O segredo de Bolsonaro (reflexão sobre a ameaça fascista no Brasil)

O segredo de Bolsonaro (reflexão sobre a ameaça fascista no Brasil)

 

A saída desse circulo é muito simples: do fato de o liberalismo burguês, por medo do movimento operário ascendente e de seus objetivos finais ter exaltado o último suspiro decorre apenas que hoje, justamente, o movimento operário socialista é e pode ser o único suporte da democracia; não que os destinos do movimento operário socialista estão ligados aos da democracia burguesa, mas que inversamente os destinos do desenvolvimento democrático estejam ligados ao movimento socialista; que a democracia não se torna capaz de viver na medida em que a classe operária abandona sua luta emancipatória, mas, inversamente, na medida em que o movimento socialista  se torna suficientemente forte para combater as consequências reacionárias da política mundial e da deserção burguesa; que quem deseja o fortalecimento da democracia também precisa desejar o fortalecimento e não o enfraquecimento do movimento socialista e que, com o abandono dos anseios socialistas, também soa igualmente abandonados o movimento operário e a democracia

Rosa Luxemburgo, 1899

 

Não é fácil superar ilusões. No entanto, sem renunciá-las não se vai adiante. Numa aguda análise das revoluções de 1848 na Europa – ano de publicação do Manifesto – Marx escreveu em 24 de dezembro ao seu amigo Fred que “o grande fruto do movimento revolucionário de 1848 não é o que os povos obtiveram senão aquilo que perderam: a perda das ilusões”.

 

As ilusões do liberalismo de esquerda – o “combate à pobreza”, a “inclusão social”, “os avanços sociais” de governos progressistas nos marcos do capitalismo dependente – e outras quinquilharias destinadas a justificar no terreno moral o acomodamento produzido pela conciliação de classes, derretem feito sorvete sob o sol tropical. Em consequência, tanto os liberais de direita quanto os de esquerda exibem suas misérias. No entanto, as ilusões inerentes à conquista do reino da felicidade neste vale de lágrimas ainda parecem sólidas e insinuam-se capazes de mover o moinho. Os primeiros, à direita, indicam a crise dos valores como fonte de nossos males, razão pela qual operam a redução da politica à moral e turbinam sua fé na ação restauradora dos tribunais, como se juízes pudessem dar um jeito nesta joça; os segundos, reunidos em torno do PT e Lula, indicam que o sistema político necessita urgente reforma para superar a “mais grave crise institucional” inaugurada a partir da destituição de Dilma Rousseff em 2016. Ambos querem a melhoria do sistema e, cada qual a seu modo, aspira a restituição das virtudes da democracia. Mas ao contrário da idealização, a democracia é precisamente o regime que temos diante de nossos olhos.

 

No Brasil, as classes dominantes pretendem insularidade ao escancarar a diferença entre a narrativa política hegemônica aqui e nos demais países latino-americanos. Na Argentina, Equador, Costa Rica, Argentina, Colômbia ou México, ninguém discute a hipótese do fascismo. No entanto, entre nós brasileiros, qualquer medida tomada pelo governo liberal e corrupto de Temer ou ainda a ação de grupos da direita, sempre presentes em qualquer democracia parlamentar, é imediatamente identificado como ameaça fascista. Mas o fascismo não emerge toda segunda-feira, pois é regime político que resulta de intensificação da luta de classes, diante da qual a burguesia lança mão de uma cartada final destinada à eliminação de seu inimigo – o avanço socialista das classes subalternas – como meio radical de alterar por longo período a correlação de forças a seu favor. Nos países da periferia, especialmente na América Latina, é comum confundir os mecanismos “normais” de controle social-estatal com práticas fascistas pois a democracia é regime político de caráter restringido.

 

 

Duas moléculas de história

 

O regime liberal burguês implantado em 1985 resultou da estratégia de “transição lenta, gradual e segura” elaborada por militares, capitalistas e a embaixada de Washington. Não foi processo isento de avanços e retrocessos e naqueles dias, nós, militantes da esquerda, atuávamos sob justificada dúvida: a ala fascista do regime militar perderia ou não o comando da política? O país – muitos se perguntavam – caminhava para a democracia ou sofreria retrocesso com a volta das prisões, desaparecimentos e assassinatos? Não era dúvida existencial, de extração acadêmica ou especulativa. A manchete da Folha de São Paulo do dia 28 de agosto de 1980 pode refrescar a memória sobre o clima daqueles dias nebulosos e o contraste com nossa situação atual: “Bomba do terror causa morte no Rio; OAB, Câmara Municipal e Jornal são atacados”. A crônica é mais precisa:

 

“Duas bombas de alto teor explosivo provocaram a morte de uma senhora e ferimentos em outras seis pessoas, ontem, no Rio, em dois atentados ocorridos no início da tarde: um, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil e outro na Câmara dos Vereadores. Num terceiro atentado, de madrugada, uma bomba de pouca potência destruiu parcialmente a sala do jornal “Tribuna da Luta Operária”, não fazendo vítimas.”

 

 

A lenta exaustão da ditadura cívico-militar produzia dúvidas sobre o futuro imediato em todo militante socialista, obrigando-o a caminhar com angústia na alma. Bomba na OAB e morte de dona Lídia!! Bomba na Câmara de Vereadores? Bomba no jornal do PC do B, todos no mesmo dia? Os fascistas não entregarão a rapadura!! Alguns meses depois, em abril de 1981, o famoso atentado no Riocentro levou à renúncia de ninguém menos que o general Golbery, o estrategista político do regime, defensor da transição ao regime democrático. Naquele contexto, manter a firmeza necessária e a militância não era tarefa fácil, pois os riscos eram bem maiores do que aqueles estampados na manchete do jornal. Afinal, os fascistas seriam derrotados e a democracia venceria ou, finalmente, voltaríamos aos piores dias da ditadura? A democracia venceu, sabemos. A militância de esquerda a qual eu pertencia saía do processo com um sabor amargo porque todos os crimes da ditadura estavam impunes e a dívida externa – de contratação privada – fora estatizada com um canetaço e teria que ser paga com imenso custo social por meio de políticas de austeridade de extração fundomonetarista.

 

Na verdade, em 1985 a ditadura já não era mais possível e a transição era pra valer. A política externa dos Estados Unidos não mais estava baseada exclusivamente no terror de Estado. A crise econômica, o processo de acumulação de capital e a ofensiva burguesa contra o “gigantismo estatal” anunciava amplo processo de privatização preconizado pelo manifesto dos empresários em março de 1977 encabeçado por Einar Kok, então presidente do Sindicato de máquinas do Estado de São Paulo. A fração da burguesia industrial reivindicava a “volta a democracia” com considerável apoio de outros setores da classe e os capitalistas preparavam o assalto ao estado na “compra” das suculentas estatais e no controle civil do Estado. À esquerda, nós, os defensores da derrubada revolucionária da ditadura, perdíamos espaço para o Partidão que postulava a defesa das “liberdades democráticas” apoiado numa ampla aliança de classe encabeçada pela burguesia paulista. A lembrança daquela época e do clima então dominante me ocorre agora, quando escuto algo acerca da “onda fascista” que segundo alguns, se aproxima com a certeza semelhante àquela que anuncia o amanhecer. Aos que desprezam as lições da história, é necessário recordar que aquela longa ditadura cívico-militar não era considerada um regime fascista, embora suas atrocidades – ainda impunes – tenham sido imensas. Agora, observo que a “ameaça fascista” é denunciada sem análise detalhada, apenas como expressão da angústia produzida pela crise do regime político de petistas e tucanos.

 

De fato, eis aqui a questão central: o sistema petucano agoniza. Na ausência desse reconhecimento e ignorando o fracasso histórico – programático e moral – do petismo em mudar o país, tornou-se cômodo e até mesmo necessário atribuir à “onda fascista” todo e qualquer evento, seja a repressão a uma greve, o assassinato de uma liderança popular, a decisão de um tribunal, uma campanha da mídia, etc. Mais do que uma possibilidade real, a ameaça fascista é invocada pela ala esquerda do liberalismo como meio de iludir a bancarrota histórica do petismo e serve também à direita que, se efetivamente ameaçada em seu privilégio de classe, não vacilaria em caminhar rumo à ditadura.

A bomba explode nas mãos de militares que preparavam atentado

 

 

O espasmo fascista

Na América Latina ninguém pode menosprezar a tentação fascista e, em consequência, não se deve banalizar o fenômeno sobretudo porque em algum momento, quiçá será necessário reconhecê-lo e enfrentá-lo. Aqui e agora, não tenho dúvidas a respeito: não vivemos uma onda fascista ainda que existam manifestações de caráter e orientação fascista.
O liberalismo de esquerda venceu as eleições de 2014 e a presidente Dilma uma vez eleita, desatou a guerra de classes contra o povo aplicando a política econômica de Joaquim Levy que, na prática, resgatava as teses fundamentais do liberalismo de direita, defendido por Aécio Neves, o candidato derrotado. Configurado o estelionato eleitoral, o primeiro grito consistente da direita fascista foi dado pelo General Mourão muito tempo depois, num encontro maçônico. O general – hoje vice-candidato presidencial com Bolsonaro – defendeu o programa ultraliberal em economia e, caso necessário, a defesa da intervenção militar aplicada sob o bordão imprescindível para a sobrevivência na selva: “suportar o desconforto e a fadiga sem queixa e sermos moderados nas necessidades”. (http://nildouriques.blogspot.com/2017/10/o-general-no-pendulo-de-washington.html).
A despeito da desinibição do general, as limitações e contradições para o fascismo emergir no país são ainda consideráveis. O fascismo supõe a existência de organizações de massa e lideranças que inexistem no Brasil. É fácil constatar que tanto o MBL quanto o “Vem pra rua” não possuem a capacidade ofensiva e atuam quase exclusivamente na reação ao petismo e a Lula, um adversário tão débil quanto necessário. Ademais, uma onda fascista requer um líder político, alguém com capacidade semelhante àquela de Carlos Lacerda no período pré-64. O deputado Bolsonaro, antecipo, não reúne condições para cumprir essa função, embora as pesquisas eleitorais deste momento despertem temores ao eleitor/militante de consciência ingênua. Portanto, a ausência de organizações de massa e a inexistência de uma liderança consistente, limitam o potencial fascista na conjuntura imediata. Mas há obstáculos ainda maiores.

 

O caráter classista do fascismo

A coesão burguesa é a característica mais evidente da conjuntura nacional. Todas as frações de classe – o capital comercial, bancário, industrial e agrário – mantêm sólida unidade em torno de um programa de orientação liberal comandado, obviamente, pela fração financeira. Há, portanto, evidente contraste na correlação de forças entre as classes dominantes e as subalternas. Estas atuam na resistência às políticas liberais mas sem unidade política permanente e, mais importante, sem identidade classista. Em poucas palavras, quando possível os trabalhadores esboçam resistência e expressam certa eficácia (Marcha sobre Brasília) mas seu ativismo não é de corte socialista. Enfim, se a resistência tem sido importante, igualmente visível é a falta de consistência para preparar e efetuar a ofensiva contra a classe dominante e, menos ainda, para propor alternativa política.
Na medida em que o Plano Real (tucano) se consolidou nos governos petistas, a coesão das distintas frações de classe atingiu o ápice. Hoje a burguesia exige fidelidade à proposta liberal e nem mesmo sua fração industrial residual é capaz de oferecer qualquer resistência significativa em direção oposta. Assim, o desenvolvimentismo de Lula e Ciro representa basicamente uma proposta ilusória em busca de uma classe social impossível de encontrar no país, razão pela qual o lamento em torno da “desindustrialização” e a promessa de “crescimento com distribuição de renda” ocorre sem produzir qualquer consequência.

 

Tal como o leigo pode perceber, a economia se deteriora e os lucros explodem! O latifúndio tem assegurado a renda da terra navegando na recuperação dos preços internacionais indicados na Bolsa de Chicago. Os banqueiros exibem estratosféricas taxas de lucro ano após ano, com a Selic em elevação ou em baixa. A concentração do capital comercial cresce e os lucros suculentos também. A burguesia industrial fenece sem manifestar resistência, pelo contrário, na mesma medida em que exige maior abertura da economia reivindica políticas compensatórias para sustentar sua incapacidade crônica na concorrência com produtos estrangeiros. O assalto ao Estado não respeita regras! Enfim, a classe dominante anuncia sem vacilação não existir vida burguesa fora do liberalismo extremo. A expressão máxima da coesão burguesa em torno do ideário liberal é o lançamento da candidatura de um funcionário do capital financeiro, Henrique Meirelles, à presidência do país. A “reforma moral’ pretendida pelos liberais e anunciada pelo general Mourão necessita candidatos que não cedam ao “populismo” e à conciliação de classes. Meirelles é impotente no terreno eleitoral mas sua presença é garantia de que o liberalismo de direita terá um profeta que não cede aos apelos mundanos inerentes a uma eleição presidencial que se realiza num momento de enorme crise social. Ademais, ele não esta só na cruzada ultra liberal: Amoedo, Meireles, Alckimin, Bolsonaro, Marina…
O liberalismo de esquerda – Lula, Ciro, Manuela e até mesmo Boulos – clama pela restauração de programas sociais limitados, doses possíveis de justiça tributária e respeito ao cretinismo parlamentar, que é incapaz de legitimar o regime politico que apodrece. Não há saída pelas regras do sistema! Não é mais possível restaurar as “virtudes” da democracia. O que acontecerá?

 

O papel da pequena burguesia

Ao contrário da grande burguesia que, repito, exibe enorme unidade política em torno do programa liberal, a pequena burguesia – proprietária e assalariada – indica um comportamento errático, mas de crescente radicalização. Não faz sentido buscar coerência na atuação da pequena burguesia e das classes médias em geral, pois ela oscila de acordo com a intensidade da crise. No entanto o combustível da radicalização das classes médias é duplo: a corrupção e os efeitos nocivos da crise econômica. A corrupção – sempre inaceitável para um socialista! – é igualmente detestável para todos e funciona, aqui e agora, como espécie de justificativa “ética” para o cinismo pequeno burguês, cuja existência está marcada por pequenos privilégios numa sociedade atravessada pela profunda desigualdade de classe.

 

 

Os pequenos burgueses de Gorki

 

 

A direita e a corrupção

A redução da política à moral confere enorme e invejável radicalidade à pequena burguesia na disputa abstrata pelos “valores”, pois assim não necessita prestar contas às exigências do mundo real. Portanto, o liberalismo de direita está mais apto para capitalizar o descontentamento generalizado contra a corrupção, na medida em que indica o Estado como origem de todos os males no suposto de que o “setor privado” não é corrupto! Ademais, como sabemos, as massas não fazem distinção entre governo e Estado e culpam o primeiro por seus males. Neste contexto pouco importa se atrás de um político corrupto sempre encontramos um empresário exitoso, afinal a crítica do liberalismo de direita não é dirigida contra os capitalistas (Eike Batista ou os irmãos Batista da JBS), mas aos políticos corruptos comprados por eles e com insistência denunciados no noticiário diário da TV.

 

A defesa social-democrata do Estado interventor e desenvolvimentista é incapaz de enfrentar a ofensiva liberal de direita no terreno moral, não somente porque minimiza os efeitos perversos do assalto ao estado, realizado à luz do dia por meio da elevadíssima dívida pública, mas, sobretudo, porque o programa liberal de petistas e tucanos tem como pilar de sustentação a compensação estatal com suculenta “ajuda” para as frações perdedoras do capital nacional (e também multinacional!). De resto, o petucanismo não pode dar lições sobre moralidade pública à direita proto-fascista ou neofascista, pois nas suas filas e suas alianças abundam corruptos notórios ou celebridades delatadas prestes a ajoelhar nos tribunais ou mesmo ingressar nos presídios.

 

Acuado no terreno moral quando as massas descobrem o alcance da corrupção nos assuntos de Estado, o petismo revela impotência na disputa política. Nestas circunstâncias logra apenas simular a reprovação moral ao indicar – nos melhores casos! – que a corrupção é inerente ao Estado burguês, numa súbita e inacreditável análise leninista do Estado e não inocente naturalização do fenômeno. Na realidade pretende apenas ocultar seu protagonismo na maquinaria podre da corrupção entre capitalistas, políticos da ordem e o sistema partidário. No entanto, a despeito da simulação, as massas não esquecem que o êxito petista foi, durante 13 longos anos, beneficiário direto da máquina corrupta. A direita – promotora de tenebrosas transações desde sempre – é tão mais hábil quanto cínica e não perde oportunidade de indicar o PT, e Lula, como dirigente da mais perigosa organização criminosa já operante na política brasileira. FHC, o uspiano, é insubstituível nesta função: emprestou verniz sociológico, de extração weberiana, às teses de Moro ao afirmar que “a corrupção sempre existiu, mas não era organizada pelo sistema político”.

 

 

A esquerda e a corrupção

Nada pode ser mais pernicioso na política do que a complacência, ou ainda a ambiguidade, na luta contra a corrupção. Ainda pior é considerar o combate à corrupção mero resíduo moralista inadequado à luta de classes. Aos complacentes bastaria recordar que Getúlio Vargas foi acossado até os últimos dias sob a acusação de orquestrar um “mar de lama”. Jânio Quadros tornou-se popular também porque “varreria” a corrupção do país. João Goulart e o reformismo nacionalista era igualmente acusado de conviver com a roubalheira. E Collor de Mello, como esquecê-lo? Acaso não atacaria os marajás para redimir o país dos males da corrupção? Após tantos exemplos de nossa História é no mínimo irresponsável abandonar a luta contra a corrupção ou, pior ainda, deixá-la nas mãos do liberalismo de direita sob o “argumento” de udenismo. Não se deve esquecer que quando surgiu na cena política o PT (e especialmente Lula!) tinha no combate à corrupção uma importante bandeira de agitação contra a classe dominante que, lentamente, foi secundarizada e mais tarde completamente esquecida na exata medida em que o partido se submetia à razão de Estado. Não foram necessárias mais do que algumas vitórias eleitorais em prefeituras e governos de estado para indicar a Lula e ao PT que a crítica, e especialmente o combate à corrupção, deveriam ser considerados “erros de juventude” incompatíveis com o “realismo político” de quem precisa governar o país.

 

A burguesia opera a redução da política à moral, empurrando o liberalismo de esquerda para a impotência política na exata medida em que novas denúncias surgem e velhas são requentadas segundo a conveniência e cálculo político do juíz Moro. Foi assim que a classe dominante – articulando judiciário e imprensa – afastou de maneira definitiva amplos segmentos da classe média do polo eleitoral representado pelo PT e Lula. No entanto, ainda que importante, não foi esta a cartada decisiva. A ofensiva do liberalismo de direita é resultado necessário do pacto de classe comandado pelo PT em benefício de todas as frações do capital. A eliminação definitiva do horizonte socialista e de certo radicalismo político no partido e nos sindicatos sob sua influência, promovidos pela suposta sapiência de Lula – considerado pelos ingênuos pouco menos que um gênio político -, eliminava no nervo o único obstáculo que as frações burguesas realmente temem: a referência classista e a ação combativa orientada pelo programa socialista. Neste contexto, a acomodação de classe não poderia produzir mais do que as políticas sociais compensatórias – uma digestão moral da pobreza – destinada tão somente a mitigar a dor dos miseráveis sem qualquer possibilidade de superar a opressão e exploração a que estão historicamente submetidos. Esse processo é irreversível e basta observar as alianças que Lula – desde a cadeia em Curitiba – traça com Renan Calheiros, Eunício de Oliveira, Wellington Fagundes e tantos outros personagens que votaram pela destituição de Dilma e eram considerados “golpistas” até ontem na mesma medida em que são absolutamente necessários e justificáveis para sair da crise agora…

 

 

A crise social e a pequena burguesia

A despeito dos programas sociais, os dramas da pequena burguesia foram encubados nos governos do PT pois a concentração de renda e patrimonial nunca cessou desde 1994. Em sentido oposto, naqueles anos o bordão preferencial de Lula e Dilma consistia basicamente em afirmar o milagre dos governos petistas responsáveis por “tirar da miséria 40 milhões de pessoas e incluir outros 30 milhões na classe média”. A falsificação grotesca da metodologia necessária para garantir essa maravilha pouco importava ao petista militante, e menos ainda à burocracia parlamentar do partido, que colhia os dividendos da popularidade passageira nas urnas. O bordão preferencial de Lula era enganoso em dupla dimensão. Ora, até mesmo a sociologia da ordem ensina que um país de classe média forte é insustentável na periferia capitalista latino-americana dependente. Ademais o discurso presidencial dissipava a consciência de classe dos trabalhadores, pois a entrada na “classe média” representava o acesso ao paraíso sem as dores do enfrentamento com o estado burguês e as classes dominantes. O poder burguês intocável e o número de pobres e miseráveis diminuindo: sem dúvida, o “melhor dos mundos possíveis”. De fato o discurso de Lula – como todo político vulgar orientado pelo princípio da justiça social – justificava com a presumida sabedoria do presidente a possibilidade da conciliação de classe desde que, obviamente, “bem manejada”. Na verdade a operação política consiste em apresentar a conciliação como fruto do talento de Lula, e não como resultado de uma imposição das classes dominantes que a descartariam sem cerimônia quando necessário.

 

Eis a razão pela qual Lula foi presa fácil para Moro: sua prisão não representava qualquer ameaça à ordem dominante tal como demonstrou sua melancólica despedida no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo. Quando muito Lula figura como obstáculo eleitoral, que ao fim e ao cabo, caso necessário, a classe dominante estabelece o rumo do governo num acordo tão fácil quanto desejado pelo ex-presidente. Por isso todas as previsões catastróficas produzidas por seus profetas acerca do cancelamento das eleições presidenciais, golpes militares ou ainda a ameaça fascista são tão descabidas quanto convenientes para o petismo. Essa narrativa é irreal mas não inútil, pois mantém o liberalismo de esquerda cativo dos estreitos limites do sistema, onde cumprirá eternamente a função de denunciá-lo na vã tentativa de melhorá-lo e colocá-lo a serviço dos interesses das maiorias. A recente reativação eleitoral da polarização petucana (Alckmin x Haddad), é talvez a última cena deste conhecido roteiro cujo objetivo é limitar o horizonte político do processo eleitoral. O resultado será visto em poucos meses.

 

A oposição parlamentar socialista – cujo epicentro é o PSOL – ao defender a política social dos governos petistas e Lula da perseguição de Moro, comete pecado capital: renuncia o terreno da disputa moral para gozo exclusivo da direita liberal. Nesta linha, destinada a assegurar e eventualmente ampliar a bancada de deputados com votos de extração progressista supostamente hegemonizada pelo petismo, troca a possibilidade de constituir-se como referência anti-sistêmica aqui e agora em nome de uma representação parlamentar mais numerosa contra o futuro governo que já sabemos, será liberal. No entanto, a vida não se resume ao parlamento e menos ainda quando o sistema parlamentar, tal como atualmente funciona, entrou em crise terminal.

 

 

Os efeitos corrosivos do liberalismo na economia

Longe do desconforto de ordem moral, a contradição fundamental da pequena burguesia – especialmente a proprietária – é resultado da aplicação cada dia mais intensa do programa liberal responsável pela lenta e inexorável corrosão de suas condições sociais e possibilidades econômicas, reduzindo a distância que a separa dos proletários, sempre mais pauperizados. Neste contexto, aumenta o descontentamento com a política oficial e a voracidade da crise mantém o pequeno burguês na oscilação entre a contestação do governo e escassas esperanças nas promessas do liberalismo de direita. Não há que buscar coerência no comportamento da pequena burguesia, pois seus movimentos resultam precisamente da intensidade da crise. A greve dos caminhoneiros – puxada pelos proprietários autônomos – é expressão clara do fenômeno, mas está longe de ser a única. A reticência de setores sindicalistas e progressistas em apoiar sem vacilação aquele movimento revela o quanto ignoram a natureza específica da crise atual.

 

A enorme ofensiva do capital contra o funcionalismo público – nas três esferas, federal, estadual e municipal – é crescente e afeta diretamente as classes médias insatisfeitas com os custos elevados das escolas privadas, planos de saúde, segurança, vida social e cultural, etc. Assim, se por um lado a ideologia liberal condena o Estado como fonte de todos os males, por outro a ausência ou a péssima qualidade dos serviços públicos decorrentes da “austeridade fiscal” empurra milhões para o combate anti-sistêmico. Sendo assim, não basta clamar em defesa dos “direitos da cidadania” e menos ainda à retórica sobre a importância das políticas públicas notoriamente incapazes de evitar o abismo social onde se encontram milhões de trabalhadores. Numa lógica das situações extremas simplesmente não há espaço para o antigo keynesianismo ou as políticas de bem estar social de extração socialdemocrata. Nem mesmo cobrando impostos da classe dominante ou limitando o tradicional assalto ao Estado promovido por todas as frações do capital. O rentismo é imbatível no interior do sistema pois ele é o sistema!

 

 

 

 

O rentismo seguirá apertando a pequena burguesia porque é próprio de sua autorreprodução a concentração e centralização da propriedade, tal como ocorre desde 1994, início do Plano Real. O latifúndio se amplia e também as terras e imóveis urbanos seguirão nas mãos de poucos proprietários, na exata medida em que os aluguéis encarecem e a propriedade torna-se importante instrumento de reserva de valor. O pesadelo pequeno-burguês nesse contexto é interminável. É verdadeiramente um mistério que a esquerda – especialmente o PSOL – não atue em consequência e busque precisamente representar este radicalismo que, ausente, é inapelavelmente capturado pela direita liberal. A pequena burguesia possui como referência de futuro apenas as promessas irrealizáveis do liberalismo de direita, pois o liberalismo de esquerda limitado à promessa de políticas de corte socialdemocrata que acabam de ruir é incapaz de captar sua ira.

 

 

O combate a corrupção

Nós socialistas sabemos que a origem da corrupção é a relação simbiótica entre capital e Estado. No entanto, este reconhecimento não pode ocultar a decadência política e moral do petismo, especialmente de sua direção, e a consequente impotência política de um partido sob razão de Estado incapaz de combate-la até o fundo e o fim. O bom moço Keynes – ignorado em larga medida pelos keynesianos brasileiros – alertou há quase um século (1926) que “a inépcia dos administradores públicos contribuiu muito para levar o homem prático ao lasseiz-faire – um sentimento que, de maneira alguma, desapareceu. Quase tudo o que o Estado fizesse além de suas funções mínimas, no século XVIII, era, ou parecia, injusto ou sem êxito”. Ora, quando Dilma aplicou em 2014 um estelionato eleitoral semelhante ao de FHC em 1994, a inépcia petista sabotou no nervo a “competente” administração da ordem alimentada durante dois mandatos por Lula. Neste contexto, a memória sobre o veranico maravilhoso do segundo mandato do ex-presidente evaporou, especialmente para as classes médias e a pequena burguesia proprietária. A destituição de Dilma – o momento em que a burguesia decretou o fim da conciliação de classe no país – foi embalada na propaganda exitosa que a ex-presidente era completamente destituída de qualidades intelectuais e virtudes políticas para dirigir o país. Enfim, seu governo exibiu a “inépcia dos administradores públicos” indicada por Keynes e aqui difundida de maneira insistente; até mesmo parte do petismo alimentou esta política na medida em que também dirigiu muitas críticas a Dilma no suposto de que se “Lula estivesse lá, tudo seria diferente”…

 

A redução da política à moral segue crescendo no processo eleitoral sempre que surgem novas acusações e as antigas são tiradas do baú pelo juíz Moro contra Lula. Foi assim que a classe dominante afastou amplos segmentos da classe média do polo eleitoral representado pelo PT e Lula, agora estruturalmente debilitado por razão elementar: sem uma referência de classe socialista e combativa, Lula e o PT não podem mais vencer essa batalha. Ao contrário, cada dia que passa, como partido da ordem que alimenta esperanças no sistema, empenhado em renová-lo como se fosse possível fazê-lo, terá inexoravelmente menos espaço entre as classes médias, jogando-as aos braços do melhor pastor. As classes médias – ao contrário do que pensa a filosofa municipal – não representam o “horror”. Ora, foram precisamente elas que deram a vitória ao PT e ao seu profeta Lula, que nos governos petistas fixaram como utopia possível a “inclusão social” tal como se, de fato, a esquerda não mais se definisse pela luta socialista mas única e tão somente na luta contra as “injustiças sociais” ou, como pretende renovar o PSOL, na luta “contra os privilégios”. Afinal, não foi de Lula a propaganda segundo a qual “40 milhões de brasileiros deixaram a miséria e outros 30 entraram na classe média”? Pois bem, as classes médias e os despossuídos desfrutam agora de um país sem horizonte socialista, o único polo capaz de rivalizar com a ofensiva ultra liberal das classes dominantes e, em consequência, oscilam em direção à direita que captura sua atenção na medida em que a política está reduzida à moral e o paraíso parece perdido para sempre por pura responsabilidade da “esquerda”.

 

De resto, as reformas liberais caminham bastante bem. Não deve ser considerado um feito menor o fato de que um governo sem qualquer aceitação tenha avançado como nenhum outro na direção da política encabeçada pela fração financeira do capital. A mais importante foi a reforma trabalhista que derrubou estruturalmente os salários e afirmou o terreno fértil para o aprofundamento da superexploração da força de trabalho. Antes dela, o congelamento dos gastos do Estado por duas décadas garantiu os recursos necessários para manter o caráter rentista cujo epicentro é a dívida pública. E o fim de um regime previdenciário de interesse imediato para os bancos está consolidado como se sua eliminação fosse uma condição para a existência do país. A resistência ao programa liberal tem sido forte mas fragmentada, e tragicamente, os sindicatos e movimentos populares reagem somente na medida em que o parlamento pauta as reformas. Um movimento de massas orientado por uma concepção parlamentar de política seguirá necessariamente limitado a posição reativa.

Frente eleitoral e frente antifascista

 

Neste cenário podemos observar com clareza os estragos produzidos pelo colapso programático e moral de 13 anos de governos petistas. A direita não cansa – e não cansará! – de identificar toda esquerda com o petismo. É confortável para as classes dominantes a identidade de toda esquerda com a crise programática e moral do PT. Pior ainda é observar que as forças de esquerda não desistem de marchar de mão dadas com Lula, a principal liderança eleitoral do partido, trazendo o petismo a reboque. O ato no Circo Voador no Rio em março deste ano e o Show Lula Livre em julho – ambos com a presença de Boulos do PSOL – exibem bastante bem a profundidade do estrago: é claro até mesmo para o observador neófito que antes de avançar na constituição de uma frente anti-fascista, os eventos eram, de fato, campanha eleitoral do PT e Lula.

 

Portanto a linha “estratégica” à esquerda é suicida. O PSOL recusa o radicalismo de esquerda e pretende herdar o espólio petista desconsiderando a natureza específica da crise atual – em larga medida compreendida como se fosse mero resultado da política recessiva de Dilma/Temer – e ignora o profundo e definitivo desgaste do projeto petista e seu líder eleitoral na classe trabalhadora e em amplos setores da classe média. No limite, a aliança branca que o PSOL realiza com o PT sob o argumento do “direito de Lula ser candidato”, com Boulos insistindo em atitudes de “solidariedade” irrestrita ao ex-presidente, pretende tão somente captar o voto para uma bancada de deputados e senadores no suposto de que a base eleitoral do PT caminhará em direção a candidatos éticos e mais combativos e não votará nos parlamentares que seguem Lula e Haddad, composta majoritariamente de oportunistas de todo tipo. Ademais, além de sua inscrição nos marcos restritos da política parlamentar, é notório que essa atuação pretende definir o alinhamento do PSOL no segundo turno em torno do candidato petista, provavelmente Haddad. De resto, anuncia-se sem muita convicção e de maneira parcimoniosa a transição para outro partido cuja composição e hegemonia abrigaria possivelmente as correntes moderadas do PSOL e a “banda ética” do PT capaz de inaugurar no Brasil uma… nova esquerda!

 

Este “projeto” despreza a evolução recente do capitalismo dependente em sua fase rentística na suposição de que o liberalismo de esquerda combativo, a “aliança com movimentos sociais” e uma dose de cretinismo parlamentar poderá realizar funções construtivas na guerra de classes inaugurada pelo ajuste de Dilma e aprofundada pelo governo liberal e corrupto de Temer. É ledo engano. Nestes termos o PSOL navega sem bússola e perde oportunidade histórica de romper com os limites políticos e culturais que ainda aprisionam contingentes de trabalhadores na angústia e exploração de um sistema que não mais tem capacidade de renovar-se pelas vias “civilizadas” e no “respeito às regras democráticas”. A denúncia do “estado de exceção” expressa precisamente essa falência da crítica e a miséria do diagnóstico centrado na “crise de representação do regime político” que, nestes termos, derivou na “mais profunda crise de nossa democracia”. Há, contudo, os ventos erráticos do sistema eleitoral que poderá reservar surpresas nunca antes pensadas.

 

 

O segredo de Bolsonaro

Bolsonaro mantém posição nas pesquisas operando no vazio do radicalismo de esquerda e também na dupla incapacidade de liberais de esquerda (PT) e de direita (PSDB) em afirmar mecanismos de renovação do sistema petucano, cuja impotência em afastar-se da lepra da corrupção é cada dia mais evidente para milhões de eleitores. Neste contexto, a pecha de fascista destinada ao deputado oculta algo essencial: o êxito nas pesquisas eleitorais é resultado direto de sua insistência na acusação do sistema político petucano, de todas suas misérias e não por que é de fato, um novo ‘Messias’, capaz de representar o ovo da serpente que na próxima segunda-feira nos conduzirá ao regime fascista. As teses ultra liberais que toscamente indica no terreno da economia são – ao contrário do que os acadêmicos julgam – ácido contra a inépcia das políticas públicas de corte socialdemocrata ou caritativa em tempos de crise social e de colapso financeiro do Estado, incapazes de romper a dinâmica satânica do rentismo sobre a dívida pública e o raquitismo dos programas sociais.

 

Ademais, o ultraliberalismo defendido por ele jamais poderá ser testado no mundo dos homens – razão pela qual tampouco pode ser batido no terreno da mera argumentação – pois é utopia reacionária e, embora de comprovada eficácia para capturar o senso comum em períodos eleitorais, jamais foi levado a prática em qualquer país do mundo, simplesmente porque sem Estado não existe capitalismo. Há que se compreender algo decisivo nesta disputa: Bolsonaro é um marionete nas mãos de Washington, uma carta do ultraliberalismo a serviço dos Estados Unidos. Aqui reside, precisamente, a força de seus argumentos, pois o ultraliberalismo jamais poderá ser levado a prática de maneira cabal; basta observar que a realização de uma etapa de reformas liberais deverá, necessariamente, ser seguida de outra ainda mais forte que, invariavelmente, será ainda insuficiente! A natureza religiosa da política que ele representa é capaz inclusive de roubar protagonismo do pastor-evangélico-deputado que, com os pés no mundo real e aferrado ao dinheiro (In God we trust), adotará sem cerimônia e remissão o messias mundano, renegando logo que necessário e possível, o deus que simulam adorar. Portanto, as acusações de que Bolsonaro não tem programa e que seus argumentos são irracionais, sem compromisso em solucionar os cada dia mais graves problemas nacionais, simplesmente não colam mais.

 

 

Os partidos políticos da esquerda liberal manifestam ineficácia na tarefa de produzir teoria sobre a realidade brasileira e sua profunda crise, razão pela qual importam da academia fragmentos de interpretação da realidade nacional sem qualquer compromisso com o radicalismo político e o rigor científico. Em consequência, os partidos políticos do liberalismo de esquerda são cativos do academicismo liberal hegemônico na chamada inteligência universitária, sem perceber suas graves consequências. Na prática, estendem polêmicas do mundinho acadêmico para a vida partidária como se pudessem nessa infantil operação, cativar as massas! Este comportamento – expressão necessária do colapso completo do sistema petucano e dos acadêmicos com fortes vínculos com partidos de origem na esquerda – não é somente ingênuo; é também fatal para reconstruir o radicalismo de esquerda necessário para enfrentar o avanço liberal e suas expressões proto-fascistas. É ilustrativo deste fato que muita gente boa repita os bordões de acadêmicos inofensivos a ordem burguesa como Boaventura de Souza Santos e outros tantos, para iluminar o próximo passo da luta…

 

A demonstração mais desinibida da degradação da política como práxis totalizante a qual a esquerda liberal adota como virtude, pode ser observada no fato de que nesta disputa eleitoral os candidatos “possuem” seus economistas, apresentados com inusitada insistência nos programas de TV como verdadeiros oráculos que poderiam nos salvar da máquina de moer gente que deparamos desde sempre. Na real a cartada televisiva e do jornalismo em geral opera radical separação entre política e economia, responsável por perversa inversão, pois ela indica claramente que os candidatos não possuem um economista mas precisamente o contrário: o economista é quem, finalmente, possui um candidato! O proto-fascista Bolsonaro, com razão acusado como ignorante completo, incapaz de diferenciar a taxa de câmbio de uma frigideira, é hábil quando afirma sua fé inabalável no batalhão de técnicos competentes e em seu delfim economista capaz de arrumar esta “esculhambação”. Não é ocioso observar o discurso liberal de todos os economistas mais salientes distinguindo-se apenas por maior ou menor domínio das contas nacionais e correlações típicas dos manuais de macro-economia do mundinho acadêmico. No entanto, todos eles ajoelham no altar das finanças, ou seja, da fração financeira hegemônica no pacto de classe que nos domina. Na Europa, foi a fração financeira quem comandou o fascismo, mas essa lição histórica é sistematicamente omitida pelos que aqui e agora pretendem nos alertar contra a emergência daquele regime.

 

Ora, a separação radical entre o candidato e seu economista é também a maior expressão da concepção tecnocrática de política, dirigida precisamente à administração da crise segundo os interesses da classe dominante (especialmente da fração financeira) e jamais em superá-la em favor das classes subalternas! O antigo elogio à tecnocracia como caminho redentor diante da deficiência crônica da política social e do subdesenvolvimento encontra seu correlato à esquerda na medida em que a política como atividade totalizante, ato destinado à emancipação dos oprimidos, se refugia em “causas” e termina na impotência quando adota o “conceito” de “empoderamento” para redimir, por meio do otimismo individual, dos manuais de auto ajuda e da simulação de práticas coletivas, a violência e exploração a que estão submetidas as vítimas do sistema. A denúncia retórica contra a “política do ódio”, a “violência” e a “intolerância” nada pode no contexto de uma guerra de classes! Mais do que um caminho para enfrentar a ofensiva burguesa, a insistência nas lutas fragmentadas destinadas a fortalecer “causas”, indica que a defesa de direitos particulares não mais pode ser eficaz como substituição da práxis totalizante; ao contrário, somente um programa totalizante e o ataque ao coração do sistema petucano poderia multiplicar o esforço anônimo e militante de milhares de pessoas que sustentam os movimentos populares. Eis a razão pela qual os chamados movimentos sociais – a despeito de sua importância – acumulam derrotas atrás de derrotas no contexto da guerra de classes aberta contra o povo. Expressam também que se a resistência é importante e sempre ocorrerá movida pelo sofrimento e exploração das vítimas do sistema, os limites implícitos da política baseada na denúncia da “intolerância” e da “política de ódio” soam infantis e antecipam o destino de todo moralismo: a impotência em ação!

 

Epílogo eleitoral

Neste mês inicia o epílogo eleitoral: a propaganda na TV. Os dois partidos da ordem (PT e PSDB) poderão afirmar a centralidade da disputa pois dispõem de maior tempo de televisão. O desafio central do sistema petucano é impedir que Bolsonaro apareça como o único candidato anti-sistêmico numa eleição aparentemente previsível que repetiria a polarização dominante desde 1994. As últimas semanas oferecem indicativos sérios de que a eleição petucana poderá não existir. A renúncia ao radicalismo de esquerda permitiu a Bolsonaro avanço solitário na condição de alguém que está contra “tudo o que aí está”. Alguém poderia acreditar? Em larga medida alertamos para este fato desde o início do ano indicando também o único caminho capaz de barrar Bolsonaro: o radicalismo de esquerda. O caminho ficou livre para o proto-fascista que, nos marcos de uma eleição disputada, atualiza o voto útil já no primeiro turno. O voto progressista tem neste contexto um único objetivo: evitar o pior. E o que seria o pior? Bueno, a consciência ingênua tentará evitar um segundo turno entre Marina e Bolsonaro ou entre este e Alckmim. Nesta miséria – dependendo do que farão tucanos e petistas no horário eleitoral – a candidatura de Haddad poderá crescer.

 

A frente eleitoral anti-fascista tão desejada pelo liberalismo de esquerda como meio de exorcizar a ameaça fascista conta inclusive com o entusiasmo de Fernando Henrique Cardoso, que já anunciou que votaria em Haddad contra Bolsonaro. E o que faria o PT caso Bolsonaro fosse para o segundo turno contra os tucanos? Creio que retribuiriam a gentileza para evitar o avanço do “fascismo”. A luta política esfacelou os partidos da ordem e exige radical redefinição entre os políticos da classe dominante.

 

E nós, da esquerda? Não teremos mesmo que chafurdar nesta lama na qual os liberais redefinem seu futuro diante do avanço inexorável do ultraliberalismo. Aqui e agora é preciso exercer a política da renúncia às misérias do sistema, abandonar as ilusões das possibilidades parlamentares, renovar a práxis política no interior dos sindicatos e exercer a crítica a tudo e a todos no lento trabalho de reconstrução das referências críticas para os trabalhadores e nossa juventude num pais em rápido giro à direita. A reconstituição de uma referência radical, preferencialmente de corte socialista, tinha na disputa eleitoral uma oportunidade estratégica que a aliança PSOL/PCB desprezou completamente. Este grave erro cobrará elevado preço a partir de janeiro de 2019, quando um governo liberal e um parlamento corrupto dominado por conhecidas figuras a serviço da classe dominante atuarão segundo o roteiro do ultraliberalismo e, na mesma medida, os políticos profissionais sempre orientados pelas conhecidas virtudes republicanas exibirão as vísceras de um sistema colapsado a serviço do exclusivismo burguês.

 

 

 

Neste contexto, a polarização petucana já dançou. O aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento sob o impulso de petistas e tucanos na administração do Plano Real, o declínio do antigo orgulho burguês responsável pela característica moderna e terrível da sociedade brasileira, encontrou novo inimigo. A ameaça fascista cai como uma luva neste cenário e será útil para perpetuar as cadeias que nos mantém presos ao passado e ao presente, anulando as possibilidades e a necessidade do horizonte radical e socialista aqui e agora. O liberalismo de esquerda exigirá a redefinição partidária que alguns com cândida inocência consideram uma saída sem traumas sob os escombros de um sistema político que vive seus últimos dias. A ameaça fascista se tornará real? No momento não é necessário para a classe dominante, pois a guerra de classes acumula resultados favoráveis para seu programa. O fascismo, caso necessário, será uma vez mais, o epílogo do extremismo liberal. Mas não devemos nos enganar sobre o essencial: somente um movimento de massas, de orientação socialista, enraizado nas maiorias poderá enfrentar o monstro caso ele, finalmente, levante a cabeça.

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