coloca em cheque todas as estratégias de cooptação e condução dos artistas envolvidos e suas respectivas obras dentro de um projeto nacional. Como se sucederam as políticas culturais oficiais? Lembrando que na mesma data era fundado também o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Democrático (PD) quatro anos depois e o estabelecimento da Aliança Liberal e as repercussões do tenentismo que engatilhou as políticas culturais da Era Vargas, ou seja, que a política está ligada diretamente com a estética na elaboração de uma identidade cultural e suas repercussões vão além das intenções da criatividade artística.
Nessa dança ideológica os rumos de uma vanguarda artística nacional não dependem apenas de um grande evento e sim da crítica permanente às formas de expressão e sua utilidade prática. Para pensarmos quais as possibilidades do desenvolvimento do trabalhador da arte dentro de uma lógica de dependência cultural é necessário lembrar que grandes atos de ruptura podem desmanchar-se no ar e facilmente perecerem dispersos em horizontes museológicos sem qualquer vislumbre revolucionário.
A Semana de Arte Moderna de 1922, cem anos depois, recorda a lição histórica que a emancipação do artista, do ser imerso na cultura nacional, tem seus limites dentro do contexto nacional. Mas a urgência por ruptura é atual e sua árdua batalha requer um trabalho intenso onde toda e qualquer estratégia deve ser pensada para além da aventura espetaculosa, mesmo que ela consiga envelhecer à luz da história, o legado deve desenvolver-se no presente.
Texto de Felipe Maciel Martínez
Militante pela Revolução Brasileira em Santa Catariana