A exploração do trabalho docente no Brasil: um diagnóstico crítico do ensino público básico

“Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica.”
Paulo Freire

 

  O Mal-Estar da Docência

  Em um cenário em que se consolida o desprezo pela educação, um desprezo fomentado pelo poder público e ecoado na sociedade civil, se o adoecimento dos profissionais do ensino básico é hoje amplamente documentado e objeto de estudo por parte de diferentes áreas da ciência, é porque a multiplicação das ocorrências desse fenômeno já se configura como uma verdadeira epidemia cuja gravidade não é mais possível ignorar. Os educadores estão definhando a olhos vistos.

 

  Transtornos de ansiedade, depressões, síndromes do pânico, esgotamento mental, irritabilidade, afecções vocais, problemas visuais, desordens gastrointestinais, desgaste do aparelho músculo-esquelético, alergias, artrites, AVCs, infartos, e outros, são sintomas que reunidos apontam para um adoecimento muito específico que ataca os trabalhadores da educação no Brasil em particular, e na América Latina em geral. Estudiosos são conjurados a desvendar a causa dessa epidemia e a anunciar aos pobres servidores públicos a panaceia para os seus distúrbios. Uns aconselham que desenvolvam competências e estratégias para gerenciar o mal-estar cotidiano, outros recomendam o fortalecimento da capacidade de adaptação aos diferentes contextos, alguns observam que os docentes devem trabalhar a sua força de superação dos “potenciais estressores”, outros ainda afirmam que os educadores devem ser “resilientes”, que devem desenvolver táticas auto-motivacionais, que devem focar nas experiências positivas do cotidiano.

 

  E assim reza-se ao trabalhador a ladainha de que a solução para as suas agruras reside em seu próprio interior, de que não há condições perfeitas de trabalho, de que ele deve dar o máximo de si, e assim por diante. No entanto, o sofrimento material dos docentes não provém de uma causa espiritual, mas é decorrente do excesso de trabalho, dos baixos salários, e do mau funcionamento das unidades escolares. Acúmulo de função, salas de aula insalubres e superlotadas, excesso de horas-aula ao longo da semana, indisciplina de alunos, carência de profissionais para dar apoio ao trabalho docente e falta de infraestrutura nas escolas; tudo isso, aliado à desvalorização do salário, rebaixado para aquém do mínimo necessário à mera reprodução de suas forças físicas e intelectuais, configura um quadro de exploração exacerbada dos trabalhadores docentes. É tão somente por isso que temos como consequência um número crescente de profissionais adoecendo.

 

  No imaginário popular, o professor de ensino básico, ou melhor, a professora, a “tia”, é um profissional que exerce seu ofício por dom; trata-se de um “sacerdócio”, de uma profissão exercida “por amor”. Desconsidera-se que este seja um profissional tecnicamente capacitado e com contas a pagar. Não é por acaso que entre os profissionais com nível superior, os docentes sejam os que possuem salário médio mais baixo (30% menor que de profissionais com a mesma escolaridade) [1], além de contar com planos de carreira insuficientes, excetuando os frequentes casos em que eles não são respeitados.

 

  Também não é por acaso que todas as vezes em que a categoria entra em greve ela precise acrescentar à pauta salarial tantas outras. Parece que a luta contra a defasagem salarial por si só não é suficiente, não é uma luta justa. Para tentar amenizar o salário baixo e sem correção inflacionária, a regra é que os professores acumulem, além de duas matrículas públicas, trabalhos em escolas e cursinhos particulares. Com tantas tarefas a cumprir, não lhes sobram horas do dia para o convívio social, para o estudo e o aperfeiçoamento do seu ofício. E assim seu trabalho termina por se tornar mecânico e repetitivo, quase como em uma linha de montagem – neste sentido, não é de se admirar que a Prefeitura do Rio de Janeiro, em 2012, tenha feito essa comparação, nomeando suas unidades escolares de “fábrica de conhecimento”, em uma propaganda em que os alunos apareciam sentados em carteiras sobre uma esteira rolante.

 

 

  A falta de liberdade de planejamento dos docentes, cada vez mais reféns das provas externas, agrava a situação. O docente se vê obrigado a direcionar seu planejamento e a “treinar” os educandos para tais avaliações, sob ameaças de “não colaborar com a escola”, “estar prejudicando os alunos”, “ajudando a piorar os índices da instituição”. Muitas vezes essas avaliações vêm atreladas a abonos salariais para “estimular o professor a colaborar”. O encorajamento ao pensamento crítico e a um desenvolvimento amplo dos diversos tipos de conhecimento ficam em segundo plano ou são descartados. Parece que tudo o que importa é uma nota alta na Prova Brasil, a fim de melhorar o IDEB da escola. E o professor, no meio desse processo, torna-se um profissional castrado.

 

  Por fim, as leis trabalhistas que regem o magistério, na maioria das vezes, são descumpridas. A lei 11.738, por exemplo, uma das mais importantes, que estabelece o piso salarial para o magistério e uma reserva de, no mínimo, 1/3 da carga horária semanal dedicada às atividades de planejamento pedagógico, vigora desde 2008 e ainda assim não é cumprida pela maioria dos Estados e municípios [2]. Neste sentido, no entanto, deve-se notar que o fato de que a legislação não seja cumprida, de que os profissionais da educação não tenham os seus direitos respeitados, e que, de resto, suas condições de trabalho sejam precárias, isso não se configura nenhuma novidade. Tal é a condição do trabalhador docente do ensino público básico desde o advento de sua profissão no Brasil. É preciso, diante disso, dissipar a equivocada ideia de que apenas recentemente as condições de trabalho da categoria se tornaram precarizadas, que apenas ultimamente ela passa por um processo de proletarização.

 

  Proletarização e Precarização

  Estudiosos denunciam a recente “proletarização” do trabalhador docente; no entanto, tal processo nem é recente, tampouco ocorreu de maneira independente da proletarização dos demais trabalhadores. Sendo destituído dos meios necessários para a execução de seu ofício, o profissional da educação pública surge na história do Brasil assim como os demais assalariados, isto é, sendo obrigado a vender a sua força de trabalho em troca de salário para sobreviver. Fosse, no início, como professor adjunto ou como complementarista, e hoje, como educador do ensino básico, seja primário ou secundário, o assalariado docente foi desde sempre um proletário. O que ocorre hoje é tão somente um processo de aprofundamento da sua condição proletária, notadamente na medida em que a execução do trabalho docente se encontra cada vez mais apartado da concepção de suas diretrizes pedagógicas.

 

  Ou seja, cada vez mais o professor é um simples executor de ordens, um mecânico  da “fábrica de conhecimento”, cabendo ao Estado a criação das normas que regulem a sua atuação – como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais (DCNs e PCNs), a recém-aprovada Base Nacional Comum Curricular (BNCC) –, e o controle dos conteúdos a serem privilegiados por meio de avaliações externas como a Prova Brasil e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb). A interação promíscua entre o Estado e empresas privadas acentua essa separação por meio da adoção oficial de apostilas e livros didáticos e, no caso do ensino a distância (EaD), da adoção de softwares de interface cada vez mais sofisticados que rebaixam a atuação do educador à mera aplicação e correção de avaliações previamente formuladas.

 

  Estudiosos denunciam também a recente “precarização” do profissional da educação pública, imaginando que a adoção das políticas neoliberais houvera modificado de maneira essencial as condições de trabalho da categoria. Ignoram, no entanto, que a precariedade, lei de bronze nos países periféricos e dependentes como o Brasil, acompanhou os trabalhadores docentes desde os anos 1920, quando sua profissão começa a ser regulamentada e quando se tornam assalariados do governo. Desde então verifica-se que os professores têm sofrido um constante processo de desvalorização profissional [3]. Com a “democratização” do ensino básico, a chegada dos filhos da classe trabalhadora na escola, e o significativo aumento numérico da categoria para atender este público, estimularam os governos a manter o nível de gastos com os profissionais de ensino por meio de um incremento sucessivo de sua jornada de trabalho e de uma depreciação gradual dos seus salários. Essas condições, acrescidas do preconceito que desde então atinge os professores das classes populares, acarretaram na perda de prestígio da profissão docente ante a sociedade, realidade que ainda hoje se mostra evidente.

 

  Apenas nos anos 1970 surgem no Brasil sindicatos realmente combativos, que abandonam a postura “ordeira” cabível tradicionalmente aos “sacerdotes” do ensino, e passam a considerar os professores como profissionais da educação, como pertencentes à classe trabalhadora, somando-se assim à luta organizada pela reivindicação de melhores condições sociais e de trabalho [4]. Quando após a redemocratização surge a Constituição de 1988, que teoricamente concretizaria um maior respaldo jurídico aos profissionais da educação, a implementação efetiva dos direitos conquistados foi a cada passo sendo obstruída pelo processo de flexibilização das condições de trabalho que se iniciaria em meados dos anos 1990, pela acumulação não remunerada de responsabilidades decorrente da “democratização” da gestão escolar instituída pela Constituição e pela LDB, mas também pela crescente adoção de um modelo educacional voltado para o mercado, que passa a avaliar o trabalho docente por sua produtividade. Em suma, enquanto na aparência se percebe atualmente um rearranjo das condições de trabalho dos docentes, na essência, a precariedade dessas condições continua, desde sempre, sendo a regra. Portanto, se a narrativa da “precarização” é em geral inadequada para caracterizar a recente mudança nas relações de produção que ocorrem em países periféricos do sistema capitalista global, ainda mais inadequado é dar a entender que na história do Brasil o trabalhador da educação pública básica teve em algum momento os seus “anos dourados”.

 

  O Colonialismo Educacional

  O Brasil sempre foi, e ainda é, um país dependente, tanto no âmbito econômico, quanto no âmbito cultural. Mas é a partir do período pós-Segunda Guerra que a nossa dependência volta a ser rebaixada a patamares coloniais. Por volta desta época surge a teoria do capital humano, que, grosso modo, apresenta uma concepção do trabalho humano que, quando qualificado por meio da educação, seria um fator central na ampliação da produtividade econômica e, consequentemente, das taxas de lucro do capital. Criada na Universidade de Chicago, famoso antro do neoliberalismo, essa teoria passa a ser amplamente aplicada no campo da educação, institucionalizando assim em diversos países uma abordagem tecnicista e mercantil de ensino e de gestão educacional. De acordo com tal concepção, a escola não seria tanto uma “fábrica de conhecimento”, mas propriamente uma fábrica de força de trabalho, onde caberia aos educadores trabalhar a matéria-prima (o educando), confeccionando como produto final uma mercadoria bastante peculiar (por ser capaz de criar valor) e absolutamente fundamental para o capitalista (por ser capaz de criar mais-valor): a força de trabalho qualificada.

 

  Após o golpe militar de 1964, o sistema educacional brasileiro inicia uma nova fase. Na esteira do projeto da Aliança para o Progresso, por meio do qual os Estados Unidos, pressionados pela Revolução Cubana, tentam expandir sua influência na América Latina através de “auxílios” à educação, saúde e habitação desses países; o então Ministério da Educação e Cultura (MEC), em consórcio com a United States Agency for International Development (USAID), assina em 1966 os famigerados acordos MEC/USAID. Doze acordos foram firmados ao longo de quatro anos; a maioria deles relacionados à educação. Cinco estudiosos estadunidenses foram enviados ao Brasil para diagnosticar a “crise educacional” e oferecer a sua receita para a solução dos problemas aqui verificados. A receita estadunidense, ou, parafraseando Hugo Chávez, la recepta del diablo, seria inteiramente permeada pela concepção de trabalho fundamentada na teoria do capital humano. De lá para cá, as reformas do sistema educacional brasileiro se configuraram como subservientes tentativas de copiar o modelo educacional estadunidense; e, neste sentido, nunca passando de cópias pálidas e sempre defasadas de um modelo exclusivamente empresarial de educação.

 

 

  Nos anos 1970, mais uma crise estrutural do capitalismo daria início a uma mudança brusca na economia internacional, cunhada por alguns estudiosos como uma virada neoliberal, e por outros como um processo de globalização. São características dessa mudança a aplicação tecnológica da ciência na indústria, o consequente processo de automação do trabalho industrial, a ampliação acelerada do setor de serviços, o vertiginoso processo de financeirização do capital, a flexibilização das condições de trabalho (apoiada pelo desmantelamento das leis trabalhistas), uma política de privatização das empresas estatais, o recrudescimento da ideologia liberal, e uma nova investida do imperialismo (sobretudo o estadunidense) no sentido de aprofundar a dependência dos países periféricos.

 

  Na década de 1980, durante o processo de cobrança e renegociação das dívidas externas dos países periféricos, os países capitalistas centrais, por meio de suas agências multilaterais (como o Banco Mundial, o FMI, a OCDE, o BIRD, e outros) condicionaram os novos acordos à total submissão dos países devedores a políticas de cunho neoliberal, dentre as quais, no que aqui nos concerne, encontramos diversas políticas educacionais. A partir deste momento, dá-se início a um violento processo de privatização do ensino público nos países da América Latina. Tal processo haveria de ocorrer por diversas vias. Uma delas seria o escoamento de recursos públicos na alimentação dos monopólios da educação privada, fosse por meio de vouchers concedidos às famílias, fosse por meio de mecanismos de financiamento público (como é o caso do ProUni e do Fies no Brasil). Outra via seria a terceirização da gestão de escolas públicas, fosse por meio da administração de “especialistas” concedidos por empresas privadas, fosse simplesmente pela adoção de um modelo empresarial de gestão do ensino público. Por fim, o sistema educacional de todos os países teria que se adequar aos critérios internacionais de avaliação da qualidade do ensino, capitaneados pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), que, ao focar em conhecimentos técnicos básicos, como seja a leitura, os cálculos matemáticos, e rudimentos de ciências, terminaria por forçar as escolas do mundo inteiro a descurar daquelas áreas do conhecimento que teriam a capacidade de fornecer aos alunos uma visão crítica da totalidade social, como a história, a geografia, a filosofia, a sociologia, e as artes.

 

  A Herança PTucana

 Ao final da década de 1990, é introduzido no Brasil, de maneira sistemática e oficial, um movimento pelas referências nacionais curriculares. Já anunciadas em 1988, e oficializadas por Itamar Franco em 1994, resultaria desse movimento a instituição dos PCNs e a consolidação dos processos de avaliação do Saeb. Muito além de meras tendências aleatórias, tais movimentos seguiram à risca o modelo estadunidense de reforma empresarial da educação, que consistia basicamente em três etapas: padronização do ensino por meio de bases curriculares nacionais, testes censitários para avaliar a qualidade do ensino, e um sistema de responsabilização (accountability) que, com base no sucesso ou fracasso das escolas nos testes, poderia resultar tanto na bonificação dessas instituições quanto no seu fechamento [5].

 

  Esta tendência, fomentada pelas mesmas agências internacionais que estabelecem os critérios de avaliação do Pisa, teve o claro objetivo de reduzir o processo educativo à aprendizagem de habilidades e competências em disciplinas básicas (como português, matemática e ciências), mostrando assim um extremo cuidado para não educar demais a classe trabalhadora, mas apenas o suficiente para que esta fosse capaz de atender mansamente às demandas do mercado de trabalho. Sempre a reboque dos Estados Unidos e inteiramente dependente das agências internacionais, o Brasil abraçou por completo a nova ortodoxia educacional a partir do governo Fernando Henrique (1995-2002). O conjunto de reformas operadas naquele período reestruturou o sistema de ensino em sua organização, currículos, avaliação, gestão, e, sobretudo, no seu financiamento. A expressão maior dessa reconfiguração foi a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, lei n. 9.394/96.

 

  A reformas educacionais do governo FHC tinham o objetivo explícito de melhorar a economia nacional ao fortalecer o vínculo entre escolaridade, emprego, produtividade e comércio. A fim de desenvolver nos educandos as habilidades e competências exigidas pelo mercado, o governo tucano intensificou o controle sobre o currículo e avaliação, e fomentou uma maior participação da sociedade civil (leia-se, da burguesia) nas tomadas de decisão sobre políticas educacionais. Nesta mesma toada, é preciso dizer que os governos petistas representaram menos uma ruptura do que um aprofundamento da lógica empresarial e privatista da gestão anterior. Além do Enem – que, acoplado ao sistema de seleção unificado (SiSU), ao padronizar em âmbito nacional os critérios de avaliação vestibular, contribuiu para acentuar a mercantilização da educação pública, reforçando assim o sistema de responsabilização e o consequente rebaixamento do trabalho docente –, os governos do PT mantiveram outra herança da gestão tucana, o Fies, que, aliado ao ProUni, se configurariam na prática um formidável dispositivo de transferência de recursos públicos para instituições privadas de ensino.

 

  Neste sentido, a herança petista legada ao sistema educacional brasileiro foi, ao contrário do que defendem os seus representantes, catastrófica. Os mecanismos de “financiamento estudantil” capitaneados pelo Fies e pelo ProUni foram responsáveis pelo crescimento colossal dos ciclópicos monopólios do ensino privado. De 2003 até 2016, os gastos com o Fies e o ProUni cresceram em 1.150,68%, enquanto o investimento nas universidades públicas federais cresceu apenas 144%. [6] Esse vergonhoso escoamento de verbas públicas para instituições privadas resultou, entre 2010 e 2015, no crescimento de 22.130% dos lucros da Kroton, 565% dos lucros da Estácio, e 483% dos lucros da Ser Educacional. [7] Alimentados por verbas estatais, o insaciável apetite desses verdadeiros polvos do ensino superior privado os impeliu nos últimos anos a lançar os seus tentáculos sobre o ensino básico, através de compras e fusões de redes de escolas particulares. Se hoje os grupos de interesse do ensino privado (como o ABMES, a FENET, a ANUP, e muitos outros) vicejam e compõem uma poderosa fração da burguesia comercial, fração esta que atualmente goza de uma imensa capacidade de influência sobre as políticas educacionais, é aos governos do PT que eles devem agradecer.

 

  Além da frente que representava o financiamento público de instituições de ensino privadas, os governos petistas fortaleceram a frente do “controle de qualidade” da educação que, tendo um pé fixo em dispositivos como o Saeb, o IDEB, e as metas do PDE, teve o seu outro pé, não obstante, firmemente fincado no Pisa e nas receitas prescritas pelas agências imperialistas. A implementação de um controle de qualidade da educação brasileira, cujo interesse principal sempre foi a adoção de um modelo empresarial de ensino e a sua adequação às exigências do mercado, já vinha sendo esboçada desde os anos 1990, quando as classes dominantes começam a reunir forças para impor novamente a agenda do capital humano na educação brasileira. Dessa “força-tarefa”, da qual participaram a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Federação dos Bancos (Febraban), além de organismos internacionais organizados pela USAID e pela Fundação Ford, surgiu no fim da década de 1990 o “Movimento Brasil Competitivo”, organizado na época por Jorge Gerdau Johannpeter. A partir de então, como ervas daninhas, proliferaram de maneira acelerada grupos que reuniam interesses de diferentes frações burguesas na educação.

 

  Um desses grupos merece especial destaque. Diante daquilo que o Banco Mundial e os setores empresariais caracterizariam como fracasso dos trabalhadores da educação e da organização escolar pública, a solução proposta por essas entidades foi a interferência de novos sujeitos no processo educativo. Doravante, travestidas de “sociedade civil”, as frações dominantes deveriam se dispor a “ajudar” a escola pública a se reerguer. Liderado inicialmente pela burguesia industrial, esse movimento, já no governo Lula, passa a ser comandado pela burguesia financeira, especialmente pelo grupo Itaú, que conseguiu reunir as diversas frações burguesas já inseridas no ramo educacional para compor o movimento “Todos pela Educação”. Interessados em atuar na educação básica, compunham esse grupo as frações da burguesia industrial (Gerdau, DPaschoal, Suzano, Votorantim, Ambev), comercial (Pão de Açúcar, Carrefour, Gol, Telefônica), e, é claro, do setor financeiro (Itaú, Bradesco, Santander, ABN-Real), além da Fundação Roberto Marinho (Globo) e de algumas ONGs (Instituto Ayrton Senna, Instituto Ethos). Não é nenhuma coincidência que a principal medida educacional do governo Lula a partir de 2006 tenha se chamado “Compromisso Todos pela Educação”.[8]

 

 

  Com efeito, este nome foi o apelido carinhoso que o então ministro da educação Fernando Haddad batizou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), tamanho foi o compromisso deste plano com o supramencionado aparelho burguês de hegemonia. Raramente houve no Brasil tamanha comunhão de interesses entre as diversas frações burguesas como com relação ao projeto educacional que visavam, e visam ainda hoje, implantar no Brasil. É claro que a massiva presença dos interesses da burguesia, manifestada neste fatídico “plano de metas” estatal, haveria de instaurar na educação brasileira uma legítima “pedagogia do capital”. Pressionada por um sistema de avaliação que exige resultados mercantis pautados por critérios de agências imperialistas, a prática pedagógica passa a ser cada vez mais mensurada por rankings que aferem sua competência e produtividade, com base nos quais derivam a concessão de bônus ou a aplicação de punições às entidades educacionais. Para se ter uma ideia da gravidade desse controle, para que escolas públicas se vinculem ao Programa de Ações Articuladas (PAR) a fim de receber do poder público um centavo sequer do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), elas precisam assinar um termo que diz: “me comprometo a implementar as metas do ‘Todos pela Educação’”.

 

  Estes são apenas alguns aspectos da herança PTucana com que os trabalhadores da educação têm hoje que se defrontar. Todos os supostos méritos com relação ao avanço na área da educação que abundam nos discursos de políticos do PT, como é o caso da inclusão, pela política de cotas, de negros, indígenas, e pobres nas universidades, e como é também o caso da fundação de novas instituições públicas no interior do país, quando contextualizados pelas medidas privatizantes citadas acima, e por tantas outras que não foram aqui mencionadas, tais méritos não podem ser caracterizados senão como uma digestão moral da pobreza, como uma indigna esmola se comparada com os vultuosos lucros que as classes dominantes auferiram durante os governos petistas. De 2003 a 2016 mais de R$ 15,118 trilhões foram, cumulativamente, direto para os bolsos da burguesia rentista, por meio do pagamento de juros e amortizações da dívida pública, quase metade (47,12%) dos orçamentos da União destinados a todas as áreas governamentais, e 17 vezes mais que os recursos destinados à educação. [9] É, portanto, correta a indignação de Lula quando, diante da perseguição de que fora vítima, reclamou que as elites deveriam aplaudi-lo, pois nunca enriqueceram tanto como em seu governo.

 

  A Revolução Brasileira e o trabalhador docente

  O cenário atual é extremamente adverso para a classe trabalhadora, mas é especialmente preocupante para a categoria dos profissionais do ensino público básico. Desde o segundo mandato do governo Dilma, o orçamento voltado para a educação pública vem sofrendo sucessivos cortes. O governo Temer acelerou o passo ao desmantelar as leis trabalhistas e congelar por 20 anos os investimentos em educação. Agora, o governo Bolsonaro pretende dar o golpe final, acentuando os cortes orçamentários em todas as etapas do sistema educacional, preparando assim o terreno para a tomada dos monopólios da educação privada. O sonho dourado da burguesia entreguista e do imperialismo de transformar a educação brasileira numa fábrica de força de trabalho controlada por fundos de investimento nunca esteve tão próximo de se tornar realidade.

 

  Entretanto, na contramão desta tendência, os sindicatos dos profissionais da educação têm se colocado nos últimos anos na linha de frente da luta contra a privatização do ensino público e do consequente rebaixamento progressivo da sua condição de trabalho. Mesmo sobrecarregados e adoecidos, esses trabalhadores têm protagonizado neste primeiro semestre do governo Bolsonaro, juntamente com o movimento estudantil, gigantescas manifestações contra o projeto ultraliberal que se encontra em curso. Neste sentido, se o cenário atual lhes é extremamente adverso do ponto de vista do depauperamento de sua profissão, este mesmo cenário se mostra auspicioso do ponto de vista das lutas populares. As condições objetivas para uma ruptura política e econômica no país se encontram dadas. Pois, de um lado, o sistema político brasileiro, corrupto e apodrecido, perdeu totalmente sua legitimidade aos olhos do povo; e de outro, a burguesia nacional abandonou de vez o modelo PTucano de conciliação, e declarou guerra aberta contra a classe trabalhadora.

 

  Isso porque, da divisão clássica das frações burguesas (agrária, industrial e comercial) resta hoje uma única classe rentista que, rezando nas cotações da Bovespa e de Wall Street o seu evangelho diário, não mais vive dos seus negócios particulares, mas da rolagem da dívida pública. A escolha pela dupla Bolsonaro/Guedes representa a última cartada de uma burguesia que, em meio à ininterrupta crise econômica que se instalou no sistema capitalista global desde 2008, e ao irreversível processo de decomposição do sistema político da “Nova República”, não hesita em lançar mão do mais arcaico conservadorismo ideológico, da ameaça de uma nova ditadura, e de uma subserviência cada vez mais indecorosa ao imperialismo estadunidense para, por meio de sua dependência internacional, manter a sua posição de dominância nacional.

 

  No decorrer deste processo, ela vai se livrando inadvertidamente de todos os para-choques de classes que o governo petista havia instalado para protegê-la. A burguesia se mostra, assim, tão irracional no que concerne a seu ímpeto irrefreável pela acumulação infinita quanto racional se mostra em suas estratégias pragmáticas de negócios. Ela nada pode fazer a respeito disso, pois, não obstante os seus nobiliárquicos sobrenomes de família, ela não passa da personificação vulgar da lógica do capital. No seu ímpeto insano, ela desencadeará privatizações, cortes, contrarreformas e repressões. Não há povo que suporte passivamente tantos ataques. Inteiramente cega a essa realidade, e com a consciência imaculada de quem nos está prestando um imenso favor, a burguesia nos cozinhará a fogo alto na panela de pressão até que finalmente rebentemos. Por isso se diz que a revolução brasileira está em curso; e foi a própria burguesia quem deu o tiro de largada.

 

  Resta, portanto, que sejam preenchidas as condições subjetivas para essa ruptura. E os trabalhadores docentes ocupam um posto nodal nesta batalha. Pois se, enquanto trabalhadores, eles participam da luta mais ampla do proletariado pela diminuição da jornada de trabalho e pela ampliação de seus salários, enquanto trabalhadores docentes eles possuem uma especificidade estratégica. A conclusão que o capitalista convenientemente não tira das premissas de sua teoria do capital humano é que, se o professor é um operário que produz uma mercadoria tão importante para o capitalista como é a força de trabalho qualificada, ele também tem o poder de parar a sua produção. Isto é, o professor se encontra estrategicamente posicionado para, em vez de reduzir a sua atividade à mera qualificação da força de trabalho dos seus alunos a fim de suprir as demandas do mercado, poder esclarecê-los de que, dentro do projeto de poder das classes dominantes, as vidas dos filhos da classe trabalhadora são reduzidas a meras peças de engrenagem desse perverso sistema de exploração. Os professores, em suma, estão na privilegiada posição de poder instilar nos alunos a consciência crítica e o espírito revolucionário tão indispensáveis ao esforço de despojar a escola da sua condição de fábrica de mão de obra para transformá-la em um polo de contestação e perturbação do sistema capitalista.

 

  Mas para que isso ocorra, é preciso que as direções dos sindicatos façam um diagnóstico correto da crise e, a partir disso, insiram de maneira clara as demandas imediatas dos trabalhadores da educação em um amplo projeto de transformação social. É preciso que os docentes sejam capazes de vislumbrar a possibilidade de um outro modelo de educação pelo qual valha a pena lutar, e que percebam que, em um país periférico como o Brasil, a mais módica reforma educacional realizada em prol da grande maioria da população só será possível mediante uma revolução social. Urge, para isso, que se faça uma vasta mobilização a fim de ampliar o trabalho de base entre os setores despolitizados da categoria, entre aqueles que se encontram entorpecidos pelos ataques do governo, pela descrença no sistema político, e pela ausência de uma perspectiva de futuro. É necessário que lhes seja mostrada uma saída, uma estratégia de luta que aponte para o futuro. Faz-se urgente, em suma, que os sindicatos dos profissionais da educação coloquem na ordem do dia a revolução brasileira

 

  É neste sentido que conclamamos às/ aos Profissionais da Educação

  para construir o SEPE como um sindicato revolucionário.

  Uma entidade pela REVOLUÇÃO BRASILEIRA

 

[1] Dados retirados do Jornal do Estado de Minas. Matéria do dia 1 de Julho de 2019. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/2019/07/01/internas_educacao,1066019/professores-recebem-menos-que-outros-profissionais-de-nivel-superior.shtml

 

[2] JACOMINI, Márcia Aparecida; Gil, Juca; CASTRO, Edimária Carvalho de. Jornada de trabalho docente e o cumprimento da Lei do Piso nas capitais. 2018.  Disponível em: https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/download/86367/49650

 

[3] GOUVEIA, Andréa Barbosa; FERRAZ, Alexandre dos Santos. Sindicalismo docente e política educacional. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/er/n48/n48a08.pdf

 

[4] LUGLI, Rosario Genta; VICENTINI, Paula Perin. História da profissão docente no Brasil: representações em disputa. São Paulo: Cortez, 2009, p.105.

 

[5]  FREITAS, Luiz Carlos de. A Reforma Empresarial da Educação. São Paulo: Expressão Popular. 2018, p.78.

 

[6] REIS, Luiz Fernando; CHAVES, Vera Lúcia Jacob; GUIMARÃES, André Rodrigues. Dívida pública e financiamento da educação superior no Brasil. 2018. Disponível em: http://eduem.uem.br/ojs/index.php/ActaSciEduc/article/viewFile/37668/21760

 

[7] Dados retirados da Revista Exame. Matéria do dia 23 de junho de 2017. Disponível em: https://exame.abril.com.br/mercados/os-sinais-do-novo-fies/

 

[8] LEHER, Roberto. Universidade e heteronomia cultural no capitalismo dependente. Rio de Janeiro: Consequência, 2018, p. 35-39.

 

[9] Ver item ii.

 

 

 

 

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Comentários

  1. SÓ TEREMOS UMA REVOLUÇÃO NO PAÍS n, na educação se PERDERMOS A ILUSÃO DE CONCILIAÇÃO DE CLASSE, OS 14 ANOS DO PT-LULA-DILMA COIM SUA CONCILIAÇÃO DE CLASSE SE APOIANDO NUMA GRANDE BASE ALIADA COM OS PARTIDOS DE DIREITA MOSTROU QUE A DIREITA E A ULTRA DIREITA VAI ACABAR COM ESSES GOVERNOS , COMO VEMOS AGORA COM A ELEIÇÃO DO ULTRA DIREITA DO CAPITÃO BOLSONARO, MILITARISTA, DEFENSOR DO GOLPE MILITAR, E TORTURADORES , QUE COM APOIO DA BURGUESIA, DO CONGRESSO DOMINADO PELA DIREITA E DO JUDICIÁRIO POLITIZADO A DIREITA, IMPLEMENTANDO UM NEO LIBERAL RADICAL DEPRIVATIAÇÃO TOTAL

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