A estabilidade burguesa e a crise brasileira

  A crise brasileira se aprofunda. Ao contrário das postulações superficiais do liberalismo de esquerda dominante no país, o governo do protofascista Bolsonaro não somente mantém estabilidade política como avança a passos largos no programa ultraliberal conduzido pela fração financeira. A coesão burguesa organizada desde 1994 segue como garantia do governo e não dá demonstrações de ruptura no curto prazo. Bolsonaro mantém fidelidade a Paulo Guedes e esse mantém fidelidade ao programa ultraliberal em curso.

 

  As mudanças estruturais que o governo encabeçado pelo protofascista promove garantem, em meio à enorme crise cíclica do capital, superlucros à grande burguesia e aprofundamento da miséria ao povo brasileiro. No entanto, nada ainda está resolvido. Nos EUA, epicentro da crise mundial, não há no curto prazo possibilidade de reversão de seus efeitos destrutivos, especialmente evidentes com a taxa de desemprego que alcançou 40 milhões de trabalhadores (14,7%) em maio, reduziu em junho para (11,1%) e desde a segunda quinzena de julho volta a subir, acompanhando as previsões do conservador FED de que nova onda de desemprego não está descartada. Os lucros seguem em alta na esteira da enorme concentração e centralização do capital – movimentos próprios da dinâmica capitalista, especialmente acentuada nas crises cíclicas. Na Europa e também na China o otimismo está completamente descartado da mesma forma que podemos sofrer, em qualquer momento, o impacto de um estouro num elo da corrente imperialista, arrastando todo o sistema para uma crise ainda mais profunda.

 

  Na periferia capitalista, a dependência e o subdesenvolvimento se ampliam de maneira visível, arquivando para sempre a ideologia industrializante da burguesia, especialmente a brasileira, até então, a de maior desenvolvimento relativo na região. Emerge de maneira clara o desenvolvimento capitalista dependente rentístico, inerente às transformações operadas na economia e no estado a partir de 1994, cuja dinâmica foi garantida pela administração petucana da ordem burguesa.

 

  A eleição de Bolsonaro enterrou para sempre a cômoda oposição petucana (petistas e tucanos disputavam no terreno eleitoral o mesmo programa econômico-político e cultural) na qual navegou o liberalismo pós-ditadura. A vitória eleitoral do protofascista revelou que a podridão da república burguesa, que o liberalismo de esquerda encabeçado pelo PT teimava ocultar, era uma realidade eloquente. A podridão do sistema político é o combustível que alimenta o discurso “anti-sistema” da coalizão burguesa encabeçada pelo protofascista. Contudo, essa crise não é maior porque, no momento em que deveria radicalizar, o liberalismo de esquerda assumiu de maneira ainda mais ingênua a defesa do espírito republicano e da democracia em abstrato. Essa é a razão fundamental da força da coesão burguesa conduzida por Bolsonaro que ainda dispõe de amplo terreno para acumular apoio entre as classes populares. A podridão do sistema político atual, aliado à voracidade da crise sob condução da coesão burguesa, impede que a destituição de Bolsonaro avance no parlamento – um verdadeiro covil de ladrões – cada dia mais interessado nas “reformas” que fortalecem o caráter rentístico do desenvolvimento capitalista no país.

 

  Precisamente por isso, ao contrário do que estabelece a última resolução nacional aprovada no DN, em 27 de abril de 2020, o projeto ultraliberal avança a ritmo acelerado e mantém a coesão burguesa intacta. A resolução aprovada por maioria não captou o fundamental ao afirmar que:

“a necessidade de isolamento social, com a consequente paralisação de atividades produtivas e comerciais, além de escolas e universidades, jogou para o espaço as previsões de desempenho econômico e pôs em xeque a política de austeridade fiscal. Programas antes vetados do debate político, como a concessão de renda básica para parcelas empobrecidas da população, passaram a ser usadas. O discurso neoliberal se enfraqueceu ou, pelo menos, foi colocado na geladeira por um período.”

 

  Ora, nem o discurso neoliberal se enfraqueceu e menos ainda sua eficácia real para a coesão burguesa. De resto, jamais foi para a geladeira!! A propósito, precisamente a crise cíclica do capitalismo – com os conhecidos efeitos na periferia do sistema – fez do ultraliberalismo o único caminho possível de gestão do capitalismo para todas as frações do capital (agrário, comercial, industrial e bancário). Em consequência, as ilusões keynesianas caem por terra e deixam o liberalismo de esquerda órfão, refugiando-se, como sempre ocorre, na mera condenação moral dos efeitos perversos que toda crise sempre produz. No entanto, nós sabemos que a “moral é a impotência em ação” e não pode produzir efeitos reais como meio de mobilização dos trabalhadores. Nós também alertamos repetidas vezes que a emissão monetária ou a ampliação do gasto público não constitui contradição alguma com o discurso – e a prática – liberal. Há muito que bons teóricos keynesianos alertaram sobre algo que o keynesianismo dominante em nosso partido insiste em ignorar: a ampliação do gasto e a emissão monetária conduzida por governos conservadores antes que produzir a “eutanásia dos rentistas” promove precisamente seu fortalecimento!!

 

  É precisamente o que está ocorrendo no Brasil. Nas atuais circunstâncias, nada indica que a destituição de Bolsonaro possa avançar no parlamento – Rodrigo Maia já manifestou publicamente que não vê razões para o impeachment – e somente o efeito de um aprofundamento da crise capitalista mundial poderia promover alguma mudança no curto prazo em direção oposta. É claro que um acidente de percurso (a delação do Queiroz, uma dissidência com segredos de campanha ou governo) podem, eventualmente, mudar a situação. No entanto, nas condições atuais, o ultraliberalismo avançou e segue acelerando as transformações no estado e na economia segundo suas conveniências. A ausência de uma oposição radical e com participação das massas ao governo encabeçado pelo protofascista indica que o discurso/prática “neoliberal” seguirá avançando nos próximos meses.

 

  O avanço do ultraliberalismo em meio à imensa crise cíclica mundial com efeitos violentos na periferia do sistema capitalista – especialmente agudos na América Latina e particularmente eficazes no Brasil – pode ser visto tanto no terreno econômico quanto no social.

 

  Nos últimos anos criticamos abertamente as chamadas políticas sociais do petismo como expressão da “digestão moral da pobreza” inerente ao liberalismo de esquerda, uma modalidade perversa de manter os pobres na pobreza em nome da filantropia. Agora, sob circunstâncias ainda mais dramáticas para nosso povo, o governo encabeçado por Bolsonaro anuncia um programa (Renda Brasil) que ampliará o número de beneficiados pelo “Bolsa Família” revelando o “rosto humano” do conservadorismo. É preciso reconhecer com urgência o equívoco dessa formulação entre nós como passo inicial de uma superação do potencial de isolamento político entre os trabalhadores que nos ameaça, inclusive no terreno eleitoral. Ora, caso o Renda Brasil avance para 18 milhões de famílias no cadastro e supere o valor médio do benefício da filantropia petista, a herança do “avanço social” reconhecido em nossas fileiras será capturado inteiramente pelo ultraliberalismo.

 

  Portanto, Bolsonaro prepara importante pacote para eternizar a digestão moral da pobreza por meio do Renda Brasil que, tudo indica, lhe garantirá decisivo apoio eleitoral entre os setores mais explorados da classe trabalhadora. Cai por terra, de maneira definitiva, a filantropia como perversão de política social num país capitalista periférico. É por essa razão que Bolsonaro insinua alcance maior do programa social mais importante do petismo de Lula e Dilma: o Bolsa Família. No governo de ambos, mais precisamente em agosto de 2016, o programa contemplava 14 milhões de famílias com pagamento médio de R$ 164 por família. Em setembro de 2019, já no governo atual, portanto, o Bolsa Família atendia a 13,5 milhões de famílias com benefício médio de R$ 189,21. Agora, em julho de 2020, alcança 14,3 milhões de famílias e, nos marcos do auxílio emergencial, pagou benefício médio de R$ 1.115. O governo segue par e passo os mecanismos utilizados nos EUA, onde os republicanos estão propondo – em pequenos descordos com democratas – a manutenção dos U$ 600 dólares semanais em quotas menores! Paulo Guedes repete cada passo da política estadunidense aqui. Não cabe à oposição de esquerda a Bolsonaro repetir o medonho e cínico papel representado pelos democratas no interior do imperialismo em nome do cretinismo parlamentar.

 

  Ademais, o governo está anunciando há meses uma ofensiva destinada a dar uma resposta capitalista para um problema estrutural para as classes populares: o saneamento básico. Em consequência articula, via BNDES, um suculento programa de saneamento básico que fortalecerá frações do capital interessadas no financiamento barato e num setor que pode garantir superlucros no curto e médio prazo. O potencial do programa pode ser observado pelas cifras da crise social: mais de 30 milhões sem água tratada e quase 50% da população sem acesso a rede de esgoto. É óbvio que, se o governo conseguir avançar nessa direção, estará “beneficiando” amplos setores da classe trabalhadora, especialmente aqueles que vivem na periferia e nas favelas das grandes cidades.

 

  A política ultraliberal não descuida a pequena burguesia que agoniza e reserva algumas medidas especialmente importantes para a essa fração de classe. Para tal, pretende lançar um programa via BNDES para disponibilizar 10 bilhões de reais ao financiamento de micro e pequenos negócios em tempos de crise. A lógica é perfeita: o investimento custeado pelo Estado permite a ilusão de que os pequenos e médios poderão sobreviver. No entanto, sabemos que não será assim e o financiamento proposto funciona como crédito barato para os monopólios que, inexoravelmente, comprarão as pequenas e médias na medida em que a crise se aprofunda… De outro lado, também permite ao governo apoio por algum tempo no interior das classes médias.

 

  O déficit fiscal até agora considerado ideologicamente nocivo à economia tem sido utilizado com relativa maestria pelo ultraliberalismo e colocado a serviço da acumulação de capital. É possível que o déficit alcance 1 trilhão de reais até o final do ano! Os discípulos de Keynes que alimentam o liberalismo de esquerda antimarxista encontram agora a verdade de seus postulados na vida real. A antiga pregação em favor do aumento do gasto, da emissão monetária, do investimento na renda mínima e outras quinquilharias funcionam objetivamente em favor da coesão burguesa conduzida pelo protofascista, que não cansa de repetir que segue confiando plenamente em Paulo Guedes. Em síntese, a trama dos personagens obedece a roteiro conhecido: as frações burguesas sob hegemonia do capital bancário seguirão alimentando o rentismo sob variadas formas e praticando a filantropia como instrumento de dominação política e disputa eleitoral.

 

  Na mesma direção, a coesão burguesa avança no assalto ao Estado como meio eficaz de garantir maior riqueza aos capitalistas nacionais e estrangeiros. O processo é consequência necessária do aprofundamento da crise que, na esteira da concentração e centralização do capital, adquire em nosso país um enorme assalto ao Estado via endividamento público e a aceleração das privatizações.

 

  As transformações operadas pelo governo até agora confirmam o avanço do ultraliberalismo com firme apoio no parlamento e na corte suprema. A aprovação da PEC 10 mudou radicalmente o papel do Banco Central em favor do grande capital que poderá agora – na esteira do que faz a Reserva Federal nos EUA – acelerar a concentração e centralização do capital em favor dos monopólios com enorme refinanciamento da dívida pública, epicentro do rentismo.

 

  A venda da BR Distribuidora no ano passado e também das plataformas da Petrobrás na semana passada indicam o caminho da privatização completa da estatal. Ademais, a entrega da carteira de crédito do Banco do Brasil de R$ 2,9 bilhões por simbólicos R$ 275 milhões revela a função decisiva da PEC 10 na gestão capitalista da crise. A transformação na prática das funções do Banco Central operando agora no mercado secundário turbinará os superlucros de créditos podres como fonte de acumulação e ganho certo às custas do Tesouro.

 

  Guedes anuncia num misto de propaganda, afirmação do programa ultraliberal e manutenção do apoio burguês ao governo, um programa que incluiu venda e reestruturação dos portos e cabotagem, do sistema elétrico e do óleo e gás no país. O financiamento estatal a baixo juro é mais um instrumento de assalto ao Estado em larga escala praticado pelo governo com amplo apoio da coesão burguesa e de deputados e senadores que habitam no covil de ladrões chamado Congresso Nacional.

 

  Como corolário do ultraliberalismo, o projeto de reforma tributária em pauta discute de forma desinibida – com apoio público de oráculos da alta finança – a tributação de grandes fortunas e de lucros e dividendos. De fato, a proposta não fará nada mais senão simular justiça tributária para acentuar o confisco ao fundo de salários. Tal como ocorreu com o auxílio emergencial, eventuais mudanças cosméticas não podem ser comemoradas como vitória por nossos parlamentares, pois seu conteúdo de classe será inocultável da mesma forma que será apresentada para a opinião pública manufaturada pelos monopólios midiáticos como iniciativa irrevogável do governo Bolsonaro.

 

  Nesse contexto, o cenário eleitoral é adverso para o PSOL.

 

  As tentativas de construir frentes eleitorais orientadas pelo conteúdo anti-Bolsonaro – aprovada na última reunião do DN – fortalecem essencialmente o liberalismo de direita que se opõe ao governo. A frente no interior do liberalismo de esquerda fracassou no Rio e não vingou em Porto Alegre para dar apenas dois exemplos importantes. Ademais, ainda que não determinante, as dificuldades de mobilização em função da política criminosa do governo no enfrentamento da pandemia – que já ceifou a vida de 100 mil brasileiros e contaminou outros 2 milhões – reforçam as dificuldades da esquerda nesse momento. As dificuldades são para nós, portanto, variadas, mas, de maneira geral, operam algumas variáveis.

 

  A primeira delas é que o PDT de Ciro Gomes se afirma a cada dia de forma mais decisiva como o substituto de Lula na hegemonia do liberalismo de esquerda, razão pela qual se orienta sempre em oposição ao PT. E o PDT possui capacidade de atração de outras legendas de esquerda. A segunda, é que emerge com força o liberalismo de direita, encabeçado por governadores como Dória e Witzel, que buscará força eleitoral nas eleições municipais.

 

  Há também o reforço de uma tendência que já existia e que ganhará novo perfil nessas eleições: a luta por causas – ecológica, feminista, antirracista, etc. – deixou de ser monopólio da esquerda liberal e integra nessas eleições, mais do que em qualquer outra anterior, o programa dos liberais de direita como podemos observar na promoção do voto feminino, na defesa do meio ambiente (Joaquim Levy), no combate ao racismo e à homofobia (Armínio Fraga) por parte de notórias figuras da classe dominante. Num contexto em que os movimentos populares não navegam numa linha ofensiva, a disputa eleitoral se tornará mais acirrada. Portanto, a luta pelas causas somente pode representar uma real alternativa quando vinculadas à luta pelo socialismo e a revolução, quando orientadas pela vocação totalizante da Revolução Brasileira.

 

  Ao PSOL, num quadro adverso, não cabe outra saída senão assumir um programa e uma conduta nas eleições que represente um novo radicalismo político que as classes populares requerem como alternativa à podridão econômica, política, cultural e moral da república burguesa. Tal conduta, antes considerada “doutrinária” será, a partir de agora, a única possibilidade de sairmos do processo com uma vitória política. Nas últimas eleições presidenciais, saímos derrotados no terreno eleitoral (tivemos o pior desempenho em nossa história) e também uma grave derrota política (figuramos como mero espírito crítico do decadente liberalismo de esquerda). Agora temos nova oportunidade de oferecer uma crítica e uma alternativa de esquerda aos milhões de trabalhadores afundados no abismo social da crise conduzida pelo presidente protofascista de orientação ultraliberal. A nacionalização das eleições municipais que reivindicamos há meses não pode realizar-se sem uma ruptura clara e radical com o liberalismo de esquerda e seus principais responsáveis (Lula, Dilma, Ciro, etc.). Eis nosso desafio no momento em que decidimos sobre candidaturas e programas para a disputa eleitoral.

 

 

Nildo Domingos Ouriques

Membro do Diretório Nacional do Psol
Militante pela Revolução Brasileira
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Comentários

  1. Ótima análise prof. Nildo. Tenho aprendido muito com o sr. em suas participações no Duplo Expresso e no IELA. Por sua clareza de pensamento, decidi também fazer o curso “O que ler para entender a América Latina” e tentei filiar-me ao PSOL, o que não consegui até o momento., não sei porque. Tenho lido muito… estudado, escutado… crescido, mas me considero ainda um aprendiz (não passei muito além daquelas duas moléculas de sabedoria…., mas desejo ir até o fundo e até o fim…kkkkk) Hoje percebo melhor o quão alienado estive por muitos anos. Fui filiado ao PT… militei no petismo. Minhas desilusões com o partido surgiram há um tempo, mas confesso que me faltavam melhores conhecimentos para saber porque. Hoje já tenho melhores condições para isso, o que devo muito ao sr.
    Me considero hoje um, não um militante – uma vez que não consegui ainda a filiação ao PSOL- mas defensor ferrenho da Revolução Brasileira.
    Um grande abraço

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